Piquet à frente do companheiro Mansell, em 1987
(Foto: Honda)

Piquet perdeu mesmo desempenho no ano do tri? | Fato ou Mito #9

30 de outubro de 1987. O circo da F1 chegava pela primeira vez em sua história ao desafiador autódromo de Suzuka, província de Mie, com intuito de voltar a disputar um GP do Japão após uma década de hiato. Os dois companheiros de Williams, Nelson Piquet e Nigel Mansell, eram os únicos sobreviventes na batalha pelo campeonato, sendo que o então bicampeão brasileiro levava 12 pontos de vantagem sobre o arquirrival.

Até ali se tratava de uma batalha da velocidade pura contra a consistência. Enquanto o “Leão” faturara seis das 14 etapas realizadas até então, além de perder outras tantas por falhas mecânicas ou incidentes, o brasileiro emendara uma interessante sequência de 10 pódios em 11 rodadas entre os páreos de Mônaco e Portugal, mesmo quase nunca apresentando rendimento dominante e em apenas três ocasiões tendo sido o vencedor.

Para Piquet pouco importava a forma como sua liderança se construíra. Fato é que ele estava à frente no certame, e a Mansell não restava qualquer alternativa que não fosse vencer a etapa nipônica. O britânico sentiu muito cedo a pressão: logo nos treinos livres de sexta-feira sentiu dificuldades em acompanhar o ritmo de seu nêmesis. Na prova classificatória, partiu desesperado para tentar compensar a diferença de acerto no braço e acabou cometendo um erro na temida sequência de esses. Bateu forte, machucou as costas e ficou fora de combate.

Naquele instante Nelson Piquet Souto Maior se tornava o quinto ás em 37 anos de categoria a acumular ao menos três títulos mundiais (os demais eram Juan Manuel Fangio, Jack Brabham, Jackie Stewart e Niki Lauda). Posteriormente outros cinco se uniriam ao panteão (Alain Prost, Ayrton Senna, Michael Schumacher, Sebastian Vettel e Lewis Hamilton). Isso mostra o nível de grandeza alcançado pelo carioca.

Entrementes, Piquet costumeiramente acaba posicionado um degrau abaixo de seus pares em listas gerais sobre os “melhores da história”, conforme o Projeto Motor já analisou neste artigo. Por que isso acontece? 1987 é elemento fulcral para esta resposta. Nelson se tornou tricampeão numa batalha extremamente ácida com Mansell, e sendo quase sempre sobrepujado pelo colega bretão dentro da pista. Tal cenário alimentou uma relação extremamente amarga entre ele e a imprensa do Reino Unido, a mais influente do esporte.

Piquet sempre atribuiu a diferença de rendimento para Mansell naquela estação ao acidente sofrido nos treinos para o GP de San Marino, a segunda rodada do ano (que você pode assistir logo abaixo). Em diversas entrevistas, o tricampeão afirmou ter “perdido a noção de profundidade” ao bater a cabeça contra o muro da malfadada Tamburello. Segundo ele, o choque deixou sequelas como fortes e constantes dores de cabeça e até dificuldades para dormir. “Decidi não contar aquilo para ninguém porque me tirariam da disputa, mas eu tinha que ir ao hospital a cada duas semanas fazer exames. Fui melhorando aos poucos”, contou em determinada ocasião.

Mas, afinal, esta colisão comprometeu mesmo a pilotagem de Piquet? Se sim, quanto? É o que vamos descobrir em mais uma edição da seção Fato ou Mito, desta vez especialmente produzida em homenagem aos 30 anos de seu tricampeonato. Para tal, o método de análise será simples: comparar as diferenças de desempenho entre ele e Mansell na Williams antes da batida (toda a temporada de 1986 mais o GP do Brasil de 87) e aquilo que ambos produziram pós-Ímola.

https://www.youtube.com/watch?v=pLyAKkeA25Q

O desempenho pré-acidente de Piquet

Embora Mansell tenha prevalecido na pontuação em 86, podemos afirmar que Piquet apresentou velocidade ligeiramente maior que a do inglês ao longo de sua estação de estreia na Williams. Em classificações ambos empataram em 8×8, mas a verdade é que Nelson enfrentou um fim de semana totalmente problemático em Mônaco (foram nada menos que quatro quebras de motor ao longo de sexta e sábado) e não dispôs de equipamento para disputar as tomadas de tempo nem a corrida em plena forma (ele ficou a destoantes 2s240 de Mansell na grelha, diferença que jamais passou perto de se repetir naquele ano). Portanto, este resultado será descartado da conta e, assim, teremos um 8×7 para o brasileiro.

Dessas 15 disputas de grids, em 11 a distância entre ambos ficou abaixo de três décimos. Das cinco que restaram, em três Piquet esteve à frente com vantagem de quatro a seis décimos, enquanto Mansell foi mais veloz por quase sete décimos em Portugal. Descartando a classificatória do Principado, temos uma média de tempos com ligeira vantagem de 0s047 a favor de Piquet. Se entrar na conta também o GP do Brasil de 87, em que Nigel superou o rival por 439 milésimos, o saldo do confronto direto fica em 8×8 e com 0s017 de vantagem para Nelson na média de tempos. Confira o histórico no gráfico (verde: pró-Piquet. Lilás: pró-Mansell. Vermelho: descarte).

Avaliando resultados em corridas, temos um novo 8×8 (levando-se em conta somente os GPs em que pelo menos um deles cruzou a linha de chegada, já que no da Áustria de 86 ambos abandonaram). Porém, é preciso ressaltar que Piquet desperdiçou muitas chances de completar corridas à frente de Mansell na primeira metade de 86, algumas por azares (como a falha de motor em Spa-Francorchamps, quando liderava com sobras) e outras por vacilos próprios (Detroit e Brands Hatch). Abre parêntesis: tal inconstância, aliás, foi fundamental para que Patrick Head decidisse apoiar Mansell, que de fato vinha fazendo um campeonato muito mais sólido até o GP da Grã-Bretanha. Em outras palavras, Piquet ajudou a “cavar a própria cova” na Williams em 86, apesar de muito pouca gente admitir isso. Fecha parêntesis.

Do período aqui extraído, pode-se afirmar que Nelson apresentou desempenho de corrida melhor nos seguintes GPs: Brasil/86; San Marino; Bélgica (sofreu uma falha no turbo enquanto liderava com boa margem); EUA (bateu sozinho perseguindo o líder Senna); Alemanha; Hungria; Itália; México; Austrália (Mansell, àquela altura, tentava administrar a vantagem no campeonato, é preciso frisar); Brasil/87.

Nigel, por sua vez, teve ritmo melhor em: Espanha; Mônaco (muito pelos problemas do companheiro); Canadá; França; Grã-Bretanha (mas só porque Piquet errou uma marcha em plena reta e o deixou passar sem conseguir retomar o posto, apesar de exercer enorme pressão por boa parte da prova); Áustria; Portugal. Total: 10×7 Piquet.

O pós-acidente

Passado o GP de San Marino de 87, que Piquet sequer disputou após veto do então médico oficial da Fisa, Sid Watkins, o brasileiro regressou à competição andando muito, mas muito atrás de Mansell. Para se ter ideia, em seis das sete classificações seguintes ele apanhou feio do inglês, sendo que em cinco acabou ficando mais de um segundo atrás. Uma disparidade muito grande para dois pilotos que costumavam andar tão próximos. Entre os GPs da Bélgica e do México de 87 (o do Japão também não será levado em conta, visto que Mansell não disputou integralmente a classificação e terminou a 1s472 de Piquet), Mansell aplicou um 8×4 contra Piquet. Diferença média de consideráveis 0s636. Bem menos equilibrado do que os 0s017 auferidos anteriormente, não?

Das quatro oportunidades em que Nelson largou à frente, em três a vantagem orbitou a singela casa de um décimo. Somente em Jerez o sul-americano obteve rendimento mais contundente, terminando a tomada de tempos 0s620 à frente. Confira a variação entre eles neste segundo período no gráfico abaixo e observe como só na segunda metade da campanha Piquet voltou a apresentar velocidade minimamente similar à de Mansell (o que ratifica a frase “fui melhorando aos poucos” destacada alguns parágrafos acima).

Quando voltamos as atenções às corridas, a lavada de Mansell só aumenta: andou indiscutivelmente à frente em Bélgica, Mônaco, França, Alemanha, Hungria, Áustria, Portugal, Espanha e México. O problema é que nem sempre cacifou resultados: colidiu com Senna em Spa; quebrou no Principado e em Hockenheim; abandonou por causa de uma porca de roda solta em Hungaroring. Piquet só conseguiu fazer frente ao companheiro em Detroit (quando protagonizou excepcional prova de recuperação após ter um pneu furado e cair para último logo na segunda passagem da corrida), Silverstone (quando perdeu a vitória na última volta em manobra épica do Leão) e Monza, etapa em que tinha a clara vantagem de correr com a suspensão ativa, enquanto Nigel usava a convencional derivação passiva do FW11B.

Piquet novamente aponta a perda de noção de profundidade como justificativa para o rendimento limitado. “Eu passei a ter que buscar placas e pontos de referência para frear. Nunca tinha feito isso antes. E quando eu andava de cara para o vento a coisa ficava pior. Atrás de outro carro a coisa ficava melhor”, revelou aos entrevistadores do programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1994. Talvez esteja aí explicado por que o GP dos EUA, quando Nelson teve de correr atrás do prejuízo ultrapassando quase o grid inteiro (ele terminou em segundo, atrás apenas de Ayrton Senna), foi disparado a sua melhor e mais aguerrida apresentação naquele ano.

De resto, tudo que restou a ele foi se apegar a uma sequência de resultados consistentes que inexistiu na temporada anterior, nem que para isso fosse necessário completar vários páreos atrás de Mansell e até de carros mais lentos que o seu, como o Lotus 99T de Senna e o McLaren MP4/3 de Alain Prost. Com inteligência, consistência e uma baita ajuda da sorte, convertida em infortúnios para seu arquirrival, Piquet chegou lá. Muito provavelmente sem condições físicas para tal, o que engrandece ainda mais seu feito.

Tendo em vista todos esses dados analisados, a pergunta do título deste artigo se provou um FATO. Piquet costuma dizer que “nunca mais foi o mesmo piloto” após a infeliz colisão contra a parede da Tamburello. Ele tem razão. Para obter seu terceiro título ele teve de se reinventar completamente, tal qual Lauda depois de Nürburgring-76. Afinal, é dessa estirpe que os grandes campeões são feitos: de um jeito ou de outro eles acabam encontrando uma forma de vencer.

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