John Surtees é o único campeão mundial de Moto e de F1 da história

Imagine Marc Márquez campeão da MotoGP e F1. Você chegará a John Surtees

Em suas análises sobre o tempo, o dileto filósofo alemão George Hegel classificava o passado como “tempo real”. Isto porque o teutônico refutava a compreensão temporal como uma linha contínua de pontos a ser preenchida por fatores exteriores no presente, a partir de outros elementos já configurados no passado e que culminaria no futuro. Para ele, o presente era um mero “agora pontual”, um limite simples preenchido pelo futuro, não pelo passado. O agora preenchido pelo futuro, nesta lógica, é o passado, e portanto é o passado, não o presente, a “verdade do tempo”, que se nos revela por meio de sua infinitude.

Também é neste preâmbulo que Hegel enxerga no tempo (mais precisamente no passado) o princípio de singularidade, e é a este ponto que queremos chegar. A teoria hegeliana enxerga o tempo não como uma dimensão aberta para o futuro, mas sim como a memória totalizante do passado. Assim, nossas ações estão ligadas ao que já foi, não ao que está por vir, o que nos possibilita ter a noção de historicidade e do presente atemporal (nunc stans, em latim, ou “agora perene”).

Passemos a falar de John Surtees. Tetracampeão de motovelocidade na classe 500 cc, tricampeão na divisão 350 cc e campeão mundial de F1 em 1964, o recém-falecido britânico obteve, com tais conquistas, uma marca que jamais chegou próxima de ser igualada: ser o único indivíduo capaz de alcançar a láurea suprema dos dois campeonatos mais importantes disputados sobre duas e quatro rodas.

Agora imaginemos o seguinte cenário: Marc Márquez conquista o tetra da MotoGP em 2017 e, imediatamente, anuncia que vai trocar o motociclismo pelo automobilismo. Rapidamente o jovem espanhol se adapta à F1 e vira um ás de ponta do certame, sagrando-se eventualmente campeão em cima de Lewis Hamilton e Sebastian Vettel. Difícil imaginar que isto seja plausível, não é mesmo? Agora o douto leitor pode ter uma dimensão um pouco maior do feito de “Big” John, como ficou conhecido.

Os desafios de Surtees

De fato, tempos eram outros quando Surtees, influenciado pelo pai, iniciou a carreira no motociclismo. Jack Surtees era dono de uma loja de motos na Grã-Bretanha e piloto nas horas vagas. Ensinou ao filho a arte de dominar a máquina, e “Joãozinho” parece tê-la assimilado melhor do que o esperado. Iniciou nas competições aos 15 anos e, uma temporada mais tarde, já estava dando calor em ninguém menos do que Geoff Duke numa prova de ACU em Thruxton. O desempenho impressionante o levou a ser contratado pela Norton, fábrica pela qual foi campeão do mesmo certame em 55.

Chegou ao Mundial de Motovelocidade em 52, pela própria Norton, mas foi em 56 que sua carreira deslanchou de vez. Assinou com a MV Agusta e obteve, entre aquela estação em 1960, nada menos que sete títulos da série, sendo quatro na classe principal, de 500 cc, e três na 350 cc. Estava formada a lenda. “Se Geoff Duke fez a Gilera virar grande, Mike Hailwood fez o mesmo com a Honda e Phil Read, com a Yamaha, foi Surtees quem tornou grande a MV Agusta”, analisou Mat Oxley, ex-piloto e atual colunista da sempre recomendável Motorsport Magazine.

Só que Surtees era, como se diz até hoje, um “espírito livre”. Gostava de seguir seus próprios instintos e não suportava de ter suas ambições amarradas por contratos. Em 59, por exemplo, a MV Agusta o impediu de participar de provas aleatórias pela Europa com sua própria moto, e o inglês se desgostou. Resolveu seguir o conselho do colega Hailwood e realizou seus primeiros experimentos em automóveis de competição. “Eles não desequilibram com a mesma facilidade”, foi o que lhe disse Mike “the Bike”.

O primeiro teste ocorreu com um Aston Martin Le Mans em Goodwood. Bateu o tempo de ninguém menos que Stirling Moss e impressionou Tony Vandervell, da Vanwall. Este lhe concedeu uma sessão de treinos com um F1 no mesmo circuito, e Surtees novamente virou mais rápido do que Moss e também do que Tony Brooks. Um assombro digno de elogios por parte de Sir Stirling. “Ele era capaz de ocupar espaços [da pista]onde eu jamais imaginaria ir”, escreveu o maior não campeão de todos os tempos em sua autobiografia.

Além disso, obteve uma vitória na Fórmula 500, também em Goodwood, superando o favorito Jim Clark e sua Lotus. Colin Chapman, encantado com seu talento puro, prometeu-lhe vaga de primeiro piloto na escuderia para correr o Mundial de 1960. Na prática, Surtees descobriria que o universo da F1 não era tão simples assim. Sem poder disputar o campeonato integral, pois decidira dividir as atenções com a motovelocidade naquele momento, o bretão se viu colocado para escanteio no time e largou a operação ao fim do ano, apesar de ter alcançado um segundo lugar no GP da Inglaterra e a pole position para a etapa da Itália.

Sua decisão, a partir dali, foi focar integralmente na F1, embora tivesse de passar dois anos seguidos na equipe particular de Rob Walker, sem chances de ir muito além de uma segunda pole, a do GP da Holanda de 62.

Carreira de piloto de F1

Sua vida mudaria em 63, quando assinou com a Ferrari. Ali ele enfim foi para as cabeças: venceu pela primeira vez ainda naquela estação, logo no Inferno Verde de Nürburgring Nordschleife, e adentrou a época de 64 como um dos favoritos ao título. Não decepcionou. Tudo bem que o desfecho da briga com Clark e Graham Hill foi polêmico – seu parceiro na Scuderia, Lorenzo Bandini, bateu no rival da BRM; já o “Fazendeiro Voador” quebrou sozinho a duas voltas do fim, quando se encaminhava para a vitória e o título -, mas o que fica para a História é que Surtees conseguiu o que parecia inatingível: dominar Mundial de Motovelocidade e F1.

Acreditava piamente que poderia ter chegado ao bi em 66, não fosse um capricho de Enzo Ferrari. Em setembro do ano anterior, sofreu um terrível acidente em Mosport enquanto realizava um teste privado com um protótipo Lola T70 (a suspensão dianteira quebrou). Saiu da batida “torto” (algumas testemunhas diziam que o lado direito de seu corpo ficara 10 cm mais baixo que o esquerdo, discrepância reduzida com fisioterapia, mas nunca totalmente dirimida).

Meses depois, ao regressar a um carro da Ferrari (um mecânico teve de carregá-lo no colo até o habitáculo), os funcionários se surpreenderam ao constatar que ele não perdera a velocidade de outrora. Nada disso convenceu o chefão Enzo: furioso por ver seu principal piloto se estrupiar correndo para construtores terceiros, o “Comendador” impediu Surtees de disputar as 24 Horas de Le Mans de 66. Mais uma vez Surtees respondeu àquela amarra pedindo demissão, mesmo estando na ponta da tábua de pontos da F1. Foi para a Cooper e, apesar de ter alcançado três pódios quase milagrosos a bordo do T81, com direito a um inesperado triunfo no México, o ás sucumbiu à falta de confiabilidade do chassi e encerrou a campanha como vice-campeão de Jack Brabham.

Viveria os últimos resquícios de glória em 67 e 68, pela Honda, até chegar ao ocaso em 69 pela BRM e entre 70 e 72, já defendendo a própria esquadra. “Naquela época, ao invés de ter aberto meu time, eu deveria ter sugerido a Colin Chapman que deixássemos o passado para trás, e me concentrado em ser só um piloto”, refletiu, anos depois. “Eu estava sempre querendo focar em projetos novos, desafios novos. Talvez fosse excesso de entusiasmo”, completou. Conclusão cirúrgica: de fato, o “espírito livre” lhe impediu de encontrar a estabilidade necessária para se tornar um dos três maiores nomes da história do motociclismo e, quiçá, um dos 10 maiores da história da F1.

Não faz mal. Afinal, também foi essa característica de sua personalidade o que lhe deu coragem para arriscar tudo e virar um gigante sobre duas e quatro rodas, o que por si já é uma enormidade.

Mas, afinal, que diacho Hegel tem a ver com tudo que foi aqui escrito? Chegou a hora de explicarmos. Seguindo suas premissas temporais, concluiremos que nenhum outro ás foi capaz de repetir o feito de Surtees não por medo de um futuro incerto, mas sim por conta da infinitude de seu feito. O ímpeto do inglês o levou a subverter a lógica 50 anos atrás, sendo agraciado com sucesso duplo por isso. O respeito ao passado faz com que os volantes do presente entendam a dificuldade e o tamanho de sua conquista.

Casey Stoner tentou algo minimamente parecido na V8 Australiana, e sucumbiu. Valentino Rossi flertou com o mesmo caminho pela Ferrari na própria F1, mas acabou optando pela segurança de continuar onde estava. No caso de Márquez, podemos afirmar com tranquilidade que, infelizmente, não vamos vê-lo brigando para vencer um GP de F1 com Lewis Hamilton ou Sebastian Vettel. Em resumo, o passado hegeliano não exige de nenhum dos ases da MotoGP atual repita a epopeia tão singular que “Big” John já selou. Melhor assim. Sua conquista está carregada de infinitude e magnitude únicas. É um nunc stans.

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