Quando Lewis Hamilton conquistou a vitória do GP do Japão, em 30 de setembro de 2007, praticamente carimbou um precoce passaporte rumo ao panteão dos campeões mundiais de F1. Até então o debutante praticava uma campanha quase perfeita: pontuara em 14 das 15 etapas até então disputadas, sendo 12 pódios e quatro presenças no degrau mais alto do pódio.
Àquela altura o protegido de Ron Dennis atingira uma vultosa vantagem de 12 pontos sobre o parceiro de equipe, Fernando Alonso, sendo 17 em relação a Kimi Raikkonen, aparentemente um concorrente nada mais que idílico. Restavam só 20 tentos em disputa e dois quartos lugares seriam mais que suficientes para lhe garantir a taça. Tendo em vista a supremacia que Ferrari e McLaren impunham sobre as demais representantes do grid, não era de se esperar qualquer resultado abaixo disso nas duas provas derradeiras.
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Passada uma década ainda é difícil mensurar a dimensão do feito que o novato de 22 anos vinha construindo até aquele momento. Para chegar à situação de primeiro estreante a se tornar campeão, Hamilton teve de obter “a fórceps” a condição de “líder” de sua escuderia, impondo-se de forma categórica diante de ninguém menos que Alonso, recentemente coroado bicampeão e um dos companheiros de equipe mais difíceis de se lidar em toda a história da categoria.
Só que Hamilton acabou sucumbindo à enorme pressão que se lhe caía sobre os ombros. A inacreditável gangorra emocional pela qual ele, Alonso e a cúpula da esquadra de Woking passaram no decorrer daquele certame não suportou o peso e estourou de vez nos GPs de China e Brasil. E foi então que Raikkonen, figura por vezes quase descartada da batalha, surgiu triunfante para corroborar em Interlagos, a 21 de outubro daquele ano – portanto há exata uma década -, a mais inesperada e surpreendente virada já vista em 57 anos de Mundial.
Neste artigo o Projeto Motor vai rememorar os meandros de uma das temporadas mais ricas, polêmicas e cheias de reviravoltas a que se teve notícia, e que completa 10 anos neste sábado (respire fundo e resigne-se ao fato de que o tempo passa rápido demais).

As armas de cada equipe
Diferentemente dos dois anos anteriores, em que a Renault começou ditando o ritmo, Ferrari e McLaren iniciaram a estação de 2007 um passo à frente das demais esquadras. O segredo estava na utilização da expertise dos dois maiores gênios da época: Rory Byrne e Adrian Newey. No caso da escuderia italiana, Byrne assinaria um projeto, o F2007, pela última vez antes de se aposentar, enquanto os criadores do MP4/22, Neil Oatley, Mike Coughlan e Pat Fry, aproveitariam muito bem a base deixada por Newey antes de sair para ingressar na Red Bull.
É notório o quanto F2007 e MP4/22 bebem da fonte de seus antecessores, embora com aprimoramentos. O bólido escarlate, por exemplo, estreava nova suspensão dianteira, sidepods redesenhados, entre-eixos alongado, traseira mais estreita e uma caixa de câmbio automatizada com sistema quickshift, que torna as trocas de marcha ainda mais céleres. Já o modelo cromado teve seu primeiro esquete produzido em dezembro de 2005, antes mesmo de o MP4/21 ganhar as pistas. Ao todo, 11 mil componentes foram minuciosamente revisados pela equipe de engenharia de Woking.
O que se viu ao longo das 17 etapas foi um desempenho geral extremamente parelho entre as duas forças, com costumeiras variações para um lado ou para o outro a depender do tipo de traçado. O entre-eixos mais longo (3.135 mm) tornava a F2007 teoricamente forte em circuitos com curvas de raio longo. Além disso, o modelo trabalhava melhor com os pneus macios. Já o MP4/22 (3.120 mm de entre-eixos) se mostrava mais afeito a contornar pernas fechadas e “secas”, e também se destacava em termos de aderência mecânica e gerenciamento de compostos duros.

Isso explica por que o carro bretão coletou vitórias em praças como Monte Carlo, Montréal, Indianápolis, Monza, Nürburgring e Fuji (sendo estas duas últimas etapas sob interferência da chuva), ao passo que o rival itálico se deu melhor em Barcelona, Silverstone, Spa e Xangai. As exceções em favor da Ferrari foram Melbourne e Sakhir, mas é preciso dizer que a campanha ainda estava na fase inicial e a McLaren ainda não aprendera a extrair todo o potencial do MP4/22.
Em relação aos motores não havia muita diferença. Tanto o Mercedes quanto o Ferrari V8 de 2,4 litros pesavam cerca de 95 kg e superavam 750 cv em configuração de voltas lançadas. Estima-se, porém, que a usina germânica alcançasse picos um pouco maiores de potência em situação de corrida. Todavia, também engendravam este cenário de oscilações o clima (incluindo a chuva, favorável ao MP4/22) e o tipo de asfalto de cada GP. Ao final, a Ferrari venceu nove etapas (Austrália, Bahrein, Espanha, França, Grã-Bretanha, Turquia, Bélgica, China e Brasil) e a McLaren, oito (Malásia, Mônaco, Canadá, EUA, Europa, Hungria, Itália e Japão).
Vale mencionar, ainda, que o carro da McLaren se mostrou mais fiável ao longo do certame. Enquanto o da concorrente registrou três abandonos por falhas mecânicas – com Raikkonen em Montmeló (elétrico) e Nürburgring (hidráulico); com Felipe Massa em Monza (suspensão) -, o modelo guiado por Alonso e Hamilton não lhes deixou na mão em nenhuma rodada. A dupla só deixou de cruzar a linha de chegada uma vez cada (Japão e China), ambas por erros dos próprios pilotos.

A briga fratricida da McLaren
Dotada de um conjunto muito forte e um duo ligeiramente mais competitivo (convenhamos: Fernando e Lewis são melhores do que Kimi e Felipe), a McLaren teve tudo, mas tudo mesmo, para quebrar o jejum de oito anos sem títulos estabelecido desde o bi de Mika Hakkinen, em 99. Porém, uma hercúlea e fratricida guerra estabelecida dentro da própria garagem acabou comprometendo totalmente o desenrolar da temporada.
Eis os fatos: recém-coroado bicampeão, Alonso chegou a Woking com status de primeiro piloto, enquanto a Hamilton caberia o papel de “aprendiz”. O problema é que o iniciante apresentou desempenho muito acima do esperado desde os primeiros treinos, provocando no espanhol uma reação extremamente intempestiva e nociva para o ambiente interno. Aqui vai um detalhe importante: muitos fãs do asturiano alegam que ele foi “boicotado” por um time que preferiu proteger sua “cria”. Tal premissa é uma balela. Pelo contrário: na Austrália e em Mônaco a McLaren claramente praticou jogos de equipe para que o latino terminasse os respectivos GPs à frente. Nos dois casos houve antecipação de pitstops de Hamilton.
Ocorre que, mesmo com tal esforço, o jovem campeão da GP2 “insistia” em ser mais veloz e consistente, ocupando nada menos que a liderança do campeonato. Com moral e confiança em alta, Lewis reclamou publicamente por ter sido impedido de vencer em Monte Carlo, o que colocou a McLaren em maus lençóis. A decisão foi liberar a briga, e isso se fez sentir na rodada de Indianápolis: os volantes se digladiaram abertamente pela vitória e Alonso ficou furioso por não ter atendido um pedido para que o parceiro lhe deixasse passar. Tentou, então, ultrapassar na marra, mas não exitou e na passagem seguinte gesticulou para os diretores em plena reta principal, externando sua insatisfação.

Ali o caldo azedou de vez, porque entre os GPs do Canadá e do Japão Hamilton emendou uma sequência de fortes resultados, incluindo quatro triunfos e cinco pole positions. No mesmo período o ibérico anotou somente uma presença no posto de honra da grelha e faturou dois GPs, além de ter tido uma atuação totalmente errática no Canadá (com direito a tomar um “passão” da Super Aguri de Takuma Sato) e batido sozinho no Japão. Durante tal fase do campeonato as únicas corridas em que Alonso superou o jovem britânico no “mano a mano” foram Grã-Bretanha, Bélgica e Itália. Nas demais Hamilton esteve sempre à frente, exceto quando enfrentou problemas (Europa e Turquia).
Alonso lidou tão mal com o fato de estar sendo batido pelo companheiro que acabou se tornando personagem-chave e grande algoz da McLaren em um escândalo descoberto no meio da temporada, o qual detalharemos mais abaixo. Em Xangai, aumentou o clima de animosidade ao sugerir que estivesse sendo sabotado. É bem verdade que, àquela altura dos acontecimentos, Ron Dennis já o considerava um “inimigo interno” – conforme a infeliz declaração dada, no mesmo GP, de que estava “lutando contra Fernando” ao definir a estratégia de Hamilton no decorrer da etapa -, mas não era para tanto. Todavia, a FIA designou um fiscal para inspecionar os trabalhos dos mecânicos e engenheiros no carro do espanhol durante a rodada seguinte, no Brasil. Nenhuma irregularidade foi constatada.
Engana-se, porém, quem pensa que Hamilton foi uma mera “vítima” deste fogo cruzado. Em Hungaroring, o ás ignorou o acordo que dava ao colega o direito de abrir mais tarde suas voltas rápidas na fase final da classificação. Como retaliação, Alonso o “prendeu” nos boxes durante o intervalo entre a primeira e a segunda saídas, ficando parado no pit mesmo com o carro pronto para retornar à ação. Com isso, deixou Lewis sem tempo de abrir um novo giro rápido e pôde tranquilamente alcançar a melhor marca da sessão. A má notícia para si é que ele acabaria punido pela atitude, devolvendo ao arquirrival a primeira colocação na ordem de partida.

Vítima ou não, fato é que Hamilton chegou aos GPs da China e do Brasil com uma mão na taça, e conseguiu sobrepujar o companheiro nas provas classificatórias também dessas duas rodadas. Só que… a inexperiência e o intenso turbilhão de emoções se fizeram sentir na “hora do vamos ver”, levando o volante a cometer erros crassos em ambas as corridas. Vale dizer que em Interlagos a sorte não ajudou, pois o carro entrou sozinho em neutro enquanto o estreante tentava se recuperar da péssima primeira volta que fizera. Ainda assim, o fato é que principiante somou apenas dois de 20 pontos possíveis na fase decisiva da estação.
Foi o que o deixou empatado em 109 tentos com Alonso na tábua final de classificação, embora tenha emplacado um 10×7 em grids e completado 579 giros de corrida à frente do espanhol, contra 434 passagens do rival. Sem os dois jogos de equipe praticados no começo do ano o resultado seria ainda mais favorável e… garantiria o título. Deveras irônico.
O escândalo de espionagem
Entremeado à sanguinolenta batalha de Hamilton com Alonso esteve o famoso spygate, como ficou conhecido o escândalo de espionagem da McLaren contra a Ferrari em meados de 2007. Aqui vai um resumo bem resumido do caso: o diretor de desenvolvimento da Scuderia, Nigel Stepney, forneceu informações confidenciais da F2007 a Mike Coughlan, um dos projetistas que assinaram o projeto do MP4/22 (conforme supracitado). Tais dados, totalizando 780 páginas, chegaram ao conhecimento de todo o corpo técnico da equipe inglesa, incluindo Alonso e o piloto de testes da operação, Pedro de la Rosa.

A Ferrari descobriu o caso a partir de uma investigação interna, realizada no primeiro semestre do ano, e realizou uma denúncia formal contra Stepney junto à FIA durante o GP dos EUA, em junho. A federação passou a perscrutar o caso e Alonso se tornou peça-chave para a condenação da McLaren. Lembra do episódio de animosidade entre ele e Hamilton na classificação para o GP da Hungria? Pois então. Iracundo com o desfecho (ele punido e Lewis na pole, sem qualquer tipo de reprimenta interna), Fernando se reuniu a portas fechadas com Ron Dennis e lhe deu um ultimato: ou lhe davam o status de primeiro piloto ou ele entregaria à entidade o histórico de e-mails trocados com De la Rosa em que discutiam o conteúdo do material obtido ilegalmente por Coughlan. O chefão não aceitou a chantagem e o ás cumpriu a ameaça, disponibilizando o material aos investigadores.
Tal ação tornou muito mais fácil a vida da FIA, que já havia arquivado anteriormente o caso por falta de provas. Como consequência, a operação de Woking acabou desclassificada do Mundial de Construtores daquele ano (do qual teria sido campeã) e perdeu as respectivas premiações, além de tomar uma multa de US$ 100 milhões (paga entre 2008 e 2011). Por terem “cooperado” com os investigadores, Alonso e Hamilton não foram pessoalmente punidos e, por isso, mantiveram-se na briga pelo campeonato de pilotos.
A vacilante porém vencedora Ferrari
Mesmo diante de todo esse imbróglio a Ferrari passou toda a campanha tendo de correr atrás de Alonso e, especialmente, Hamilton na pontuação. Raikkonen iniciou a temporada vencendo na Austrália, é verdade, mas apresentava dificuldades para se adaptar ao comportamento traseiro da F2007 e também aos pneus Bridgestone, após anos competindo com os Michelin.
Já Massa, único do quarteto a ter estado no mesmo time e usando compostos da mesma fornecedora em 2006, começara a estação em aparente vantagem (tanto que teria cravado quatro poles nas quatro primeiras etapas caso não houvesse encarado uma falha de câmbio no classificatório em Melbourne), mas jamais demonstrou a consistência necessária para assumir as rédeas da tabela de pontos.
O fínico parece ter “acordado” para a vida na segunda metade do GP dos Estados Unidos, quando instaurou um ritmo bastante forte e chegou a ameaçar o terceiro lugar até então solitário do companheiro. Depois, emendou duas vitórias na França e na Grã-Bretanha, passou a se classificar com mais frequência à frente de Massa e completou nove dos 10 GPs finais do calendário na zona de pódio, sendo a singela exceção o páreo da Europa (em que sofreu uma pane hidráulica).

Assim, mesmo estando 17 pontos atrás de Hamilton após o drama helênico de Fuji, Raikkonen já podia ser apontado como melhor volante da metade final daquela temporada. A apresentação dominante em Spa-Francorchamps e o notório triunfo na traiçoeira rodada de Xangai viriam apenas a corroborar tal tese, sendo cruciais para deixá-lo vivo na disputa em Interlagos – embora ainda como grande azarão.
Com o titubeio de Hamilton e o exemplar trabalho de escudeiro exercido por Massa no Brasil, Kimi enfim entrou no olimpo dos campeões da F1. Um status que o finês já mereceria pelas campanhas de 2003 e 2005, mas que só se tornaria realidade da forma mais dramática e inesperada possível, contrastando harmoniosamente com seu estilo tão frio e desinteressado. E agora vem a grande verdade sobre 2007: apesar de todos os vacilos que deram ao longo do ano, Ferrari e Raikkonen mereceram as láureas. Em especial porque foram competidores mais leais.

NÚMEROS DE 2007
Vitórias
Kimi Raikkonen: 6
Lewis Hamilton: 4
Fernando Alonso: 4
Felipe Massa: 3
Ferrari: 9
McLaren: 8
Poles
Lewis Hamilton: 6
Felipe Massa: 6}
Kimi Raikkonen: 3
Fernando Alonso: 2
Ferrari: 9
McLaren: 8
Pódios
Kimi Raikkonen: 12
Lewis Hamilton: 12
Fernando Alonso: 12
Felipe Massa: 10
McLaren: 24
Ferrari: 22
Voltas mais rápidas
Kimi Raikkonen: 6
Felipe Massa: 6
Fernando Alonso: 3
Lewis Hamilton: 2
Ferrari: 12
McLaren: 5
Voltas lideradas
Lewis Hamilton: 321
Felipe Massa: 300
Kimi Raikkonen: 212
Fernando Alonso: 203
McLaren: 524
Ferrari: 512
Km liderados
Felipe Massa: 1.474
Lewis Hamilton: 1.418
Kimi Raikkonen: 1.149
Fernando Alonso: 963
Ferrari: 2.622
McLaren: 2.411