Schumacher, de Benetton, e Senna, de McLaren, lutaram bastante em 1993
(Reprodução/F1)

Benetton era realmente superior à McLaren em 1993 | Fato ou Mito #7

O Projeto Motor vai entrar em um terreno pantanoso. Sabemos que se trata de um assunto polêmico, e sequer há um motivo especial para entrarmos nele, mas gostamos de desafios. Este será especialmente interessante: há muita, muita gente que usa o famoso imbróglio dos motores Ford-Cosworth HB entre Benetton e McLaren para defender que Ayrton Senna alcançou o vice-campeonato mundial de 1993 tendo apenas o terceiro melhor carro na lista de construtores participantes.

É claro que uma diferença de potência (que durou por menos da metade do ano, sublinhe-se) entre uma especificação e outra, sozinha, não faz de um conjunto necessariamente ser melhor do que o outro. Há uma série de fatores que influenciam o desempenho de um F1, principalmente quando estamos falando do certame em que os aparatos eletrônicos mais estiveram presentes em toda a história da categoria.

Naquele momento de guerra tecnológica nada frugal, motor, carro, suspensão e rodas se tornaram meros coadjuvantes, ajoelhados diante de módulos e chips que assumiam boa parte do domínio sobre a pilotagem (um controle bem maior do que o que existe atualmente, inclusive). Assim sendo, a ideia deste artigo é expor o que McLaren MP4-8 e Benetton B193B tinham de bom e ruim, apontando então qual deles era um modelo mais completo e eficiente.

Obviamente não estamos buscando determinismos vazios: queremos, sim, compilar fatos técnicos que nos ajudem a apontar para determinada direção, da forma mais objetiva possível. O objetivo final é enriquecer os conhecimentos de todos acerca daquele período tão lembrado e cultuado do automobilismo. Para tal, subdividiremos o texto em três grandes tópicos, que nos ajudarão a organizar melhor os argumentos e chegar a uma conclusão direta. Preparado?

Comecemos pela parte mais controversa. Para o nobre leitor compreender o que houve, precisamos voltar brevemente no tempo, a 1992. Devido à crise financeira que assolava a Europa (países do continente sofreram boicotes à tentativa de implantar um sistema de livre comércio e moeda única), a Honda decidiu deixar a F1. Desprovido da triunfante parceria com os japoneses, Ron Dennis não teve aonde correr. Até tentou captar os invejados V10 da Renault, mas foi vetado por um contrato muito bem amarrado entre franceses e Williams. Perto do início da temporada seguinte, a única opção restante seria aceitar os V8 da Ford Cosworth, embora como equipe cliente. A Benetton já possuía acordo preferencial de fornecimento.

Sendo assim, enquanto o time chefiado por Flavio Briatore recebia a série VII do motor HB, o gigante rival britânico teria direito a receber somente a versão antiga, cerca de 35 cv mais fraca, e sem apoio oficial da marca oval. Isso você provavelmente já sabia. A parte da história que ninguém conta é que, para reduzir esse déficit, Dennis contratou a TAG Electronics, antiga aliada desde os tempos da era turbo. Segundo relatos da época (alguns presentes até em comentários de Reginaldo Leme nas transmissões dos GPs para o Brasil), a companhia suíça praticou um trabalho primoroso, a ponto de ter sua preparação considerada melhor do que aquela feita oficialmente pela própria Ford.

Sozinha, a TAG conseguiu extrair 20 cv extras do HB fornecido à McLaren, reduzindo a diferença prática para menos de 20 cv. Isso, em se tratando de F1, é quase nada. No GP do Canadá, sétimo de um total de 16, a Cosworth entregou à Benetton a oitava versão do propulsor, o que significa que a McLaren passou a ter direito ao motor série VII. A distância no papel caiu de 35 para aproximadamente 20 cv. Graças à interferência da TAG, a desvantagem real foi para 10 cv.

Em Silverstone, nona etapa, a pressão de Dennis e de Senna enfim surtiu efeito: a Ford resolveu igualar as séries entregues às duas escuderias concorrentes, embora continuasse dando assistência oficial somente à Benetton. Após andar pela primeira vez com um bólido empurrado pelo HBA8, o tricampeão brasileiro não escondeu sua frustração (conforme registrado no anuário de 1993 da F1 de Francisco Santos, em português):

“Afinal o novo motor não é tão bom quanto me diziam.”

Ayrton Senna

Schumacher revidou: “Eu bem dizia que a diferença de motor não era tão grande”. Daí por diante os dois  adversários seguiram a campanha em condições praticamente equânimes: enquanto a própria Ford preparava os HB para o carro do alemão e de Riccardo Patrese, a TAG dava seu tapa antes de instalá-lo no #8 do brasileiro (Michael Andretti só foi ter direito à novidade em sua última participação na categoria, o GP da Itália).

Chassis de Benetton e McLaren

Interessante ressaltar que tanto Benetton quanto McLaren conceberam provavelmente os dois melhores chassis de 93, numa análise isolada. As grandes deficiências em relação à Williams estavam no motor e em algumas assistências eletrônicas, destacadamente a suspensão ativa, esta em estágio muito mais desenvolvido pelos lados de Grove. De qualquer forma, B193B e MP4-8 eram modelos que, por vias diferentes, entregavam ótimo equilíbrio e eficiência.

O carro da equipe ítalo-britânica provavelmente estava um passo à frente no quesito aerodinâmico. Desenhado por Rory Byrne sob o crivo de Ross Brawn, o B193B aprimorava o conceito do bico tubarão, logo copiado (e aperfeiçoado) por todo o grid nos anos seguintes. Seu entre-eixos era curto, o que fazia dele um bólido versátil para curvas de qualquer raio. Em velocidade pura, este chassi sozinho talvez batesse o da McLaren, e ainda conseguia conservar melhor os pneus. Entretanto, seu comportamento era mais arisco, com tendência ao sobre-esterço, o que complicava a vida do segundo piloto do time, o veteraníssimo Riccardo Patrese.

Modelo B193B da Benetton tinha uma aerodinâmica que viria a ser copiada por todos no grid, mas ficava devendo na eletrônica

Já o MP4-8, arquitetado por Neil Otley, notabilizava-se pelo perfil esguio (entre-eixos 4 cm maior e casulos laterais bastante estreitos) e pelas linhas fluidas, porém com dianteira mais conservadora. Certamente era o modelo mais dócil da grelha, e que ficava ainda mais forte quando dotado dos auxílios eletrônicos que citaremos abaixo. Suas maiores deficiências eram velocidade pura e trato com os Goodyear.

Podemos dizer, pois, que a McLaren tinha um carro mais adequado às regras daquele momento momento histórico da F1, enquanto a Benetton tinha em mãos uma base melhor para o futuro, quando todos os auxílios seriam banidos. Confira abaixo este vídeo com trechos a bordo dos carros de Alain Prost, Schumacher e Senna nas primeiras passagens do GP de Mônaco, o sexto do calendário. Repare que a câmera do germânico é a que mais treme e seu volante, o que mais trabalha. Seu B193B podia ser rápido e confiável, mas precisava de esforço ligeiramente maior para ser controlado.

Eletrônica

Chegamos ao ponto nevrálgico deste artigo. 1993 foi a época em que a F1 mais esteve dominada pela eletrônica, e neste quesito a McLaren se encontrava sensivelmente à frente da Benetton. A esquadra de Woking já estreara o câmbio automatizado de dupla embreagem no ano anterior, e usou a parceria com a TAG para desenvolver até mais apetrechos do que aqueles existentes na Williams. O MP4-8 era munido de: controle de tração (o melhor do grid), suspensão ativa, controle de largada, acelerador drive-by-wire e até um inovador sistema de câmbio com opção de reduções totalmente computadorizadas.

N’outras palavras, Senna não precisava reduzir marchas pelas borboletas. Em vez disso, bastava apertar um botão no momento da frenagem e as marchas desciam sozinhas. A central eletrônica da transmissão mapeava o circuito e sabia qual a redução ideal a se fazer em cada perna do traçado. A troca manual só ocorria em momentos escolhidos pelo próprio pelo ás. Não acredita? Confira abaixo um vídeo do brasileiro na classificação para o GP da Austrália, e repare no comando do canto superior esquerdo que ele aciona na aproximação para cada perna. Ele só não faz uso do sistema nas curvas mais velozes.

Schumacher teve acesso mais restrito a esses recursos. O controle de tração, por exemplo, a Benetton só foi estrear em Monte Carlo. Antes, pode-se afirmar que a vantagem em favor da McLaren era considerável e aumentava ainda mais em pista molhada (onde ter a entrega de torque controlada eletronicamente num piso escorregadio conta muito), situação enfrentada em quatro dos primeiros cinco páreos da estação.

Este, aliás, era o grande ponto forte do MP4-8. “Então você está ousando dizer que Senna só deu show na chuva em 93 por causa do controle de tração?”. Sim e não. Quantas corridas memoráveis Ayrton praticou sob chuva em 92? Difícil lembrar, não? Ocorre que o MP4-7 era um carro extremamente arisco, e seus defeitos ganhavam maiores proporções quando o asfalto ficava escorregadio. Mesmo em se tratando de Senna, ninguém faz milagres. Já o modelo sucedente “plainava” sobre a água e potencializava atuações como a do famoso GP da Europa, a ponto de Andretti também ter voado na largada daquela corrida. O americano superou Schumacher logo após Senna e partia para cima de Karl Wendlinger quando ambos se chocaram na entrada da Coppice. Sabe-se lá até onde teria ido caso não batesse. Por outro lado, ninguém além do paulistano, naquele momento, seria capaz de extrair tanto daquele bólido sob tais condições. Tanto que seu companheiro, ao tentar acompanhá-lo na escalada rumo ao topo em Donington Park, acabou na brita.

Já a Benetton demorou para se entender com a eletrônica e chegou até a fazer uma proposta para a McLaren antes do GP da Espanha: autorizaria a entrega dos motores mais avançados e até do suporte oficial da Ford, desde que em troca a TAG passasse a fornecer também a Enstone seus apetrechos e sua assistência eletrônica. Até uma substituição de Patrese pelo reserva de Senna e Andretti, Mika Hakkinen, foi cogitada, decisão que formaria uma bombástica dupla entre finês e teutônico na escuderia de Briatore. Nenhuma das partes cedeu na hora da negociação, porém, e a conversa logo arrefeceu.

Com apoio da Ford, Ross Brawn enfim conseguiu fazer controle de tração e suspensão ativa funcionarem em harmonia a partir do GP do Canadá, sétima rodada. Dali até o GP da Bélgica o B193B se assumiu como segunda força (assista logo abaixo uma briga entre Schumacher e Senna no GP da Inglaterra). É este miolo na fase europeia da temporada que leva muita gente a afirmar que o carro verde e amarelo foi superior durante o ano todo. Na parte final, entrementes, a Benetton largou mão do B193B e começou a se preparar para 1994, temporada de profundas mudanças no regulamento. A ideia original era fazer funcionar um ousado projeto de monoposto que esterçava as quatro rodas (falaremos mais à fundo dessa história n’outro momento). Foi quando, a partir do GP da Itália, a McLaren retomou as rédeas.

Veredito

Se pudéssemos dividir 1993 em três partes, poderíamos afirmar que: a McLaren começou superior e seguiu assim até a sexta prova, em Montmeló. A Benetton inverteu a ordem de Montréal até Spa-Francorchamps, numa sequência de seis Grand Prix consecutivos. Em Monza, a trupe de Woking recuperou o terreno perdido e assim seguiu até o fim. Motor (até o GP da Inglaterra) e chassi contavam pequenos pontos para o B193B, mas a eletrônica pesava mais em favor do MP4-8. No total, 10×6 para a McLaren, o que torna a afirmação de que a Benetton tinha um conjunto melhor um MITO.

Vale lembrar, contudo, que estamos falando de oscilações por vezes mínimas. Há que se destacar que Senna, no auge de sua forma e com mais experiência, soube capitalizar muito bem cada pequena oportunidade que lhe surgiu, especialmente no começo e no fim da época. Schumacher, já reconhecido como grande talento da nova geração, claudicou um pouco mais: cometeu erros, desperdiçou chances e também teve alguns azares, como a perda de uma vitória certa em Monte Carlo graças a uma falha na suspensão ativa. Nada anormal quando estamos falando de um genial tricampeão e de um futuro gênio que fazia somente sua segunda temporada completa na categoria.

Agradecimentos ao amigo Fábio Ribeiro Brandão, que ajudou na pesquisa.

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