Benetton utilizou um Peugeot 205 de rali para testar novidades em sua equipe de F1

O Peugeot 205 usado como mula para testar novidades da Benetton

O princípio da década de 1990 foi, sem dúvidas, o período de desenvolvimento tecnológico mais intenso da F1. À medida em que os engenheiros pegavam intimidade com computadores, códigos binários, sensores e módulos, mais os carros recebiam influência da eletrônica em seu comportamento. Foi ali que se iniciaram questionamentos mais vorazes acerca do quanto os pilotos ainda são importantes no processo, discussão que perdura até hoje.

Entre as equipes mais criativas do período estava, com certeza, a Benetton. Não foi à toa que a operação financiada pela marca de roupas se tornou candidata frequente a vitórias e, pouco tempo depois, a títulos. O time de engenheiros chefiados por Ross Brawn e Rory Byrne não tinha medo de arriscar. Foi a Benetton quem popularizou o bico tubarão, por exemplo. Também usou o controle sobre as taxas de aceleração do motor e o chamado momento de inércia para criar um “controle de tração legal” no B194, bólido do primeiro título de Michael Schumacher. Pouco tempo antes, chegara a testar uma derivação do B193 com quatro rodas esterçantes.

Uma das figuras responsáveis por tamanha inventividade era o holandês Willem Toet, especializado na área de aerodinâmica. O Projeto Motor já o mencionou no artigo sobre o TC do B194. Os parceiros do FlatOut! também: repare em quem revelou a peculiar (e genial) preferência de Schumacher por um quadro de instrumentos com velocímetro triplo. Toet conta todas essas histórias em seu perfil na rede social LinkedIn. Para quem gosta de estudar sobre automobilismo, é obrigatório salvá-lo aos favoritos e dar uma lida em seus artigos.

Num desses textos, intitulado “Driving in F1 – Michael Schumacher, some background” (“A pilotagem na F1 – Michael Shcumacher, algumas informações”, na tradução livre do inglês), o engenheiro narra uma passagem curiosa. Ele menciona o fato de que ele e o colega Richard Marshall, à época chefe da área de eletrônica da esquadra, usavam um Peugeot 205 de subida de montanha para testar alguns dos dispositivos empregados aos monopostos da Benetton na primeira metade daquele decênio, inclusive o tal painel com três velocímetros.

Veja o que Toet diz, logo após inserir uma foto do hatchback elegantemente postado no contorno de uma curva:

“Eu no Peugeot 205 de subida de montanha que compartilhava com Richard Marshall. O carro era usado como mula para testar apetrechos eletrônicos. Repare no tubo pitot [Nota do editor: o tubo pitot é uma espécie de antena capaz de medir a velocidade de fluidos a partir da captação de dados como pressão dinâmica, pressão estática e pressão total (a soma das duas anteriores). Passou a ser um instrumento importante em estudos aerodinâmicos] montado acima da porta do passageiro [N.E: estamos falando de um veículo originalmente de mão inglesa, por isso o autor identificou a porta esquerda como sendo a do passageiro, não a do motorista]. A razão para testar coisas no Peugeot era ajudar o time a melhorar seu trabalho. Às vezes nós também acabávamos beneficiados, mas Richard havia sido contratado em partes porque desenvolveu um processador de dados próprio em um carro de subida de montanha, e a F1 precisava se atualizar…”

A origem de “Pug”

Projeto Motor ficou intrigado e resolveu procurar Toet para conhecer mais sobre o tal Peugeot 205. Por e-mail, o aerodinamicista nos contou com boa dose de detalhes a história do pequeno hatch. Seu proprietário original era Reg Phillips, ás conceituado nas competições de subida de montanha no Reino Unido e já falecido. Marshall, que participava de competições do tipo em suas horas vagas, adquiriu o bólido em 1992, e Toet resolveu também se aventurar nesse novo hobby.

Baseado na versão esportiva GTI, o 205 era originalmente equipado com motor 1.9 4-cilindros de origem Peugeot, porém com paredes dos cilindros afinadas para comportar pistões mais grossos. O carburador duplo da Webber logo foi trocado por um sistema de injeção eletrônica. Cabeçote com 4 válvulas por cilindro vinha do sedã 405. Com uma modificação aqui e outra acolá, potência subiu de 270 a 300 cv nos anos em que os engenheiros mantiveram o “caixotinho”.

Transmissão era montada com câmbio manual de quatro velocidades BE1, também da Peugeot, e diferencial autoblocante (ou de deslizamento limitado). Modelo possuía tração dianteira e interessante distribuição de peso de 70:30. “Era mais fácil tirar elementos da parte traseira para reduzir peso”, explicou Toet. “Mas com certeza era um carro divertido de pilotar”, acrescentou.

Além das modificações no propulsor, Toet e Marshall também fizeram pequenas mudanças nas suspensões e acrescentaram uma saia aerodinâmica no para-choque frontal. Além, é claro, de terem dotado o carrinho de alguns componentes eletrônicos experimentais. “Os dispositivos me ajudaram muito, porque basicamente me ensinaram a pilotar”, brincou o holandês.  O 205 recebeu dos então proprietários o carinhoso apelido de “Pug” (algo como “cãozinho”, numa tradução livre). No vídeo abaixo há uma rara passagem de Toet em ação com Pug numa competição de 1993 (entre 0:08 e 0:28):

O que foi testado

Segundo Toet, Pug serviu de mula para aperfeiçoar basicamente três dispositivos da Benetton: o supracitado velocímetro triplo solicitado por Schumacher; o controle de tração (o convencional, por sensores nas rodas, utilizado pela Benetton entre os GPs de Mônaco e Austrália de 1993 e proibido pela FIA ao fim daquele ano); e o controle das taxas de aceleração do motor a partir dos cortes de giro da ignição, item fundamental para emular os efeitos do TC no B194. “Você não quer colocar nada em um carro de F1 que não tenha experimentado antes, né?”, enfatizou.

O mais curioso é que, diferentemente do que o douto leitor possa ter imaginado, nada disso foi feito com a ciência dos chefes. Toet e Marshall experimentavam os aparatos em segredo. “Pug era nosso carro particular de subida de montanha, e usamos nosso conhecimento para deixá-lo mais divertido. Os benefícios que a Benetton eventualmente teve com isso jamais foram aprovados ou comunicados. Eles [os diretores]não entenderiam ou apreciariam. Na verdade, teriam pensado que estávamos levando vantagem em cima de nosso trabalho (o que estávamos, de fato). Por isso decidimos não contar nada”, relatou.

Mas, afinal, dava certo? “Com certeza. Richard podia testar suas ideias de forma privada e aprender com aquilo. Era como ter uma segunda estrutura para testes”, respondeu Toet, que deu um pequeno resumo de como o trabalho era realizado. “O processador de dados era rápido o suficiente (a resposta era sempre não)? Tal software era bom o bastante (nunca era)? O velocímetro era grande (provavelmente) e visível o suficiente (aumentar o contraste seria uma boa)? As luzes do painel tiravam a atenção do piloto? Essas eram as perguntas que usávamos Pug para responder”.

Abaixo, um vídeo gravado pelo atual proprietário do Peugeot 205 (sim, ele existe até hoje!) mostra o painel de instrumentos em fibra de carbono criado por Marshall e Toet atrás do volante. Repare como os seletores giratórios, o computador de bordo, o indicador de marcha e o conta-giros são muito similares àquilo que se via na F1 dos anos 90. Repare, ainda, na presença do comando “TC” no canto esquerdo (era o controle de tração).

Por onde anda Pug

Willem Toet participou de provas de subida de montanha com o tecnológico 205 entre 92 e 95, ano em que seguiu os passos de Schumacher, Byrne e Brown, trocando a Benetton pela Ferrari (e se mudando para a Itália, consequentemente). Richard Marshall continuou com o carro até meados dos anos 2000, conforme relato do colega, e depois o vendeu. Atualmente o bólido pertence a outro entusiasta de subida de montanha britânico, chamado Darren Balster. Para nossa sorte, Balster possui um canal no YouTube e adora publicar vídeos do velho Pug. Selecionamos dois. Neste, o hatchback exibe todos os predicados numa prova em Prescott Hill:

Aqui vamos a bordo com Balster num teste em Curborough Sprint Course, pequenino circuito usado para exibições e track days da Inglaterra:

O que essa história nos ensina é o quanto o universo da F1 pode ser mais profundo e enigmático do que imaginamos. Quem sonharia que um singelo Peugeot de subida de montanha reuniria em si os recônditos segredos de uma das escuderias mais bem-sucedidas da história da categoria? Essa não é sua única herança. Simbolicamente, Pug guarda também a essência que faz toda a paixão por esse esporte ter o mínimo de sentido.

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