Público lotou as ruas de São Paulo para o primeiro GP internacional da cidade em 1936

Saiba como o GP de São Paulo nasceu com corrida pelas ruas da cidade

Por questões comerciais, a partir de 2021, a etapa da F1 que acontece em Interlagos deixa de usar o nome GP do Brasil e passa a ser chamada de GP de São Paulo. Foi uma das formas que a cidade e o estado encontraram de justificarem o investimento feito no pagamento das taxas do Mundial e assim terem um retorno de mídia.

A nomenclatura, no entanto, não é exatamente nova. Na década de 30, a capital paulista recebeu o GP da Cidade de São Paulo. Foi uma maneira de seguir o sucesso do GP da Cidade do Rio de Janeiro, realizado nas ruas cariocas no famoso Circuito da Gávea, do qual já contamos a história aqui no Projeto Motor.

E assim como aconteceu no Rio, como não ainda não existia um autódromo em São Paulo, a prova foi realizada nas ruas da cidade, mais precisamente na região do Jardim América. O traçado era bem menos desafiador do que o Circuito da Gávea, porém, bastante rápido.

Com o objetivo de aproveitar que as corridas na Argentina e do Rio de Janeiro estavam cada vez mais chamando a atenção de pilotos e equipes internacionais importantes, uma comissão em São Paulo foi formada em conjunto com a ACB (Automóvel Clube Brasileiro) já em 1936 e o evento foi planejado e realizado em apenas 45 dias.

O grande entusiasta da prova foi o empresário Sabaddo D’Angelo, fundador da principal marca de cigarros do país na época, a Sudan. Ele conseguiu ainda reunir outros patrocinadores importantes da indústria local para pagar cachês e oferecer uma premiação que fizesse essas estrelas correrem também pelas ruas paulistas.

Entre os favoritos, estavam os italianos Carlo Pintacuda e Attillo Marinoni da Scuderia Ferrari com seus potentes Alfa Romeo, e os argentinos Vittorio Coppoli, de   Bugatti, e Vittorio Rosa, de Hispano Suiza. Outro grande destaque era a francesa Hellé Nice, que vinha ganhando espaço no automobilismo internacional com resultados muito fortes na Europa. Em São Paulo, ela também correria de Alfa.

O Brasil também esteve muito bem representado pelos seus melhores pilotos da época vindos principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e do Sul do país. O grande herói nacional do momento era Manuel de Teffé, que também correria com uma Alfa. Com carros um pouco menos competitivos, também participaram estrelas como Chico Landi, de Fiat, e Nascimento Junior, com um Ford V8, conhecido como o “rei do volante” dos anos 1920.

O circuito

O traçado do GP de São Paulo era bastante simples e com longas retas. O eixo principal ficava na Av. Brasil. A largada, estrutura de boxes e tribunas de honra, imprensa e para cronometristas ficavam na altura da Praça América. A organização ainda montou na extensão da Av. Brasil cerca de 140 metros de arquibancadas com 1.760 lugares.

Circuito de rua do GP de São Paulo
Circuito de rua do GP de São Paulo (Reprodução)

Os pilotos seguiam pela avenida e entravam à direita na Rua Canadá. Depois, contornavam uma espécie de curvão à esquerda, onde fica a Rua Chile e seguiam em frente pelo trecho da avenida, que hoje leva o nome de 9 de Julho. Uma sequência de duas tomadas a 90°, passando pela Rua Estados Unidos, levava os pilotos de volta até a Rua Canadá.

Então, os competidores faziam mais uma tomada em 90° à direita para pegarem a Av. Brasil no sentido contrário da primeira passagem. E aí, seguiam por uma longa reta até um contorno de 180° na Rua Atlântica (que na época tinha a alcunha de avenida), para retornarem ao ponto inicial do traçado, na Praça América.

No total, o circuito tinha 4.250 metros de extensão. No trecho das duas grandes retas da Av. Brasil, os carros alcançaram nos treinos velocidades acima dos 180 km/h. Nestas sessões de reconhecimento, Pintacuda foi o mais rápido com o tempo de 2min09s.

A corrida e o final trágico

O I GP Cidade de São Paulo aconteceu no dia 12 de julho de 1936. A organização recebeu 33 inscrições e 19 pilotos alinharam no grid após inspeções técnicas e médicas.

Os ingressos foram colocados à venda de forma antecipada e em um posto no Clube Paulistano no dia da prova. Eles se esgotaram rapidamente. O Automóvel Clube Brasileiro escolheu a Rádio Cruzeiro do Sul como a estação oficial da prova, transmitindo seu sinal para outras 34 rádios pelo Brasil.

A grande preocupação do dia, no entanto, foi com a segurança. Ruas no entorno do traçado foram fechadas com arame farpado e cavaletes. Mas o público sem ingresso começou a chegar no local da prova ainda por volta da meia-noite para tentar invadir a tribuna ou se amontoar na beirada do circuito antes que o reforço da polícia chegasse. Pela manhã, a região já estava tomada.

Foram posicionados gradis e cordões de isolamento para isolar o circuito. Além disso, fardos de alfafa foram colocados nas calçadas, em pontos em que algum acidente poderia acontecer. Mas o público, em polvorosa com o evento, esticava ao máximo os cordões para ficar mais próximo da pista.

O grande problema – e temor de todos – era com as pessoas atravessando a pista, o que abria a chance para atropelamentos. Os relatos da imprensa da época, como do jornal O Estado de S. Paulo, é que a polícia teve muito trabalho para conter as pessoas que queriam passar de um lado para o outro da pista, com esperança de uma visão melhor. A corrida chegou a ser atrasada em meia hora e batedores ficavam circulando tentando organizar a algazarra.

Boxes montados na Praça América, na Av. Brasil, para o GP Cidade de São Paulo

A ordem do grid foi definida por sorteio. Os representantes da Ferrari, por conta de seu grande favoritismo, se propuseram largar na última fila, o que foi aceito pelos concorrentes. Quando os carros partiram, o público vibrou ao ver Chico Landi, que tinha saído em 10º, completar a primeira das 60 voltas previstas na liderança. Mas isso durou pouco. Com o decorrer da prova, os favoritos começaram a tomar conta das primeiras posições. Na sexta passagem, Pintacuda já era o ponteiro com sua Alfa.

A corrida teve várias escorregadas, principalmente na curva para a Rua Canadá, feita após forte freada ao final do retão da Av. Brasil. Ali, os pilotos saíam e chegavam a bater nos blocos de alfava. Eles perdiam tempo, mas a maioria conseguia retornar.

Nas voltas finais, os italianos Pintacuda e Attillo Marinoni, ambos de Alfa, sobravam e seguiram em frente para concretizar a já esperada dobradinha. Mas o público vibrava com a intensa briga pelo terceiro lugar entre o brasileiro Manuel de Teffé e a francesa Hellé-Nice.

Na última volta, no entanto, um grande acidente envolvendo os dois acabou marcando o dia. Helle Nice perdeu o controle de sua Alfa Romeo e foi para fora do circuito em alta velocidade. O carro decolou e arremessou a pilota para longe. Cinco pessoas morreram, sendo um espectador e quatro militares que faziam a segurança. Um deles perdeu a vida ao absorver o impacto do corpo da francesa. Outras 12 pessoas se feriram gravemente com a batida do carro na arquibancada e 18 sofreram lesões leves.

Helle Nice foi levada para o Sanatório Santa Catharina, onde recebeu os primeiros socorros. Ela sofreu uma concussão cerebral e ficou em coma por três dias. Ela se recuperou bem e recebeu alta três meses depois.

Um inquérito chegou a ser instaurado para entender se o acidente foi causado por falta de segurança no circuito ou se por uma batida entre os pilotos. Em pesquisas em fontes da época, várias versões foram encontradas, e aqui também podemos ver certo peso de machismo contra Helle Nice em muitas delas. Alguns jornais acusaram a francesa de fechar Manuel de Teffé, o que teria iniciado a sequência de toques que arremessou seu carro para fora da pista.

Uma das versões mais citadas e historicamente aceitas, no entanto, é que um espectador resolveu cruzar a pista bem na hora que os dois passavam pelo setor de alta da Av. Brasil. Para piorar, ele ainda descolou um bloco de alfafa para dentro do traçado. Ao se assustar com a cena, Helle Nice teria perdido o controle de seu carro.

GP de São Paulo serviu como semente para Interlagos

Após o evento, duas coisas ficaram claras para autoridades da cidade de São Paulo, patrocinadores e comunidade do automobilismo. A primeira era que o esporte a motor tinha um potencial enorme na capital paulista tanto pela forma como mexeu com o público como também incentivou investimentos do empresariado local e fez turistas do interior se deslocarem para a cidade para acompanharem a corrida.

A segunda era que a prova em um circuito de rua era bastante complexa do ponto de vista de organização e segurança. Diante dessas conclusões, o Automóvel Clube do Brasil se juntou ao britânico Luiz Romero Sanson para revisitar um projeto de anos antes do engenheiro para a construção de um autódromo na região entre as represas Billings e Guarapiranga.

Desta forma, nasceu o Autódromo de Interlagos, que foi construído nos anos seguintes e inaugurado em 12 de maio de 1940, com um novo GP de São Paulo. Nome de prova que agora não só volta ao automobilismo, como ainda passa a fazer parte do Mundial de F1.

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