ATS: o racha na Ferrari que quase criou uma concorrente

Enzo Ferrari é um reconhecido empreendedor que criou uma das marcas de carros mais apaixonantes do mundo, seja dentro ou fora da pista. Por outro lado, é também sabido de uma forma bastante geral como ele era uma pessoa difícil para se trabalhar. E em uma das discordâncias internas que criou pela maneira como conduzia seu negócio, fez com que um grupo de empregados de posições importantes deixasse sua companhia para ir fundar uma pretendente a rival, a ATS.

Note que usamos a palavra “pretendente” porque a ameaça, apesar de ter sido constituída, nunca nem chegou perto de arranhar ou fazer cócegas na Ferrari. De qualquer maneira, a história da ATS é um caso interessante. Além disso, mostrou a força da Ferrari e a capacidade de Enzo reinventar a empresa.

Tudo começou muito por conta de uma fase muito difícil para o Comendador Enzo fora das pistas. Em 1956, o filho do empresário italiano, Dino Ferrari, morreu aos 24 anos, vítima de uma doença degenerativa que lhe causou distrofia muscular. Dino trabalhava junto do pai e estava construindo um motor V6 a ser utilizado em um futuro GT da marca. Sua perda teve um impacto emocional muito forte em Enzo.

Só que as coisas piorariam ainda mais. Um ano antes, a Ferrari já tinha visto Alberto Ascari, um dos ícones do automobilismo italiano na década de 50, morrer durante uma sessão de testes em Monza. Em 57, foi a vez de Alfonso de Portage perder a vida em um carro da escuderia durante uma edição da Mille Migla.

Na temporada seguinte, a Ferrari venceu o campeonato de pilotos da F1 com Mike Hawthorn, mas passou por uma temporada complicada, como já contamos aqui no Projeto Motor, em que dois de seus pilotos, Luigi Musso e Peter Collins, morreram em acidentes dentro da pista. O próprio Hawthorn também perderia a vida poucos meses depois em um acidente de carro numa estrada na Inglaterra.

Acidente fatal no automobilismo gera processos criminais contra os fabricantes dos carros na Itália. Colin Chapman, da Lotus, Patrick Head e Frank Williams, da Williams, também teriam problemas com isso no futuro. Você coloca essa questão em um caldeirão que já tem a morte do filho, e Enzo Ferrari precisou se ausentar um pouco do dia a dia da fábrica.

Até aí, ok. A Ferrari já tinha naquela época engenheiros e administradores bastante capazes de gerenciar a empresa durante este período complicado para o líder da empresa. Só que Enzo Ferrari resolveu colocar sua esposa, Laura, no comando das coisas a partir de 1961. A escolha em si não foi uma questão para os empregados, mas, segundo relatos da época, o problema era a maneira como a “nova gerente” passou a chefiar a operação.

Mais uma vez, segundo relatos e reportagens da época, Laura gritava com os funcionários, as vezes até os xingando. Cabe colocar aqui que machismo sempre foi um problema sério na Itália e, segundo consta, os empregados da Ferrari perceberam que a nova chefe sentiu a necessidade de mostrar que mesmo sendo mulher, que Laura manteria o pulso firme de Enzo e que poderia liderar a fábrica. Só que ao mesmo tempo, a visão interna era que ela estava exagerando na abordagem e que humilhar funcionários não faria com que eles a obedecessem mais.

Uma das pessoas que mais teve problemas com Laura foi o gerente de vendas da Ferrari, Girolamo Gardini. Os dois viviam discutindo na frente de todos, com a nova gerente geral acusando Gardini de não levar seu trabalho a sério e que isso estaria comprometendo as vendas da companhia. Esse confronto seria o estopim para uma enorme revolução.

A Grande Debandada

Sem aguentar mais a situação, em novembro de 1961, Gardini resolveu dar uma cartada e foi até Enzo Ferrari reclamar de Laura. Expôs toda a situação e disse que ser impossível trabalhar com ela. A reação do Comendador, no entanto, surpreendeu ele e muita gente. Ferrari demitiu o gerente de vendas imediatamente e o mandou embora da fábrica.

A remoção de Laura da operação não era exatamente esperada, mas ninguém poderia imaginar que a conversa poderia terminar com Gardini fora da empresa. Logo, diversos nomes importantes da Ferrari se juntaram para tentar reverter a decisão. Oito funcionários de diferentes departamentos, liderados por Carlo Chiti, engenheiro chefe da Ferrari, Giotto Bizzarini, da divisão de esporte-protótipos, e Romolo Tavoni, chefe de equipe, escreveram uma carta apontando que a demissão tinha sido injusta.

Após a entrega do documento, aconteceu então uma reunião de cerca de 45 minutos na sala de Enzo, que ele não disse nada. Apenas ouviu os argumentos dos oito líderes da revolta, que eram a elite da administração da empresa. Quando terminaram de falar, os oito funcionários foram chamados pela secretária de Enzo para saírem da sala. Lá fora, ela entregou um envelope para cada um com o pagamento de um mês extra de salário e informou que todos estavam demitidos e que não precisavam mais retornar à fábrica.

Enzo Ferrari, Carlo Chiti e Giotto Bizzarini (Foto: Reprodução/ATS)

Se a demissão de Gardini já era inesperada, mandar embora os principais nomes da engenharia, time de competição e outros departamentos importantes da administração da Ferrari parecia uma total loucura. A Ferrari tinha sido campeã mundial da F1 e vencido as 24 Horas de Le Mans em 61. Por isso, ninguém esperava que o Comendador não ia tentar apaziguar a tensão e manter sua equipe tão vencedora.

Era a forma de Enzo dizer para o resto de seus funcionários para não questionarem ou desafiarem suas decisões. Mesmo assim, ele estava enxotando de sua equipe os principais responsáveis por desenvolverem seus novos modelos da F1 e para Le Mans, além das pessoas que gerenciavam os times nas pistas. Como ressurgir disso?

Ferrari resolveu apostar internamente e promoveu alguns jovens engenheiros e projetistas como Mauro Forghieri e Sergio Scagiletti, que nas décadas seguintes se tornariam grandes ícones da escuderia.

Do outro lado, os demitidos resolveram não ficarem quietos. Se juntaram e fundaram uma nova empresa, que produziria esportivos de rua e carros de F1.

A formação da ATS

Chianti e Bizzarini chamaram os outros demitidos da Ferrari e fundaram a Automobili Turismo e Sport, que ficaria conhecida pela sigla ATS. Eles iriam projetar, construir e competir carros com o objetivo específico de rivalizar com a Ferrari.

Claro que para uma empreitada como essa, não adianta só ter boas ideias. Mas é preciso ter dinheiro. Muito dinheiro. A ATS, no entanto, logo encontrou um financiador. O Conde Giovanni Volpi era um rico aristocrata da região de Veneza que gostava de automobilismo. Herdeiro de uma fortuna ainda jovem, ele era um fiel da Ferrari.

Volpi tinha fundado ainda naquele ano de 1961 a Scuderia Serenissima, pela qual inscreveu um Cooper T51 em alguns GPs de F1 da temporada, com Maurice Trintignant.  Ao ver a Grande Debandada da Ferrari, ele achou que era uma boa oportunidade de investimento dentro de um setor que ele gostava tanto. Só que seu envolvimento com projeto veio junto com uma promessa de Enzo Ferrari de que ele nunca mais poderia comprar uma Ferrari novamente. Inclusive, uma encomenda de algumas unidades da nova GTO 250 feitas pelo Conde foi prontamente cancelada pelo Comendador.

A ATS montou uma base em um galpão instalado numa fazenda em Bolonha, que fica a apenas 42 km de Maranello. O primeiro modelo a ser desenvolvido pelo time foi um esportivo de rua, o ATS 2500 GT. A ideia era que em um segundo momento, ele também pudesse ganhar versão de competição para correr em provas como Le Mans.

O carro foi apresentado no Salão de Paris de 1963 e tinha linhas bastante esportivas, além de ser o primeiro italiano do tipo com motor traseiro, um dos primeiros GTs do mundo. O propulsor era um V8 de 2,5 litros que desenvolvia em torno de 215 cavalos. A estrutura era toda tubular, reforçando o apelo esportivo. Era basicamente um carro de competição que também podia ser utilizado nas ruas.

O 2500 GT era para se tornar o cartão de visitas da ATS
O 2500 GT era para se tornar o cartão de visitas da ATS

Alguns meses antes do lançamento, na metade de 1963, a ATS também começou a trabalhar no seu carro de F1, o Tipo 100. Chiti e Bizzarini fizeram o projeto e encomendaram a produção para empresa de aeronáutica Sicula, baseada em Palermo, na Sicília. O carro depois seria enviado em partes de navio e montado na fazenda de Bolonha.

O chassi era extremamente baixo e com um logo entreeixos, bastante diferente do que se via em outros modelos do grid da F1 na época. Tudo como forma para reduzir o arrasto aerodinâmico. Bizzarrini queria usar um motor V12, porém, Chiti achou melhor instalar um V8 de 1,4, litro, para encontrar o melhor compromisso entre peso e potência ao mesmo tempo de encaixar melhor o equipamento dentro do baixo Tipo 100. O chassi era feito em alumínio e as rodas em magnésio, como tentativa de reduzir ao máximo o peso do conjunto.

Com a Ferrari em sérios problemas por conta da falta de uma equipe mais experiente, a temporada de 1962 acabou sendo problemática para o time. A equipe ficou apenas na sexta posição no campeonato de construtores. Assim, não foi difícil convencer o campeão de 61 pela escuderia, Phil Hill, e seu companheiro Giancarlo Baghetti a entrarem no projeto da ATS no início de 1963 para realizarem os primeiros testes e desenvolvimento.

Para correr, Volpi rebatizou sua equipe de Scuderia SSS Repubblica di Venezia, sendo o SSS em referência aos três “S” da palavra Serenissima antes da óbvia homenagem à cidade de sua família. A ideia era que o time se tornasse um braço esportivo da ATS para colocar os carros para competirem na pista.

Problemas financeiros e esportivos da ATS

Tudo parecia perfeito: os melhores engenheiros e projetistas vindos da Ferrari, apoio financeiro de um rico amante do automobilismo, pilotos vencedores e experientes. O que poderia dar errado para ATS? Bem, muita coisa.

Para começar, a administração da coisa toda foi horrível. Com pouca estrutura e dois projetos grandes nas mãos (o 2500 GT e o Tipo 100 de F1), a empresa não focou direito em nenhum dos dois. O dinheiro foi mal investido e ficou mal dividido em melhoria da fábrica, projetos e na produção propriamente dita dos dois carros com os quais a empresa se comprometeu.  

As brigas internas pioraram ainda mais a situação. Cansado de não ser ouvido, Bizzarrini deixou o projeto ainda em 62 e aceitou uma proposta para ir trabalhar na Lamborghini. Volpi também estava com problemas com seus sócios na Sereníssima, o industrial italiano Giorgio Billi e o magnata boliviano Jaime Ortiz-Patino. Após ver também a saída de Bizzarrini, ele comprou a equipe de corridas e deixou de financiar a construção dos novos carros.

Assim, na fase final dos projetos, começou também a faltar dinheiro. Para se ter ideia, após a apresentação do 2500 GT, apenas oito unidades foram produzidas pela empresa.

Giogio Billi, no entanto, apesar de não ser um apaixonado por carros de corrida como Volpi, resolveu permanecer com Chiti e seguir investindo na ATS, que também passaria a dar o nome para a equipe de corrida. O Tipo 100 foi apresentado ao público e imprensa em uma cerimônia em Bolonha em dezembro de 1962.

Curta vida nas pistas e o fim

Nos testes, o Tipo 100 mostrou diversos problemas. Entre as eles, ele era muito flexível, o que deixava o carro instável nas curvas. Assim, novos tubos estruturais tiveram que ser instalados. Como consequência, o motor acabou ficando totalmente fechado, o que exigia que a estrutura fosse cortada toda vez que o V8 precisasse ser retirado para troca ou alguma manutenção mais exigente.

Desta forma, apesar da inscrição ser realizada para o GP de Mônaco de 1963, inclusive com os números #1 e #2, o time não conseguiu arrumar os carros a tempo para realizar a estreia.

A equipe técnica acreditava que ainda precisava de mais alguns meses de desenvolvimento para resolver todos os problemas, porém, Billi bateu o pé que queria os carros na pista na etapa seguinte do Mundial, em Spa, apenas 15 dias depois da prova em Monte Carlo, em 9 de junho.

ATS tipo 100 era uma tentativa de fazer um carro com linhas bem diferentes de outros F1 da época
ATS tipo 100 era uma tentativa de fazer um carro com linhas bem diferentes de outros F1 da época

Como era de se esperar, mesmo com pilotos talentosos e experientes, o resultado não foi dos mais expressivos. Hill largou em 17º e Baghetti, 20º, e ambos abandonaram com problemas de transmissão. O time voltou a estar presente na terceira etapa do calendário, em Zandvoort, mas voltou a classificar os dois carros na parte final do grid e deixar a corrida com problemas mecânicos.

A ATS não foi aos GPs da França, Grã-Bretanha e Alemanha, voltando a dar as caras apenas na Itália. Desta vez, o time conseguiu terminar a corrida, com apagados 11º de Hill e 15º de Baghetti. As prova nos EUA e México foram novas frustrações com abandonos duplos.

No final do ano, o dinheiro de Giorgio Billi acabou e a ATS foi à falência. O Conde Volpi comprou boa parte dos espólios da empresa e chegou a utilizar o 2500 GT como base para desenvolver seu próprio programa para competir em Le Mans. Os Tipo 100 foram adquiridos pelo americano Alf Francis, que os inscreveu no GP da Itália de 1964 pela equipe Derrington-Francis. Eles voltaram a quebrar durante a prova.

Com o fim da ATS, Chiti fundou uma nova empresa, a Autodelta, que se tornaria o braço esportivo da Alfa Romeo. Ele seria o responsável por projetar diversos dos motores de competição da empresa italiana, conquistando inclusive o Mundial de Marcas de 1975 e 77, antes de voltar a se envolver com a F1 pela Alfa com a Brabham.

A Ferrari, por outro lado, se recuperou bastante rápido de seu racha e voltou a conquistar o Mundial de F1 tanto de pilotos, com John Surtees, quanto de construtores já em 1964.

Em 2012, a marca ATS foi revivida por investidores, com os lançamentos de uma versão moderna do 2500 GT para as ruas e outra no estilo GT para as pistas.

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