O elo perdido entre Colin Chapman e a suspensão ativa na F1
Quinta-feira, 16 de dezembro de 1982. Sob o frio outonal de Norfolk (leste do Reino Unido), às vésperas do solstício de inverno, a Lotus seguia firme com os preparativos para a temporada seguinte da F1. Que teria mudanças significativas no regulamento técnico, com o banimento dos carros-asa. A esquadra, ainda liderada pelo lendário Colin Chapman, queria mais uma vez abusar da criatividade para voltar aos dias de glória perdidos desde 1978, com o título de Mario Andretti.
Várias haviam sido as tentativas pregressas. A mais recente delas, àquela altura, fora o malfadado projeto 88, que previa um carro de chassi duplo cujo corpo externo, responsável pelas forças aerodinâmicas, abraçava o interno, dotado do cockpit e dos componentes mecânicos.
O chassi externo era responsável por promover o chamado efeito solo através de enormes dutos de ar dentro dos casulos laterais e sob o assoalho. Conforme o veículo ganhava velocidade, o ar “sugava” o chassi externo para o chão, fazendo-o pressionar o chassi interno e levando a um aumento considerável da pressão aerodinâmica.
O conceito foi vetado pela Fisa e a escuderia teve de partir para um plano B. O sempre inventivo engenheiro já tinha uma carta na manga. Que só se popularizaria na F1 mais de uma década depois, ficando famosa ao ser aplicada por outra equipe, ironicamente rival direta da sua já nos anos principiais da década de 80.
A grande ideia de Chapman
Alguns meses antes de tentar colocar o 88 para correr, apenas para vê-lo vetado pelo corpo diretivo da competição, o garagista tentava resolver outro problema crônico do modelo Lotus 80: o carro gerava tanta pressão aerodinâmica através do efeito solo que se tornava praticamente inguiável. Nas frenagens, o bico oscilava de maneira brusca para cima e para baixo ao passar por qualquer ondulação, e não havia ajuste na suspensão que desse jeito.
A fim de solucionar esse comportamento, Chapman contratou os serviços do professor David Williams, do Instituto de Tecnologia da Universidade de Cranfield, também no Reino Unido, especializada em engenharia e aeronáutica. Em conjunto com o aerodinamicista-chefe da Lotus na época, Peter Wright, Williams encontrou a solução: a suspensão ativa.
O sistema, que só ganharia fama na F1 em 1992, a partir do supertecnológico Williams FW14B, já estava no radar do sagaz projetista da boina preta muitas primaveras antes. Na verdade, desde 1977 a Lotus flertava com o conceito.
Tanto que, no fim daquele ano, testou um rudimentar sistema de suspensão controlada eletronicamente no modelo 78, guiado por Mario Andretti e Gunnar Nilsson. O objetivo, naquela ocasião, era testar questões relacionadas ao efeito solo.
Enquanto Chapman focava todos os esforços do time no aprimoramento dos carros-asa, que ele mesmo havia criado, a tal da suspensão eletrônica seguiu sendo trabalhada paulatinamente por Peter Wright e David Williams. Quem sabe num futuro breve ela não seria útil?
Pois o futuro se mostraria breve até demais. Com as falhas de comportamento do 80, Chapman exigiu uma resposta rápida de Wright. A suspensão ativa veio como possível solução, embora vencida pelo conceito do chassi duplo na visão do dono da equipe.
Contudo, diante da impossibilidade de competir com o 88, Chapman rapidamente se rendeu à suspensão ativa em meados de 81. E estabeleceu uma meta ousada: ter o sistema aplicado a um carro da Lotus em corrida a partir da temporada de 1983. Parece muito, mas em se tratando de uma tecnologia ainda incipiente, o tempo para concluir o desenvolvimento era bem apertado.
De modo surpreendente, a suspensão ativa proposta por David Williams e Peter Wright eliminava as molas e amortecedores do bólido. Em seu lugar, entrava um engenhoso conjunto de “amortecimento sintético”, formado por molas a gás e amortecedores hidráulicos. Ele era dotado, ainda, de transdutores e servoválvulas, tudo controlado eletronicamente.
Os transdutores enviavam informações sobre ondulações do piso instantaneamente a um microcomputador instalado no carro, que por sua vez repassava os comandos de alteração do relevo aos amortecedores hidráulicos e às servoválvulas. O sistema tinha capacidade de promover até 250 respostas… por segundo! Era o primeiro sinal de interferência eletrônica sobre a parte mecânica de um bólido de F1.
Desgostoso com o banimento do 88, atitude que considerava meramente política, Colin Chapman pressionava Peter Wright para acelerar o desenvolvimento da suspensão ativa. Na sua cabeça, a tecnologia seria uma aliada dos carros-asa. Mal sabia ele que o regulamento da F1 passaria por mudanças profundas ao fim de 82, tomando um rumo no qual uma solução como essa chegaria para ser protagonista, e não mera coadjuvante.
Sob o comando de Wright e do Instituto de Tecnologia de Cranfield, a Lotus Engineering – braço da empresa voltado à construção de veículos de rua – projetou uma unidade do cupê Esprit como mula para aplicar a suspensão ativa. A diferença de comportamento do carro com o sistema foi brutal, conforme constatado neste teste do programa britânico Top Gear, publicado em 1983:
Elio de Angelis, primeiro piloto do time à época, foi o responsável por fazer o shakedown do Esprit ativo em junho de 1982, no circuito de Snetterton. Com um detalhe: Peter Wright andou junto com ele, promovendo mudanças imediatas no acerto da suspensão a partir do banco do passageiro. Os dois terminaram a experiência encantados com os resultados.
Faltava conferir se todas essas vantagens se aplicariam também ao bólido de F1. Wright tinha mais seis meses para colocar na pista o primeiro F1 com suspensão ativa da história. Seria uma versão de um modelo que sequer havia estreado na época, o 92. Colin Chapman queria ver sua nova criação pronta antes da virada de ano.
Terminada a temporada de 82 no fim de setembro, com a Lotus num discreto quinto lugar no campeonato de construtores – foram apenas dois pódios, num ano salvo basicamente pela improvável vitória de De Angelis no GP da Áustria, chegava a hora de concentrar boa parte dos esforços na suspensão ativa.
O baque da morte de Chapman
Seguindo o apertado cronograma estabelecido por Chapman, o primeiro teste com o Lotus 92 ativo ocorreria no mencionado dia 16 de dezembro, também no circuito de Snetterton, quase vizinho à sede da escuderia.
Dave Scott, piloto de testes do time, foi o responsável por dar as primeiras voltas em um F1 ativo. Os mecânicos tratavam tudo como apenas mais um ato fortuito de experimentalismo, que poderia dar certo ou não. Talvez apenas Peter Wright tivesse noção do potencial que o conceito possuía.
Na prática, porém, o dia 16 de dezembro de 1982 não ficou marcado pelo primeiro teste de um F1 com suspensão ativa, mas sim pela morte do próprio Colin Chapman, aos 54 anos, vítima de um ataque cardíaco. A equipe que trabalhava nos testes do 92 ativo em Snetterton foi avisada da fatalidade durante as atividades na pista. Imagine o clima até o fim dos treinos…
A verdade é que, sem a pressão de Chapman e sua boina preta, o projeto da suspensão ativa arrefeceu nas mãos do novo dirigente magno da empresa, Peter Warr. A Lotus até seguiu adiante com o desenvolvimento do 92, com novos testes realizados em Snetterton e Paul Ricard, mas não com o mesmo afinco. Warr preferiu focar em outro modelo, o 93T, empurrado pelo V6 turbo da Renault. A suspensão ativa, para ele, estava longe das prioridades.
Peter Wright, porém, queria descobrir se seus esforços seriam recompensados e colocou Nigel Mansell para guiar o 92 com suspensão ativa nos GPs do Brasil e de Long Beach de 1983, empurrado ainda pelo motor Ford Cosworth V8 DFV aspirado. Estas, portanto, foram as primeiras corridas com a presença oficial de um carro ativo na história da F1.
Os resultados não foram muito animadores: Mansell se classificou em 23º e 13º, respectivamente, e completou ambos os páreos em 12º, sempre tomando voltas, no plural, do vencedor. De Angelis disputou as mesmas provas a bordo do modelo 93T com o V6 turbo da Renault. Demonstrou desempenho muito melhor, mas quebrou nas duas provas.
Para piorar a reputação de um sistema já pouco apreciado pelo novo chefe, Mansell odiou o comportamento do carro e fazia questão de falar mal da suspensão ativa a quem quisesse ouvir. Reclamava, especialmente, do fato de o peso do bólido ter aumentado em 20 kg e de o sistema roubar quase 20 cv de potência do motor para operar os atuadores hidráulicos.
“Mansell disse coisas que me embasbacaram na época. Foi muito traumático, mas [os problemas] não eram metade daquilo que ele dizia”, defendeu Wright em entrevista anos depois. Todavia, o estrago já estava feito e o projeto foi abortado em prol do modelo 94T, a grande aposta de Peter Warr para enfim posicionar a Lotus no rol das vencedoras da era turbo.
O retorno do projeto após um tempo na gaveta
Warr era muito mais pragmático do que Chapman. Isso trazia suas vantagens, como a aceleração do desenvolvimento de modelos turbo que culminaram nas últimas sete vitórias da Lotus na F1. Porém, sem o espírito vanguardista do fundador, que provavelmente teria insistido com mais afinco no projeto, a suspensão ativa voltou para a geladeira.
Retornaria ao protagonismo apenas em 1987, junto do modelo 99T empurrado não mais pelo motor V6 turbocomprimido da francesa Renault, mas sim pelo da japonesa Honda. E com muitas modificações em seu bojo.
O sistema ainda era controlado por computador, mas não eliminava mais as molas e amortecedores. Em vez disso, conectava acelerômetros aos braços triangulares da suspensão e uma servoválvula em cada par de molas e amortecedores. O controle ainda era computadorizado, através de atuadores hidráulicos.
Os acelerômetros faziam as leituras de piso, passavam os dados ao computador, que emitia comandos de ação às servoválvulas para que estas controlassem a atuação de molas e amortecedores, utilizando a pressão hidráulica fomentada por bombeamento de óleo.
Segundo relatos da época, o peso do conjunto caíra de 20 kg para cerca de 12 kg, e ele “roubava” metade da potência em relação a quatro anos antes. Pareciam boas notícias, mas ainda era o suficiente para minar a competitividade do 99T em pistas de alta. Por outro lado, fez circuitos ondulados como Monte Carlo e Detroit se tornarem tapetes para o desfile de Ayrton Senna rumo às duas primeiras vitórias de um carro ativo na história da categoria.
A concorrência da Williams
O problema é que a Lotus já não era a única a estar de olho nas benesses da tecnologia. A rival Williams também vinha desenvolvendo o seu sistema, por sinal bem diferente e mais simples que o da concorrente. Criado pela empresa de engenharia automotiva AP (Automotive Products), e já presente em carros de rua americanos, como o Ford Granada, este sistema não dispunha de nenhum tipo de gerenciamento computacional. Por isso mesmo, era chamado de “reativo” e não de ativo, como o da Lotus.
Seu conjunto era composto apenas por três pequenas molas a gás, quatro atuadores hidráulicos, três válvulas de controle (duas na dianteira, uma para cada roda, e uma ao centro da suspensão traseira), um tanque, um acumulador e uma bomba para pressurizar os fluidos.
A atuação das válvulas de controle era mecânica, por meio de uma haste posicionada no braço da suspensão, e funcionava como uma espécie de filtro passa-baixa: todo o arranjo de massa, molas e amortecedores era filtrado de modo a dirimir reações a movimentos de alta frequência das ondulações, respondendo apenas aos de baixa frequência mais baixa.
Era essa atuação que permitia o controle dos esforços da suspensão e deixava a altura do assoalho em relação ao solo quase sempre constante. Com desenvolvimento chefiado por Frank Dernie, a suspensão ativa da Williams era tão diferente da Lotus que roubava apenas 5 cv da potência e gerava pouquíssimo peso extra ao carro.
Lembra como Nigel Mansell detestou a suspensão ativa do Lotus 92? Foi por isso que o ás inglês se recusou a testar o sistema no FW11B. Coube a Nelson Piquet o trabalho de desenvolvê-lo e estreá-lo no GP da Itália, em Monza, que ele venceria. Aquela foi uma das poucas corridas daquele ano em que o brasileiro, afetado pelo acidente em Ímola alguns meses antes, dominou o nêmesis britânico num embate direto dentro da pista.
Surpreso e aturdido com a derrota, Mansell exigiu a presença da suspensão ativa em seu carro a partir da etapa seguinte, em Portugal, e foi prontamente atendido. Nas quatro últimas rodadas da temporada, os dois Williams alinhados no grid eram ativos, ou melhor, “reativos”. Com o sistema, um Mansell já amansado por seus benefícios obteria dois triunfos na Espanha e no México.
Com isso, o conceito vislumbrado por Colin Chapman e Peter Warr pela primeira vez em 1977 terminaria uma temporada de F1 dez anos depois presente em cinco das 16 vitórias do ano. Deveria ser a credencial definitiva para o sistema, mas ainda não era a hora. De modo até curioso, uma série de infortúnios adiou o seu estabelecimento definitivo na F1 mais uma vez.
Para começar, o caso da Lotus. Como mencionamos acima, o desenvolvimento de sua suspensão ativa computadorizada era feito pela Lotus Engineering, braço voltado a veículos de rua. Era a Lotus Engineering quem detinha e operava a tecnologia no 99T, enviando dois engenheiros para acompanhar o Team Lotus a todas as etapas da estação de 87.
Após comprovar que o sistema funcionava, a Lotus Engineering não queria mais colaborar de graça. Por isso, determinou ao Team Lotus que só seguiria oferecendo a suspensão e o serviço técnico em 88 através de um contrato pago. Peter Warr achou aquilo um absurdo, recusou e, por esse motivo, o futuramente problemático 100T nasceu sem o auxílio do sistema.
Já a Williams seguiu adiante com sua suspensão reativa no FW12, empurrado agora pelo fraco motor Judd V8 naturalmente aspirado no lugar do Honda V6 turbo. Porém, as atualizações promovidas por Frank Dernie no sistema se mostraram desastrosas. Elas não apenas pioraram o desempenho como criaram uma falha que a equipe demorou muito a detectar.
“O erro estava no reservatório de fluido. Ele não pré-pressurizava o fluido como acontecia no FW11B, e ainda permitia a entrada de ar. Então o carro era veloz por apenas três ou quatro voltas, depois entrava ar no sistema e ele se tornava inguiável. Só fomos descobrir que o problema era esse muito tempo depois”, revelou posteriormente Frank Dernie.
A obra de arte eletrônica da Williams
Com os problemas enfrentados no desenvolvimento e as mudanças no regulamento baniam o turbo da F1 pedindo foco em outras áreas, a Williams desistiu temporariamente da sua suspensão reativa e se voltou à adaptação do chassi FW12 passivo ao propulsor Renault V10 aspirado. Foi por essa nova transformação da categoria que outras equipes também ignoraram a eletrônica e focaram suas atenções a áreas como a adaptação aos motores aspirados e até, no caso da Ferrari, à transmissão automatizada.
Com isso, o potencial da suspensão ativa só voltaria a ser novamente explorado no início dos anos 90, quando a Williams evoluiu o projeto engavetado e, junto do câmbio automatizado copiado da Ferrari mais um controle de tração, criou o FW14B, carro mais tecnológico jamais visto pelo universo automobilístico até então.
Chegava, aleluia, a vez de a suspensão ativa reinar, embora por um período curtíssimo, visto que ela foi banida apenas dois anos depois. Infelizmente, com a Lotus já apequenada e sem condições de liderar o processo, como fizera nos anos 80. E com quase uma década de atraso em relação ao apertado cronograma que Colin Chapman determinou a Peter Wright quando a F1 ainda era dominada por carros-asa e motores Cosworth DFV.
Demonstrando mais uma vez estar à frente de seu tempo, o dono da boina preta deu sua última contribuição à F1 não na área mecânica nem aerodinâmica, como seria de se esperar, mas sim na parte eletrônica.
Quis o destino que essa inovação ganhasse vida justamente naquela triste e gélida manhã de 16 de dezembro, na mesma Norfolk onde Chapman nasceu e faleceu. No dia em que a F1 romântica morreu, a F1 eletrônica dos tempos atuais começava a ser gestada.
Agradecimentos a Rian Assis pela ajuda com algumas das imagens que ilustram este artigo.
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