Super Aguri foi uma das últimas equipes da F1 a usar um chassi de terceiro
(Foto: Super Aguri)

Fato ou Mito #12: venda de chassi vai contra o DNA da F1?

Toda vez em que se fala em venda de chassis inteiros ou até partes entre construtoras e outras equipes de F1, que se tornariam clientes, vem aquela discussão sobre o DNA da F1. Os críticos da ideia dizem que cada competidor projetar e fabricar seu próprio carro estaria no cerne histórico da categoria.

Não estamos apoiando nem assumindo uma postura contrária à ideia. Ela realmente precisaria ser bem debatida para poder ser adotada ou definitivamente esquecida. Só que a afirmação de que ter equipes construtoras é a base da F1 é uma balela. Só para se ter ideia, a prática só foi banida mesmo, por regulamento, em 2010. Isso mesmo! Há apenas dez anos.]

src=”https://pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js”>

Ok, calma. Na verdade, o primeiro acordo que definiu o Mundial de Construtores de F1 como conhecemos hoje, em que as equipes precisam projetar e fabricar seus carros ou se no caso de comprarem de um fornecedor, este não pode ser outra competidor, aconteceu para a temporada de 1981. Naquele ano, entrou em vigor o primeiro Pacto de Concórdia da história, um acordo entre Foca (Associação dos Construtores da F1) e FIA (representada por seu braço esportivo da época, a FISA).

Temos uma longa série sobre guerra entre as duas entidades e a confecção do Acordo de Concórdia, que merece ser lido. Mas aqui, neste texto, o que importa é que entre diversas regras que passaram a reger a F1 principalmente pelo lado comercial, estava a questão de que todas as equipes deveriam construir seus próprios carros. “Ué, mas você não escreveu há dois parágrafos que essa regra surgiu apenas em 2010? Está maluco?”. Calma, leitor. Vou explicar. Mas antes, vale lembrar como era a F1 até 1981.

Equipes clientes na F1 antes do Acordo de Concórdia.

Até o começo da década de 80, se você quisesse criar uma equipe de F1, não precisava construir uma grande fábrica, com dezenas de engenheiros e mecânicos. Era só ir na March, McLaren ou Brabham e comprar um carro, depois passar na Cosworth para levar um motor, adquirir um sistema de transmissão da Hewland, fechar um acordo de fornecimento de pneus com a Goodyear e, claro, contratar um piloto. Aí, se inscrevia em alguma corrida e tentava se classificar. E citamos esses fornecedores apenas como exemplo, pois existiam outros pacotes à disposição dos donos de equipe. 

Se não tivesse dinheiro o bastante, não tinha problema em ir apenas com um carro para a pista. E se tivesse verba sobrando, podia ir até três ou quatro. E não era preciso se preocupar em ir em todos os GPs. Muita gente na Europa não tinha grana para viajar para as Américas, África ou Ásia, então, competia apenas em provas na Europa. Alguns, só em seus países mesmo.

Maluquice? Algumas equipes importantes da F1 começaram assim. Frank Williams entrou na categoria assim. Sua primeira equipe, a Frank Williams Racing Cars, estreou na segunda etapa da temporada (pulou a abertura na África do Sul), no GP da Espanha, após fazer sucesso na F2. O dirigente comprou um Brabham BT26A, um Ford-Cosworth DFV, pneus da Dunlop e foi para pista com Piers Courage ao volante.

Três anos mais tarde, o time mudaria de fornecedor e compraria um chassi da March, o modelo 711. O Ford Cosworth seguia na traseira empurrando, mas os pneus agora eram da Goodyear. Foi neste pacote da Williams que José Carlos Pace fez sua estreia na F1.

Tricampeão Mundial, Nelson Piquet também começou por uma equipe cliente. Após a estreia pela Ensign, que fabricava seus próprios carros, no GP da Alemanha de 1978, o brasileiro na etapa seguinte, na Áustria, passou a competir pelo time inglês BS Fabrications. A organização inscreveu o carioca em modelo M23, fabricado pela McLaren, enquanto o outro piloto do time, o americano Brett Lunger, competia com um carro mais novo, o M26, por ser mais experiente.

Nelson Piquet com sua McLaren M23 da equipe BS

A primeira equipe brasileira da história da F1, por sinal, também foi uma cliente. A Escuderia Bandeirantes, que tinha Chico Landi como um de seus principais líderes, competiu na categoria em 1952 com três modelos A6GCM, comprados da equipe de fábrica da Maserati.

Os últimos exemplos de equipes que compraram chassis de concorrentes para competirem na F1 aconteceram na temporada de 1980, antes do Acordo de Concórdia teoricamente regulamentar a prática. A Brands Hatch Racing e a RAM compraram modelos Williams FW07 para participarem do GP da Inglaterra. A segunda seguiu andando até o final do campeonato, chegando a inscrever dois carros em algumas etapas, como Canadá e EUA.

Times clientes que se deram bem

E não pense que comprar chassis era algo apenas para os pequenos. Algumas equipes conseguiram bons resultados, incluindo vitórias, e até mesmo superaram as fabricantes dos carros durante a temporada. Dois exemplos são bem marcantes.

Em 1958, a Rob Walker Racing Team começou a temporada com um chassi Cooper T43, equipado com um Climax L4 de 2 litros. Stirling Moss venceu o GP da Argentina batendo um grid composto por três Ferraris, todas do time oficial, e seis Maseratis, inscritas por cinco equipes diferentes, inclusive uma chamada Scuderia Sud Americana, com Juan Manuel Fangio em dos carros. Aquela foi a primeira vitória de um carro com motor traseiro na F1.

A equipe oficial da Cooper não veio para a América do Sul, mas participou normalmente do restante da temporada. Só que mesmo contra o time de fábrica, a Rob Walker voltou a vencer de Cooper o GP seguinte, em Mônaco, desta vez com Maurice Trintignant. Jack Brabham, piloto da Cooper, terminou a prova em quarto.

A F1 fazia naquele ano seu primeiro Campeonato Mundial de Construtores, e os pontos de Moss e Trintignant, mesmo sendo por outra equipe, contaram para a Cooper, por ela ser a fabricante dos chassis. A Rob Walker Racing Team nunca foi construtora e utilizou na sua história modelos de diversos construtores, incluindo ainda Connaught, Lotus, Ferguson e Brabham.

Para o restante de 1958, Moss tinha compromisso com a Vanwall, e seu bom desempenho, ao lado dos companheiros Tony Brooks e Stuart Lewis-Evans, deu o primeiro título de construtores da história para a pequena fabricante inglesa, batendo a Ferrari. A equipe de Maranello, no entanto, levou o título de pilotos, com Mike Hawthorn.

No final da década de 60, outra equipe cliente conseguiu bater sua fornecedora de chassis. Existiam dois times Matra no grid da temporada de 1968, a “Matra Sports”, equipe oficial, e a “Matra International”, que mesmo com apoio da mesma, era na verdade uma organização independente dirigida por Ken Tyrrell.

A diferença entre as duas estava no motor. Enquanto o time de fábrica usava o Matra V12 de 3 Litros, a Tyrrell escolheu o famoso Ford Cosworth DFV V8 de 3 litros. A equipe da Matra também tinha um chassi mais novo, o MS11, contra o MS10 da “Matra-Tyrrell”. Os resultados do time de Ken Tyrrell acabaram sendo bem melhores, incluindo três vitórias de Jackie Stewart.

No ano seguinte, a Matra resolveu tirar seu time de campo e investiu na colaboração com a Tyrrell, mantendo o Ford Cosworth no carro. O resultado foi a conquista do título de pilotos para Jackie Stewart e de construtores para a fabricante. Assim, a Matra se tornava a primeira construtora de chassis francesa da história a vencer o campeonato, sendo igualada apenas em 2005, quando a Renault também levantou a taça.

Só que para 1970, a Matra resolveu retornar com sua equipe oficial e exigiu que a Tyrrell utilizasse seus motores. Após alguns testes, o dirigente inglês chegou à conclusão de que não valia à pena e rompeu a relação, passando por uma fase de transição com um modelo adquirido da March, o 701, conquistando ainda uma vitória, na Espanha. Ainda naquele ano, a equipe estrearia o seu 001, primeiro chassi desenvolvido em casa. Já no ano seguinte, com o 003 equipado com o Ford Cosworth, a Tyrrel levou o título de pilotos com Stewart e de construtores.

E finalmente chegamos ao caso da Hesketh, outra equipe que antes de se tornar construtora, estreou na F1 como compradora. O time do espalhafatoso Lord Hesketh entrou na categoria em 1973 com um March 731, mesmo modelo utilizado por pelo menos outras três equipes, incluindo a própria March. Só que por mais incrível que pareça, todos os 14 pontos da construtora naquela temporada foram marcados por sua cliente, com o novato impetuoso James Hunt ao volante.

Um dos segredos da Hesketh, além do talento de Hunt, era o engenheiro Harvey Postlethwaite, que tinha trabalhado na March e ajudava no acerto e ajustes do carro. A confiança foi tanta que no ano seguinte, o time investiu no talento do projetista e desenvolveu o seu próprio modelo 308, que conquistaria três pódios em 74, e outros três em 75, incluindo uma vitória, finalizando aquele ano com a quarta posição entre os construtores.

Super Aguri, Toro Rosso e o fim da venda de chassis

Como já explicamos, no primeiro Acordo de Concórdia, em 1981, ficou combinado que cada equipe precisava construir seu próprio carro ou, em caso de adquirir de terceiros peças fundamentais como o monocoque, ter pelo menos a exclusividade dentro da F1.

Só que nos anos 2000, dois times encontraram uma brecha. A Minardi foi comprada pela Red Bull, a princípio em parceria com o ex-piloto Gerhard Berger, para a temporada de 2006. A empresa já tinha outro time e passou a utilizar sua nova equipe como uma forma de porta de entrada para jovens pilotos de seu programa de formação.

A estratégia da companhia foi fazer com que a propriedade intelectual de seus projetos fosse da empresa Red Bull Technologies, que prestava o serviço de projeto para as duas equipes. A Toro Rosso usaria em um primeiro momento os Cosworth V10 da temporada anterior com uma restrição de potência, pois o novo regulamento de V8 estava sendo introduzido. Como a operação toda foi uma forma de salvar um time do grid, os competidores meio que fizeram vistas grossas para o “compartilhamento” de chassi, mesmo que com diversas adaptações.

No mesmo ano, também estrou na F1 a Super Aguri. O time era basicamente uma operação financiada pela Honda como uma forma de justificar a permanência de Takuma Sato na categoria. O piloto japonês, popular no seu país, tinha perdido a vaga na equipe da marca para Rubens Barrichello. Em sua primeira temporada, a equipe utilizou chassis da falida Arrows de 2003, com algumas atualizações, e motores Honda. Até aí, nenhum problema.

Super Aguri chegou a surpreender dentro da F1 com sua parceria com a Honda
Super Aguri chegou a andar à frente até da parceira Honda e marcar pontos na F1 (Foto: Super Aguri)

Em 2006, nenhum dos dois times fizeram muita coisa. A Toro Rosso marcou um ponto no campeonato e a Super Aguri ficou zerada. Diante da situação, a análise é que eles não incomodavam e ainda ajudavam a preencher um pouco o grid. Os questionamentos surgiram a partir de 2007.

Os dois times começaram a ficar mais competitivos. A Toro Rosso agora com motores da Ferrari, que eram até mais potentes que os Renault da Red Bull, passou a andar com mais frequência nos pontos. E a Super Aguri surpreendeu andando na frente em alguns momentos até mesmo da Honda. A Skyper que se viu ameaçada por ambos, resolveu reclamar para a FIA que a Toro Rosso estava usando um chassi da Red Bull apenas adaptado para os motores Renault e a Super Aguri usava os da Honda do ano anterior. O que era verdade.

E aí estava a brecha explorada. O que teoricamente impedia a utilização de um carro de uma concorrente era o Acordo de Concórdia, que é basicamente um pacto comercial entre equipes e FIA. E não o regulamento. Ao receber as reclamações, os comissários explicaram para os dirigentes da Skyper que eles não tinham o que fazer na inspeção e que a equipe precisaria entrar na justiça contra os concorrentes alegando quebra de um contrato. Percebeu a confusão?

Na época, para evitar problemas mais sérios, Bernie Ecclestone sugeriu que Toro Rosso e Super Aguri simplesmente não pontuassem para o campeonato de construtores. Isso impediria que elas recebessem verbas comerciais da F1. Ao mesmo tempo, inviabilizaria as duas operações. E a discussão se estendeu. Ao final do ano, a Toro Rosso marcou oito pontos e a Super Aguri, quatro, ambas à frente de Skyper e até mesmo da McLaren. A Honda oficial fez seis.

A Super Aguri tentaria usar a mesma estratégia para 2008, só que a Honda cortou parte de sua verba e o time fechou após apenas quatro etapas. Já a Toro Rosso continuou usando o chassi da Red Bull, com motor Ferrari. O diretor técnico da equipe, Giorgio Ascanelli, bem experiente, ainda soube fazer uma boa adaptação para os motores Ferrari e selecionava as atualizações vindas da equipe irmã, utilizando apenas o que certamente daria certo. Some isso ao talento de um novato Sebastian Vettel, a escuderia não só terminou à frente da Red Bull no campeonato de construtores, como ainda conquistou uma vitória, no GP da Itália.

Depois de uma intensa discussão, a FIA finalmente colocou em seu regulamento esportivo para 2010, o anexo 6 que impõe que “um competidor deve, em respeito à lista de peças usadas em seus carros de F1, usar apenas partes listadas projetadas por ele”. Essas partes listadas incluem o chassi e suas peças fundamentais como asas, dutos de refrigeração e outros sistemas. E mais, ainda especifica que a equipe deve possuir a exclusividade do uso dessas partes na F1 e que elas não podem vir de outro time da categoria.

Desta forma, foi fechada definitivamente qualquer brecha para equipes adquirirem chassis de outros times e finalmente fechou-se este capítulo da F1 que durou 60 dos atuais 70 anos da história da categoria.

Comunicar erro

Comentários