Hamilton descobriu em 2009 que mentira realmente tem perna curta
(Foto: Daimler AG)

O dia em que Hamilton foi desclassificado por mentir aos comissários da F1

Você já viu um piloto ser desclassificado na F1 por mentir para a direção de prova? Pois saiba que isso já aconteceu, e com ninguém menos do que Lewis Hamilton. No GP da Austrália de 2009, o inglês deu um depoimento inverídico a respeito de um concorrente (na ocasião, Jarno Trulli, da Toyota), mas foi posteriormente flagrado, o que o fez ser excluído da corrida. O episódio ficou conhecido como “Liegate”, ou, em português, “Escândalo da Mentira”.

Hamilton vivenciava um início de carreira meteórico na F1. Em sua primeira temporada na categoria, já pela McLaren, o inglês foi vice-campeão mundial, apenas um ponto atrás de Kimi Raikkonen, da Ferrari. No ano seguinte, derrotou Felipe Massa para se tornar, até então, o campeão mais jovem da história.

Porém, em 2009, sua realidade mudaria significativamente. A McLaren não se adaptou bem às intensas mudanças no regulamento técnico, o que modificou significativamente o conceito aerodinâmico dos carros e trouxe de volta os pneus slick, além de proporcionar a estreia de recursos como o KERS. Isso fez com que a equipe inglesa caísse ao pelotão intermediário, sendo que forças surpreendentes, como Brawn GP e Red Bull, assumiriam as rédeas da categoria.

Para o GP de abertura da temporada, na Austrália, Hamilton chegou com expectativas bastante modestas. “Acho que, se pensarmos de forma otimista, poderemos marcar um ponto. Mas acho que não será o caso”, comentou. “Precisamos permanecer otimistas, já que tudo pode acontecer. Mas, em termos de ritmo puro, não acho que somos rápidos o bastante.”

O discurso não era blefe, tanto que o inglês ficou somente em 15º na sessão classificatória, sendo que ele ainda perderia posições no grid devido a uma punição por troca de câmbio. Ou seja, em sua primeira corrida como campeão mundial, Hamilton largaria somente em 18º, à frente apenas de Jarno Trulli e Timo Glock – que foram rebaixados ao fundo do grid devido a uma irregularidade técnica dos carros da Toyota.

A recuperação de Hamilton na corrida

Parecia que a corrida seria um pesadelo para Hamilton e a McLaren, mas até que não foi bem assim. O inglês foi escalando o pelotão aos poucos, tanto com ultrapassagens como com abandonos de rivais que estavam à sua frente. Foi assim que ele subiu até um surpreendente sexto lugar, sendo que ainda havia margem para melhorar mais.

A três voltas para o fim, Sebastian Vettel, da Red Bull, e Robert Kubica, da BMW, bateram e abandonaram enquanto lutavam pelo segundo lugar, o que fez Hamilton subir para quarto – atrás apenas de Jenson Button e Rubens Barrichello, da Brawn, e de Jarno Trulli, da Toyota. Como o acidente espalhou vários detritos, a direção de prova acionou o safety car, que ficaria na pista até a bandeirada final – o que significava que Hamilton estava com uma encorajadora quarta posição garantida, com a corrida virtualmente encerrada.

Mas ainda havia tempo para mais uma controvérsia. Durante o safety car, Trulli escapou da pista na Curva 15 do circuito de Melbourne e passeou pela grama, o que abriu brecha para Hamilton passá-lo. O piloto da McLaren completou a volta 56 em terceiro, à frente de Trulli, mas pouco depois as posições se inverteram novamente – o italiano retomou a posição na pista, ainda com o safety car acionado. A corrida foi completada nesta ordem, mas a direção de prova ficou em alerta para analisar a dinâmica das trocas de posição entre Trulli e Hamilton.

A polêmica começa

Trulli chegou a ser desclassificado na Austrália (Foto: Toyota)

Duas horas depois da bandeirada, veio a notícia: Trulli recebeu uma punição de 25s, equivalente a um drive-through, por ter ultrapassado Hamilton durante o safety car. Isso promoveu o inglês a um pódio que parecia fora de alcance no começo dos treinos livres. Mas qual foi a base da FIA para aplicar a punição?

Em depoimento à FIA, Trulli explicou que só ultrapassou Hamilton novamente porque o inglês reduziu a velocidade significativamente, o que até o fez pensar que o piloto da McLaren enfrentava problemas mecânicos. O regulamento esportivo da F1 prevê ultrapassagens sob safety car nestas circunstâncias, sobretudo quando um carro “reduz a velocidade significativamente com um problema óbvio”.

No entanto, não houve um consenso sobre a dinâmica dos fatos. Hamilton e o diretor geral da McLaren, Dave Ryan, rebateram a versão de Trulli e disseram que isso não aconteceu – Hamilton não reduziu a velocidade, nem deu passagem a Trulli, o que tornava a manobra do piloto da Toyota irregular. Portanto, a FIA julgou ter evidências suficientes para aplicar a punição a Trulli. A Toyota cogitou protestar, mas desistiu devido ao fato de que punições como drive-through não são passíveis de apelação.

Foi com este clima que a F1 se preparou para a segunda etapa da temporada, na Malásia, que aconteceria uma semana depois. Só que, no intervalo entre as provas, novas evidências para o caso surgiram.

Veio à tona uma entrevista de Hamilton instantes após a bandeirada na Austrália, na qual ele admitiu que, depois de passar Trulli, “foi instruído pela McLaren a dar passagem novamente ao italiano”. Isso contradizia o que ele e a equipe disseram à direção de prova, o que fez com que a FIA novamente investigasse o caso.

Hamilton e Ryan foram convocados mais uma vez para depor, e a dupla manteve o discurso de Melbourne: não houve instrução alguma para que Hamilton devolvesse a posição a Trulli. Mas, desta vez, a FIA acessou as conversas pelo rádio entre Hamilton e a McLaren, o que mostrou qual foi a real história.

A reviravolta no caso

As conversas pelo rádio ilustravam com fidelidade a dinâmica dos fatos. Trulli escapou da pista na Curva 15 e viu Hamilton passá-lo. Imediatamente o piloto inglês notificou a McLaren do que havia ocorrido: “A Toyota escapou da pista na última curva. Eu o ultrapassei, isso é OK? Ele passou reto e escapou da pista…”

Cerca de 40s mais tarde, a McLaren ordena a Hamilton: “Lewis, você precisa deixar a Toyota passar. Deixe-o passar agora.” Hamilton obedece de imediato ao reduzir a velocidade significativamente, de modo que Trulli volta a ficar à frente.

O italiano, inicialmente, não entende a postura de Hamilton, tanto que ele próprio desacelera para se certificar de que o inglês não o deixou passar por engano. Mas o piloto da McLaren segue atrás, permanecendo no quarto lugar.

Poucos instantes depois, a McLaren aparenta mudar de ideia: “OK, Lewis, permaneça à frente por enquanto. Permaneça à frente. Nós voltaremos a falar com você em breve. Estamos conversando com Charlie [Whiting, então diretor de provas da F1].” Só que Hamilton responde: “Eu já o deixei passar.”

Ou seja, as conversas mostraram duas coisas que Hamilton e a McLaren negaram repetidamente em seus depoimentos à FIA: houve uma ordem para que o inglês devolvesse a posição, e Hamilton deixou Trulli passar de forma deliberada.

Com a mentira descoberta, a FIA tomou as decisões. Hamilton foi desclassificado do GP da Austrália com base no artigo 151c do Código Desportivo Internacional, que dizia que nenhum competidor poderia “adotar atitude fraudulenta para prejudicar os interesses de um rival ou do automobilismo em geral”. Trulli, por sua vez, retomou o terceiro lugar e voltou ao pódio.

Assim que o caso foi exposto, Hamilton se desculpou repetidamente pelo ocorrido: “Para mim, a situação é definitivamente a pior coisa pela qual já passei na vida. Não consigo expressar o quanto lamento. Peço desculpas à minha equipe e à minha família pelo constrangimento. É uma situação muito, muito vergonhosa.”

A McLaren também demitiu Dave Ryan, que estava na equipe desde 1974. No entanto, o time temia uma punição mais grave, especialmente pelo “Escândalo da Mentira” ter vindo à tona pouco tempo depois do caso de espionagem da F1 de 2007.

A FIA prometeu analisar o caso mais a fundo em reunião do Conselho Mundial, ainda em abril. O veredito pegou leve com a McLaren: a equipe recebeu três corridas de punição em efeito suspensivo. Ou seja, a pena só seria aplicada se, no intervalo de um ano, evidências mais graves sobre o caso surgirem, ou se a McLaren novamente infringisse o artigo 151c do Código Internacional.

Tais novas infrações não aconteceram. Na verdade, a McLaren se recuperou ao longo de 2009, de modo que Hamilton venceu duas corridas para terminar em quinto no campeonato. Uma boa recuperação para um começo tão conturbado.

Tempos mais tarde, Hamilton disse que o “Escândalo da Mentira” do GP da Austrália de 2009 quase o fez desistir de imediato da F1. Você já imaginou como a categoria seria se isso tivesse acontecido?

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