Da tragédia ao triunfo: 5 pilotos que superaram traumas para vencer na F1
Poucas pessoas têm real noção do quanto o preparo psicológico é importante para um atleta profissional, seja na F1 ou qualquer outro esporte. Se a cabeça não estiver boa, de nada adianta talento, experiência ou incessantes horas de treino: o desempenho não virá. É como um processo incoativo no qual a mente vai, progressiva e quase imperceptivelmente, sabotando as ações do corpo.
Há situações em que tal reação chega a ser previsível. Assista a uma partida de tênis e você verá, mais de uma vez, jogadores que “entregam a rapadura” justamente no momento em que deveriam manter firmeza para fechar a fatura. Em outros casos, a questão é o abalo emocional: o esportista acabou de viver algum trauma pessoal muito forte, a ponto de simplesmente não conseguir manter o foco na disputa de um jogo… Ou corrida.
Também existem, todavia, aqueles que acabam usando tragédias particulares para tirar de si força e concentração jamais experimentados. É como se a emoção profissional suplantasse as dores, e o esporte se tornasse uma espécie de válvula de escape. São esses os “causos” que o Projeto Motor relembra neste artigo: vamos relembrar seis histórias, vividas por cinco ases diferentes, em que a tristeza do desastre acabou sendo, mesmo que minimamente, minimizada pelo brilho de uma competente vitória na F1.
Fittipaldi e o fardo do título póstumo
Jochen Rindt vivia uma temporada de sonhos em 1970: venceu cinco das nove primeiras etapas e liderava o Mundial de F1 com certa folga em relação ao rival Jacky Ickx. Eis que veio o fim de semana do GP da Itália, o no início de setembro, e com ele a fatalidade: durante a realização do treino classificatório, no sábado à tarde, o freio dianteiro direito falhou na frenagem para a Parabólica, levando o austríaco a guinar violentamente à esquerda. O violento choque o levou a falecer ainda a caminho do hospital.
Recém-promovido à principal categoria do automobilismo, Emerson Fittipaldi se viu de repente sem companheiro de equipe e tutor. Mais do que isso, foi alçado por Colin Chapman, de supetão, à condição de primeiro piloto da conceituada Lotus. Naquele estágio final de certame o brasileiro tinha uma missão: garantir o título do finado parceiro.
Objetivo foi cumprido em 4 de outubro, quase um mês depois, no GP dos Estados Unidos, em Watkins Glen. Antes já havia sido realizado o do Canadá, em Mont-Tremblant, mas a escuderia decidira abdicar da participação devido ao luto. No páreo realizado em solo leste americano Emmo partiu de terceiro na grelha, mas arrancou mal (algo que se tornaria característica em sua carreira) e caiu para oitavo.
Pouco a pouco seus oponentes sucumbiram conforme o próprio Fittipaldi crescia à base de poupar equipamento (outra marca sua): John Surtees e Jackie Oliver quebraram; Clay Regazzoni e Chris Amon tiveram de procurar os boxes para trocar pneus avariados; Jackie Stewart e Ickx sofreram de vazamento de óleo; por fim, Pedro Rodríguez precisou de um reabastecimento emergencial em meio a uma pane seca. Emerson, à base de metódica e minuciosa regularidade, atingia ali sua primeira grande conquista, e ainda ajudava Rindt a se tornar o único campeão póstumo da F1 até os dias atuais.
Berger e a despedida ao velho Enzo
Em 14 de agosto de 1988 Enzo Ferrari partiu, aos 90 anos. Foi-se “de velhice”, como diria o adágio, e justo em meio a uma época em que sua Scuderia vinha sendo consistentemente suplantada por Williams, McLaren e, eventualmente, Lotus. Naquela temporada, em específico, a esquadra de Ron Dennis estava humilhando a concorrência na F1. Exatos 28 dias depois de sua morte, o “comendador” recebeu uma merecida e inesperada homenagem no palco mais condizente possível: o templo de Monza.
Com a quebra de Alain Prost, Ayrton Senna dominava o GP da Itália de forma habitual, embora acossado pela Ferrari e Gerhard Berger e Michele Alboreto na parte final. Eis que, a duas passagens da bandeirada, o brasileiro encontrou pela frente o retardatário Jean-Louis Schelesser. O choque na primeira variante tirou o favorito do caminho e levou os representantes do “cavalo rampante” a uma surpreendente dobradinha, naquele que foi o único páreo do ano sem Senna ou Prost no degrau mais alto do pódio.
Hill e a redenção da Williams pós-Senna
A traumática morte de Ayrton Senna no fatídico 1º de maio de 1994 alterou sensivelmente os rumos da F1 e, consequentemente, da Williams. Um tufão passou pelas dependências de Grove: levou consigo seu primeiro piloto e todos os alicerces de uma estrutura que parecia até então inabalável. De repente o time de Frank Williams se via perdido, certamente numa das fases mais difíceis de sua história.
Damon Hill, até então visto como um útil escudeiro, e nada mais, viu-se então em inimaginável posição de ter que juntar, na pista, os estilhaços espalhados. Não, o britânico não era páreo para o talentoso e impetuoso Michael Schumacher, e não, o FW16 ainda não havia recebido as modificações necessárias para ser mais estável. Contudo, a vida seguia seu curso tortuoso e algo precisava ser feito para contornar o caótico cenário.
Num golpe de sorte que surgia como espécie de alento – ou luz no fim de túnel, se preferir -, o câmbio do Benetton 194 #5 apresentou problemas e ficou travado em quinta marcha por dois terços do GP da Espanha, em 29 de maio. Foi o que possibilitou a Hill faturar, naquele momento, o primeiro resultado positivo da Williams naquele ano. O feito levou até o frio projetista Adrian Newey às lágrimas, numa demonstração do quão pesado era o fardo sobre os funcionários da escuderia.
Berger e o suposto suicídio do pai
Johann Berger pilotava o monomotor Robin DR.400RP e decolou de um aeroporto privado em Kufstein, Áustria, às 7h30 da manhã de 9 de julho de 1997. Pouco antes das 8h, moradores das redondezas da região alpina ouviram uma forte explosão e viram um estranho clarão no céu. Era o avião de Johann se chocando contra uma montanha.
Ninguém descobriu ao certo o motivo do acidente. Sabia-se, porém, que o empresário de 62 anos conhecia aquela rota como a palma das mãos. Amigos afirmaram que foi suicídio. Berger pai enfrentava problemas com a Justiça do país desde 1994, quando foi acusado de tentar fraudar transações bancárias, que somariam 24 milhões de xelins (a moeda austríaca antes da adoção do Euro), em conluio com seu advogado.
Condenado a cinco anos de prisão em janeiro de 97, Johann vinha sendo mantido sob liberdade graças a um recurso pendente de julgamento, mas sabia que dificilmente escaparia da cadeia. De acordo com relatos de pessoas próximas, ele já afirmara em ocasiões anteriores que preferia morrer a ser preso, virar manchete de jornais e atrapalhar a carreira do famoso filho.
Gerhard vinha afastado das competições desde o GP do Canadá, em junho, convalescendo de uma cirurgia para corrigir uma sinusite. Reocupou o habitáculo do Benetton 197 #8 só no GP da Alemanha, em 27 de julho, duas semanas depois da tragédia. Hockenheim era um circuito que Berger aprendera a domar em anos recentes. Venceu a edição de 1994, naquela que foi a primeira vitória da Ferrari em quase quatro anos, e só não repetiu o feito em 96 porque o motor Renault o deixou na mão a duas voltas do encerramento.
O veterano, que vinha de campanha bastante irregular naquela estação, fez naquele páreo de 97 uma das maiores apresentações de sua vida. Largou da pole, com tempo 0s6 mais rápido que o do companheiro, Jean Alesi, e dominou as ações do início ao fim. Conquistando, pois, o décimo e último triunfo de uma carreira já em estágio crepuscular.
Coulthard e a “segunda vida” na F1
David Coulthard passou por experiência quase-morte incomparável em 2000. No dia 2 de maio o escocês sofreu um acidente aéreo enquanto cruzava a França em seu jatinho particular. O motor da aeronave apresentou problemas durante o voo e, graças à perícia e um pouco de sorte, os pilotos conseguiram pousar o avião “da melhor maneira possível para aquela circunstância”, conforme atestou posterior investigação.
Os passageiros — o volante da McLaren, sua então noiva, Heidi Winchelski, e seu preparador físico, Andy Matthews — sobreviveram, mas infelizmente o comandante David Saunders e o co-piloto Daniel Worley não tiveram o mesmo destino. Mesmo abalado, Coulthard correu normalmente as etapas seguintes do campeonato. Em 18 de junho, protagonizou no GP da França aquela que provavelmente foi sua magnum opus na F1.
Ocupando a segunda colocação na grelha de largada, atrás do pole Schumacher, o britânico perdeu o posto para Rubens Barrichello quando apagaram as luzes vermelhas. Não se deu por vencido: ultrapassou o brasileiro no giro 22 e, no 39º, conseguiu enfim se livrar do alemão após árdua batalha pela ponta. O duelo teve direito a fechadas duras e um maroto “dedo do meio” mostrado ao futuro multicampeão. Schumacher, no fim, sofreria um estouro de motor, o que em nada tirou o brilho de um Coulthard dominante, capaz de triunfar com 14 segundos de frente sobre o colega de McLaren, Mika Hakkinen.
Schumacher e o triunfo na F1 em luto pela mãe
Os irmãos Schumacher tomaram uma difícil decisão horas antes do GP de San Marino de 2003. Sua mãe, Elizabeth, fora internada dias antes às pressas, em estado grave, vítima de uma queda quando estava em sua própria casa. Após intercalarem sessões de treinos com visitas à matriarca da família no hospital, Michael como Ralf acabaram surpreendentemente dominando a primeira fila do grid.
No domingo de manhã veio a triste confirmação da morte de Elizabeth. Michael e Ralf decidiram largar mesmo assim. Chegaram a brigar pela liderança durante boas voltas. Schumacher mais novo estava em estratégia diferente e, com a parada extra para reabastecimento, acabou caindo para quarto. O irmão, mais sólido, terminou como vencedor. Não comemorou como habitualmente. Ostentava no braço direito uma discreta tarja preta, sinalizando luto.
Em uma das únicas declarações mais prolixas que deu sobre o episódio familiar ao longo todo o fim de semana, Michael disse que “não conseguiria explicar de uma forma que as pessoas entendessem” por que decidiu correr, mas que a sua mãe “se sentia bem no ambiente dos autódromos”. Elizabeth cuidava da cantina do kartódromo onde Michael e Ralf começaram a correr, em Kerpen (Alemanha).
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