Pega interno entre Jones e Reutemann pode ter custado título de 81 à Williams
(Foto: Williams F1)

Jones-Reutemann: a louca briga que custou um título à Williams em 1981

“Jones-Reut”. Pode não parecer, mas a reunião desses 10 caracteres em uma mesma placa custou à Williams um título mundial. A mensagem, comum em muitos momentos do automobilismo mundial e ininteligível para quem não acompanha o esporte a motor, mudou os rumos de um campeonato que tinha tudo para ser tranquilo. Carlos Reutemann decidiu desobedecer a uma ordem de equipe para vencer o polêmico GP do Brasil de 1981. Ganharia um inimigo, Alan Jones, e faria uma temporada já confusa nos bastidores transbordar em drama.

“Só se for no seu rabo, camarada”. O argentino estava com 39 anos. Vivia o arrebol da carreira e teria naquele certame sua última chances de ser campeão. Não que Lole fosse tão obcecado por isso. “Se o título vier, ótimo. Caso não venha, o sol continuará a nascer no leste e a se por no oeste”, sentenciou certa vez. Talvez tenha sido a ambiguidade entre o sujeito apto a ignorar a vontade dos chefes para triunfar em um GP, mas não tão capaz assim de lidar com as pressões de disputar um campeonato inteiro, o que levou Reutemann a nunca alcançar a glória máxima na F1.

“Jones-Reut”. Antes de mais nada, precisamos dar ao nobre leitor uma breve prévia do ocorrido, o que passa necessariamente pelo histórico e pela personalidade dos dois antagonistas de nossa história. Jones, australiano de humor sarcástico e sem papas na língua, deu à Williams seu primeiro título de pilotos e construtores em 1980. Considerado peça-chave para transformar a operação numa esquadra vencedora no fim dos anos 70, devido à forma direta e pragmática com que trabalhava junto a Frank Williams e Patrick Head, o oceânico conquistou também os mecânicos da escuderia, muito graças ao estilo brucutu e sem frescuras.

“Reut-Jones”. Descendente de suíços, Reutemann enxergava o mundo sob ótica oposta. Era quieto, introspectivo e um tanto inseguro, embora político (não à toa, tornou-se governador da província de Santa Fe nos anos 90) e esnobe (quem nunca não ouviu/leu a famosa história do capacete que Nelson Piquet, ainda como mecânico, teve que lustrar nos boxes da Brabham durante o GP Garrastazu Médici, prova extra-campeonato realizada no Brasil em 1974?). Em seus bons dias, não devia nada a nenhum piloto de ponta de sua era. Provou isso em diversas exibições a bordo de Brabham e Ferrari. O problema era manter a constância durante todo o calendário: o sul-americano tendia a nunca se sentir confortável e suficientemente amparado dentro de alguma equipe. “Nunca senti que alguma das equipes pelas quais pilotei tenha me dado atenção plena”, reclamou certa vez.

“Só se for no seu rabo, camarada”. Após uma campanha frustrante pela Lotus em 79, Reutemann teve de aceitar um contrato de segundo piloto da Williams para não ficar a pé no ano seguinte. No documento constava que ele deveria, prioritariamente, ajudar Jones a ser campeão do mundo, o que significava ceder posição ao colega quando solicitado. Tal medida não chegou a ser necessária, mas o fato é que todas as atenções estavam voltadas a fazer de Alan, o queridinho de Frank, o detentor da primeira láurea suprema da Williams. Disso depreendemos que as chances de Lole ser campeão naquele momento eram praticamente nulas.

“Jones-Reut”. Difícil julgar se a equipe errou ao privilegiar Jones em 1980, mas o fato é que, uma vez cumprido o objetivo, não faria sentido manter o acordo um ano depois. Era o que Reutemann pensava e, logo depois do encerramento da estação de 81, foi o que o próprio Frank Williams admitiu ao jornalista bretão Nigel Roebuck. “Por que diabos eu teria que me preocupar com qual piloto estava marcando pontos para meu time? No fundo são todos meus funcionários do mesmo jeito”, sentenciou. Naquele 29 de março do GP do Brasil, porém, não era assim que o dirigente pensava. Ele e Head queriam ver Jones no alto do pódio, especialmente porque Alan já faturara a rodada de abertura do certame, em Long Beach, e tendia a disparar na tábua de pontos.

Alan Jones e seu companheiro de Williams, Carlso Reutemann, ao fundo, também em seu carro
Alan Jones e seu companheiro de Williams, Carlso Reutemann, ao fundo, também em seu carro (Foto: Williams F1)

“Reut-Jones”. Por que Reutemann concordaria com isso, sendo que o campeonato estava só começando? De fato, não concordou. Mesmo com a famigerada placa tendo sido mostrada por Patrick Head em dois momentos da prova (durante cinco voltas consecutivas, ainda na fase intermediária, e também nos três giros finais), o argentino se segurou firme à frente do companheiro e confirmou o triunfo. Detalhe: tudo isso sob chuva, uma condição que ele detestava.

“Só se for no seu rabo, camarada”. Enfim, Reutemann criou o estopim para a guerra. Terminado o páreo, principiaram as provocações. “Sempre corri para vencer. Se for para entregar uma vitória, prefiro largar o carro na grama e ir para minha fazenda na Argentina”, bradou o hermano. “Sua atitude mostrou que não posso mais confiar nele”, reclamou Jones. No fim de semana do GP na terra natal de Carlos, torcedores que foram ao Oscar Gálvez ergueram uma placa com a inscrição “Reut-Jones”, ironicamente posicionando o nome do ídolo à frente.

“Reut-Jones”. A relação entre os dois ases, que nunca fora além da cordialidade, azedou de vez. Ambos deixaram de se falar e praticamente racharam a Williams. Com seu jeitão aussie e expansivo de ser, Jones pouco se importava em detratar o latino, seja para imprensa, pilotos ou mecânicos. Lole respondia com a habitual introspecção, tentando passar, através do ar de lorde suíço, uma suposta superioridade e indiferença em relação às provocações do arquirrival.

“Jones-Reut”. Se Reutemann tentava não se abalar com a guerra interna, aos poucos sua insegurança passou a dominar declarações e ações. Após o GP da Inglaterra, ao sair da insossa nona colocação na grelha para terminar num ótimo segundo lugar, abrindo 17 pontos sobre Piquet na tabela, o ás confidenciou: “Tudo está dando certo para mim. Certo até demais, e é isso que me preocupa”.

“Só se for no seu rabo, camarada”. Algumas decisões erradas, por parte de Reutemann e da própria Williams, permitiram ao oponente brasileiro e à Brabham pulverizar a diferença na segunda metade da temporada. A troca dos pneus Michelin para os Goodyear no meio do ano, por exemplo, demandou certo tempo de adaptação entre os GPs da França e da Alemanha. Em Montréal, Frank levou por engano arcos de chuva defasados, o que comprometeu o desempenho do FW07C naquele páreo realizado sob forte precipitação. Em Monza, outra prova chuvosa, Reutemann teve atuação apagada e só não saiu no prejuízo porque Piquet quebrou na volta final, dando-lhe de graça o terceiro posto. Em Zandvoort, provavelmente sua atuação mais desastrada no ano, colidiu com Mario Andretti na volta inaugural e, mais tarde, bateu com Jacques Laffite e abandonou.

“Jones-Reut”. Ao mesmo tempo, Jones não aliviava. Nos GPs da Áustria e Itália, já sem chances de defender a taça, terminou imediatamente à frente de Reutemann. Caso tivesse cedido a segunda e a quarta posições, respectivamente, ao colega nessas duas rodadas, teria dado a ele três pontos importatíssimos na batalha contra Piquet. Isso não o interessava de forma alguma. Com tal atitude, o australiano ajudou a incutir na cabecinha perturbada do argentino a teoria de que ele estaria sendo desfavorecido.

Após intensa briga interna na Williams, Reutemann perdeu o título de 81 para Piquet na última etapa da temporada, em Las Vegas
Após intensa briga interna na Williams, Reutemann perdeu o título de 81 para Piquet na última etapa da temporada, em Las Vegas (Foto: Williams F1)

“Só se for no seu rabo, camarada”. Veio então a decisão, no estrambólico palco de Las Vegas, e Reutemann parecia disposto à redenção. Marcou a pole position logo na classificação de quinta-feira (o páreo ocorreu num sábado) e parecia imbatível no circuito improvisado dentro do estacionamento do Caesar’s Palace. Um acidente bobo na sexta, contudo, fez o time trocar o chassi. Alguns contestam a necessidade dessa mudança, e o fato é que, a bordo do monoposto novo, seja por problemas no carro ou porque velhos fantasmas passaram a assombrar Lole, o fato é que seu rendimento caiu de forma ridícula, a ponto de ser engolido por um ávido pelotão, incluindo Jones e Piquet, nos primeiros minutos após a largada.

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“Reut-Jones”. Fim de história. Após completar o GP num tétrico oitavo lugar, com Piquet em quinto, Reutemann deixou escapar sua grande chance por um pontinho. Quem foi o vencedor da corrida? Quem foi o piloto a abraçar calorosamente Piquet e a demonstrar efusiva exultação no pódio? A resposta é a mesma para as duas indagações: Jones. Apesar do duro e irônico golpe, Reutemann ainda tentou manter o tom político ao cumprimentar pela última vez o agora ex-companheiro (que anunciou sua aposentadoria semanas antes). “Que tal enterrarmos o passado, Alan?”. “Enterrar o passado? Só se for no seu rabo, camarada”. Mais do que qualquer explanação deste artigo, o diálogo de despedida entre os algozes sintetiza com perfeição quem eram e o que foi a breve e intensa rivalidade entre Alan Jones e Carlos Reutemann.

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