Benetton B193 de Michael Schumacher

A obscura especificação do Benetton B193 que esterçava as quatro rodas

Quando o Projeto Motor cometeu a ousadia (para alguns, uma heresia) de fazer um comparativo entre McLaren MP4-8 e Benetton B193, citou en passant que a esquadra então chefiada por Flavio Briatore e liderada nas pistas por Michael Schumacher desperdiçou boa parte de seu fim de campeonato em 1993 desenvolvendo um infrutífero projeto que esterçava as quatro rodas. Na ocasião, prometemos que voltaríamos ao tema no futuro para explicar a proposta. Chegou a hora.

A obra em questão é o B193C, última especificação do projeto a competir naquela estação. A versão foi utilizada nos GPs do Japão e da Austrália, os dois derradeiros do certame, de forma tão discreta que passou despercebida até mesmo pela FIA: na revisão oficial pós-temporada a entidade creditou que Schumacher e seu companheiro italiano, Riccardo Patrese, correram em Suzuka e Adelaide com o B193B. Errado: os dois participaram de ambas as provas já montados na derivação C, porém sem o sistema de esterço das rodas traseiras ativado.

Calma que estamos contando o final da história antes mesmo de tê-la iniciado. Vale, pois, uma breve explicação. O douto leitor sabe, obviamente, que um veículo convencional de quatro rodas usa somente o par dianteiro para determinar a direção de suas manobras. Seguindo os princípios da Geometria de Ackermann, a coluna de direção é desenhada de modo a fazer com que as rodas se posicionem em angulações diferentes numa curva, sempre respeitando o fato de que a roda interna traça um diâmetro inferior à externa ao longo da perna.

No final do século XIX, pouco depois do surgimento do automóvel, engenheiros perceberam que tornar o eixo traseiro também esterçante aumentaria a versatilidade de determinados veículos. Um trator, por exemplo, trabalha com ângulo de esterço reduzido em até 25% e pode manobrar melhor se operar com as rodas de trás viradas para o sentido oposto às da frente durante uma curva. Por outro lado, se todas apontarem para o mesmo lado, então o veículo apresentará maior estabilidade e se manterá na tangência ideal em pernas de alta velocidade.

Os populares monster trucks americanos utilizam já há algumas décadas o sistema, que chegou a fazer sucesso no âmbito do rali no fim dos anos 80, com a construção do Peugeot 405 Turbo 16. Pilotado pelo mito do fora-de-estrada Ari Vatanen, o modelo bateu o recorde da subida de Pikes Peak em 1988 e venceu duas edições do Paris-Dakar em 89 e 90. Àquela altura a ideia já estava inclusive aplicada a carros de rua (especialmente japoneses), caso de Honda Prelude e Mazda MX-6. Confira no vídeo abaixo uma exibição do 4WS em funcionamento num Prelude 88:

A implatação do conceito pela Benetton

Como a Benetton entra nessa dança? Segundo reportagem da revista Racecar Engineering publicada em novembro de 2002, Rory Byrne e Pat Symonds, respectivamente projetista e diretor técnico, já haviam esboçado uma variante do conceito para a F1 em um projeto da Reynard. Quando integrados à esquadra de Enstone, resolveram aplicá-lo ao ultratecnológico B193 no final daquele ano, aproveitando os últimos resquícios de uma era de desenvolvimento desenfreado.

Vale lembrar que tal bólido era dotado de suspensão ativa, transmissão automatizada e controle de tração (a partir do GP de Mônaco). Por que acrescentar outra assistência ao pacote? Apesar da teoria exposta acima, na prática a ideia fazia pouco sentido até para os próprioa membros da Benetton. É o que expôs Steve Matchett, à época mecânico, no livro The Mechanic’s Tale (O Conto do Mecânico, numa tradução livre do inglês). “O carro certamente nem precisava daquilo: é como se os engenheiros estivessem obcecados em criar o monoposto mais sofisticado do mundo”, observou.

O mais curioso é que, conforme aponta o site F1 Technical, o B193 de quatro rodas esterçantes nasceu provavelmente com prazo de validade prestes a vencer, visto que a FIA vetara qualquer tipo de auxílio aos pilotos a partir de 94. É claro que o a proibição desse sistema em específico teria de ser discutida, mas o fato é que, para que ele funcionasse, um braço da suspensão traseira teria de ser operado por módulo eletrohidráulico, algo que poderia ser classificado como ajuda eletrônica.

Ricardo Patrese, no Benetton B193
Ricardo Patrese, no Benetton B193

Ainda assim a cúpula resolveu arriscar. Um dia após o GP de Portugal, curiosamente o único vencido pelo B193 e por Schumacher no ano, a especificação C entrou em ação no Estoril em teste privado conduzido pelo futuro multicampeão alemão e também por Patrese. Novos ensaios ocorreriam em Silverstone nas semanas seguintes, aproveitando o intervalo de quase um mês até a etapa do Japão. Os dois volantes sentiram diferença no comportamento do carro, mas não necessariamente na velocidade em curvas.

“Quando conversei com eles, ambos disseram que não encontraram nenhuma vantagem. Riccardo contou que o sistema deixava o comportamento diferente, porém de uma maneira que ele não gostava. Não notei nenhuma melhora nos tempos de volta”, criticou Matchett. O artigo da Racecar Engineering conta história um pouco diferente: Schumacher teria percebido margem para baixar os tempos de volta em até três décimos, embora também tenha estranhado as reações do bólido.

Testes durante GPs

Mesmo sem sinais efetivos de evolução, a Benetton resolveu munir todos os chassis levados a Suzuka e, posteriormente, a Adelaide, com o eixo traseiro esterçante. “Fui veementemente contra, mas a decisão estava tomada e acho que foi mais por ego do que por qualquer princípio justificável de engenharia mecânica”, rememorou Matchett em seu livro. Sua justificativa para a posição contrária era o risco técnico desnecessário frente a um ganho nulo de desempenho:

[O sistema] foi desenvolvido para ser ativado ou desativado pelo piloto quando este quisesse. Caso o fluido [do sistema hidráulico] vazasse, o eixo ficava travado com as rodas em linha reta. Não havia perigo em relação à segurança, portanto. O problema é que os canais de fluidos estavam todos conectados entre si: se um vazasse, toda a parte hidráulica entraria em pane. Sua inclusão representava um risco extra no âmbito da confiabilidade”, explicou o ex-mecânico.

Podemos dizer, pois, que Schumacher e Patrese correram com o B193C em todas as sessões das rodadas japonesa e australiana, apesar de não terem acionado as rodas traseiras esterçantes em nenhum momento de classificação ou corrida. “Os dois deram várias voltas com o sistema ativado durante os treinos livres, e vale registrar que nenhum tipo de falha foi detectado. Ainda assim, preferiram não usá-lo nas sessões que valiam”, relatou Matchett.

Uma pena, pois seria interessante ver o que o Benetton auriverde poderia fazer contra Williams e McLaren (àquela altura do certame de volta à condição de segunda força do grid) caso andasse com as quatro rodas do virando juntas. Provavelmente não mudaria em nada os resultados, mas pelo comprovaria de forma definitiva o que estamos aqui conjecturando: o conceito das quatro rodas esterçantes pode até parecer revolucionário e fascinante, mas no fim não passa de outra ideia bizarra capaz de levar até a mais competente das equipes a girar em vão.

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