Matra V12: o motor que cantava uma oitava acima de todos os outros
Se os propulsores usados em competições automobilísticas fossem comparados a uma orquestra clássica, os turbocomprimidos representariam os instrumentos graves de metais: os 4-cilindros seriam as tubas e os 6-cilindros, trombones e trompas. Os V8 naturalmente aspirados seriam como pianos, cravos e órgãos, movimentados por teclas. Os V10 seriam como oboés e flautas, peças de madeira e sopro, enquanto os V12 fariam as vezes de instrumentos agudos de corda.
Se alguém tivesse que se destacar entre todos eles, ficando responsável pelos solos, certamente seria o V12 construído pela Matra entre fim dos anos 60 e começo dos anos 80. Apesar da forte concorrência, pode-se afirmar que foi o propulsor que mais encantou fãs do mundo inteiro por seu ronco primoroso. Um ruído diferente, rouco, trepidante e subdividido em uma parte grave, presente nas desacelerações e retomadas, e outra algumas oitavas mais aguda. Esta soava mais alto que qualquer outro motor da época, consumindo os ouvidos conforme cresciam os giros e o bólido rumava ao fim de uma longa reta.
Até hoje o som desta usina é motivo de culto entre entusiastas. Não acredita? Pois então entre no YouTube, digite “Matra V12″ e conte por si mesmo os resultados. O vídeo abaixo, de uma exibição com o MS11 usado por Jean-Pierre Beltoise e Henri Pescarolo (apenas no GP do Canadá) durante a primeira temporada completa da montadora francesa como equipe oficial da F1, em 1968, é um deles.
Uma pena que, técnica e arquitetonicamente, o 12-cilindros da esquadra azul não tenha permitido grandes voos na principal categoria do automobilismo mundial. Resta o consolo de saber que, ao menos, a unidade de canto tão sedutor levou nomes como Graham Hill, Pescarolo e Gérard Larrousse à glória nas não menos importantes 24 Horas de Le Mans, bem como ao sucesso no antigo Mundial de Resistência.
Ato I – a tempo giusto
Antes de explicarmos o nascimento do clássico V12, é preciso situar o surgimento da Matra Sports. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial uma fabricante da França não obtinha sucesso efetivo no esporte a motor, deixando espaço para que representantes britânicas, alemãs e italianas reinassem sozinhas. A fim de reverter tal escrita, a Matra comprou o estúdio de René Bonnet, projetista conhecido por criar modelos bastante refinados aerodinâmica e mecanicamente, porém pouco rentáveis, e usou sua expertise para aprimorar projetos voltados às pistas.
Usando chassis monobloco em alumínio, solução inovadora para a época, a divisão esportiva obteve impressionante sucesso na F3 e na F2 em meados da década de 60, revelando ou fortalecendo nomes como Jackie Stewart, Jacky Ickx, Beltoise e Jean-Pierre Jaussand. O próximo passo, naturalmente, seria a F1. A escuderia iniciou a empreitada no fim de 67, usando para isso um modelo baseado no bólido de F2, o MS5. Para o ano seguinte, a cúpula decidiu apostar em duas frentes: enquanto Stewart correria com o MS10, projeto convencional equipado com o confiável Ford Cosworth DFV V8, Beltoise serviria de “cobaia” para testar o recém-criado V12 no MS11.
Ato II – adagio
O propulsor fora feito em parceria com a Simca, subsidiária da Chrysler na Europa e que tinha o trunfo de ter feito parte, poucos anos antes, das operações de Fiat e Ford na França. O motor de 3 litros, batizado de MS9, reunia dois blocos de magnésio e seis cilindros cada, montados com inclinação de 60 graus e dotados de um moderno sistema de injeção eletrônica com duplo comando no cabeçote e quatro válvulas por cilindro. O sistema de escape também inovava, com coletores posicionados nos flancos da usina, ao invés de centralizados. Apesar de promissor, o conceito não rendeu o esperado na prática: gerava apenas 390 cv a 10.000 giros (potência que, posteriormente, foi aumentada para 395 e 400 cv), contra 420 cv dos Cosworth. Além disso, era um motor pesado (cerca de 200 kg) e deveras beberrão, um nó górdio típico dos 12-canecos.
Ato III – fuga
N’outras palavras, o fracasso foi retumbante, a ponto de levar o chefe das operações, Jean-Luc Lagardère, a dar um passo atrás e tirar um ano sabático em 69. “Como assim? Jackie Stewart não foi campeão daquela época correndo pela marca francesa?”, perguntar-se-á o leitor mais atento. Sim e não. Os lendários MS80 eram obra da Matra, fato, porém confeccionados e entregues a Ken Tyrrell, antigo dirigente do estafe nas séries de base, e que agora administrava um time de forma independente na F1. O garagista bretão uniu o precioso monoposto de Gérard Ducarouge ao imbatível DFV, montando o conjunto perfeito para que Jackie Stewart faturasse seis das 11 etapas realizadas, tornando-se campeão mundial com sobras.
Enquanto isso, a montadora preparava uma nova configuração do V12, agora rebatizada MS12 e pronta para chegar a 425 cv (a 11.000 rpm), e um novo chassi, o MS120, para regressar com time completo em 1970. Ocorre que o desempenho continuou aquém da concorrência – os DFV, à época, já passavam dos 430 cv -, e a dupla formada por Beltoise e Pescarolo teve de se contentar com meros três pódios ao longo do certame. A falta de resultados levou os engenheiros a estudarem trocar o V12 por um 12-cilindros boxer, também 3.0, montado em bloco de alumínio. A ideia não foi para frente.
Ato IV – allegro spiritoso
Os esforços na categoria de fórmula seguiram até 72, com o MS12/71 (440 cv) e o MS12/72 (485 cv). Sem conseguir o sucesso esperado, a Matra se retirou da série e resolveu apostar tudo nas provas de resistência. Sábia decisão. Com o V12 paulatinamente retrabalhado até chegar a quase 500 cv na configuração MS12/73, a escuderia muniu o clássico protótipo MS670 e suas respectivas derivações (B e C) com um coração forte e confiável o suficiente para conquistar Sarthe três vezes seguidas (de 72 a 74). Nesses dois últimos anos, a empresa faturou ainda o bicampeonato no Mundial de Resistência. Ouça a sinfonia do MS670 no vídeo abaixo (uma compilação de diversos áudios gravados com o modelo na pista, cobertos por imagens originais ou não).
Ato V – andante ma non troppo
Satisfeita com os frutos colhidos no enduro, a companhia retirou o time de campo, mas os V12 não ficaram órfãos por muito tempo. A mediana Shadow se interessou em reingressá-los na F1 em 75, dando ao belo e negro DN7 o berro mais harmonioso de todos. Não adiantou muito: carro e propulsor não se conservavam direito. Coube à recém-fundada Ligier, nova cliente a partir de 76, a missão de devolver a Matra aos pódios e dar ao V12 de 3 litros (agora da geração MS76) sua primeira vitória na categoria, no GP da Suécia de 77 (o piloto era Jacques Laffite, a bordo do JS7).
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