O dia em que Graham Hill deu show com uma… banheira motorizada?
Há certas horas em que precisamos agradecer a figuras como o francês José Nicéphore Niépce, autor da primeira fotografia documentada na História, em 1826. Graças a experimentos feitos por pessoas como ele, tornando possível o ato de converter a exposição luminosa de um determinado momento em uma imagem estática num pedaço de papel, eternizando-a, hoje podemos ter certeza de que certas lendas do passado são verdadeiras. É a tal máxima de São Tomé: só acreditamos naquilo que vemos.
Para que fique mais claro ao douto leitor, segue a explicação: o que você diria se iniciássemos um artigo dizendo que Graham Hill, bicampeão mundial de F1 e único piloto até hoje a conquistar a Tríplice Coroa do automobilismo, participou de uma tomada de tempos com uma banheira motorizada em Brands Hatch? Difícil de acreditar, não? Felizmente as fotografias já eram uma realidade mais acessível na década de 50, e havia pelo menos um profissional munido de câmera naquela tarde de 26 de dezembro de 1959 em Kent (cidade britânica onde se localiza o autódromo).
Pois as imagens não nos deixarão mentir: lá está Hill, com seu aprumado bigode, seu proeminente queixo e seu famoso capacete formado por base azul escura e oito faixas brancas, simulando as pás do Clube do Remo de Londres, a bordo de uma banheira sobre três rodas na reta principal do autódromo. É importante observar que o ás ainda estava construindo seu renome na época: fazia sua segunda temporada na F1, pela Lotus, e não havia vencido nenhum Grand Prix na carreira.
Mas isso pouco importa. A grande questão aqui é: o que diacho ele está fazendo numa banheira a motor? É o que explicaremos a seguir.
A banheira
A obra de arte de que estamos falando recebeu o carinho nome “Sambo” (abreviação de “Simply Another Motorised Bath Operation”, ou “Simplesmente Mais Uma Operação de Banheira Motorizada”, na tradução para o português), e foi criada no próprio ano de 59 por estudantes de mecânica da Kingstone College, uma universidade tecnológica do condado de Surrey, localizado a sudeste da ilha. Em seu último ano de graduação, o grupo pegou uma banheira de ferro produzida em 1927, que pertencia ao irmão de um dos alunos, e acoplou a ela um motor de scooter. O vídeo abaixo (em inglês) mostra alguns detalhes da criação.
Há parcas informações acerca do projeto, mas noticiários da época reportaram que o modelo estava “totalmente adequado à legislação para circular na rua”. Ele era dotado de freio por pedal, manopla de câmbio (posicionada à esquerda) com um pato de borracha no pomo, um esfregão que servia de espelho retrovisor e torneiras de metal que… só estavam ali para reiterar que ainda se tratava de uma banheira.
O resto não passa de especulação. Pelas imagens, é possível enxergar que os estudantes colocaram metade de um guidão de bicicleta para servir de acelerador e também para articular a roda dianteira (provavelmente por meio de uma série de pequenas engrenagens). Não encontramos dados do trem-de-força, mas os scooters mais populares da época usavam propulsores de 125 cc e cerca de 10 cv, uma solução bastante plausível. A velocidade máxima anunciada era de 35 mph (56 km/h) e a transmissão, provavelmente, era manual de quatro marchas.
Cientes de que tinham em mãos uma engenhosidade deveras chamativa, os jovens decidiram viajar pela Inglaterra a fim de exibir “Sambo” ao público e arrecadar dinheiro para a caridade. A primeira viagem ocorreu de Bath Abbey (o nome da cidade escolhida como ponto de partida não poderia conter uma pitada maior de humor britânico) até a capital Londres, num percurso de 250 quilômetros. Treze pessoas se revezaram na condução da banheira ao longo do trajeto, realizando turnos de meia hora cada. Este outro vídeo (também em inglês) explica mais da aventura:
O evento com Hill
A origem da banheira a motor você já conhece, então chegou a hora de se perguntar: o que ela fazia com Graham Hill em Brands Hatch? Bem… Difícil dizer como a banheira a motor chegou até lá, mas podemos deduzir que os estudantes aproveitaram o Boxing Day Brands – tradicional evento de fim de ano em que pilotos e carros de diversas categorias protagonizavam corridas de exibição, a fim de “limpar a neve” e celebrar a chegada do inverno – para exibir Sambo aos amantes da graxa.
No intervalo entre dois páreos, Hill teria sido convidado a dar algumas voltas com o veículo e constatar que tempo conseguiria registrar. Ele aceitou, para delírio (e certa incredulidade) dos espectadores nas arquibancadas. Não há registro oficial disponível na internet sobre o tema, mas relatos encontrados aqui e acolá afirmam que o futuro campeão teria completado dois giros, sendo o mais veloz na casa de 2 minutos e 59 segundos. As fotografias indicam outra curiosidade: o volante realizou o desafio no sentido inverso do traçado.
Graham Hill, racing in a bath tub at Brands Hatch, Boxing Day 1959. pic.twitter.com/GCrh10W7Pr
— Grand Prix Diary (@GrandPrixDiary) December 26, 2015
A propósito, Hill venceu a corrida principal daquele dia, o “Troféu de Natal” (voltado a modelos diversos com motor de 1,1 litro), a bordo de um Lotus 7 Climax. Outros dois futuros nomes de peso na F1 também estavam presentes: Jim Clark e Colin Chapman (competindo como construtor e piloto) disputaram de maneira ferrenha a vitória da categoria Grand Touring Race (bólidos de 1,5 litro), ambos conduzindo exemplares do Lotus Elise. Certamente estamos falando de um evento riquíssimo, cheio de tradição e histórias, que merece um artigo à parte em outro momento.
Não há dúvidas de que os pilotos do passado tinham disposição (e mais liberdade) para se divertir com qualquer coisa que fosse movida a motor. Nem que fosse uma banheira de ferro.
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