DAS: a invenção da Mercedes que roubou a cena na pré-temporada da F1
Mais do que qualquer tempo de volta, o grande assunto da pré-temporada da F1 é uma novidade apresentada pela Mercedes e flagrada pela transmissão de TV. O dispositivo foi batizado pelo projetista da equipe, James Allison, de DAS, que em tradução livre seria algo como “Direção em Eixo Duplo”.
A ideia da Mercedes foi de abrir a possibilidade para o piloto, através de um movimento para frente e para trás no volante, mudar o acerto de convergência das rodas dianteiras do carro entre as retas e curvas.
A invenção chamou a atenção de todos no paddock e que acompanham a F1, por sua engenhosidade para atacar um problema histórico de comprometimento do acerto dos carros entre grandes retas e curvas. Além disso, é um sistema totalmente mecânico, ou seja, não utiliza artifícios eletrônicos (pelo menos até onde o mundo externo à Mercedes sabe) nem aerodinâmicos, o que seria irregular.
Claro que questões já estão sendo levantadas sobre sua legalidade e segurança, já que ele movimenta a coluna de direção e o acerto das rodas dianteiras com o carro em movimento. A princípio, a FIA apontou que o sistema está em conformidade com o regulamento, porém, como não existe inspeção durante os testes, os comissários só poderão checar todo o sistema no GP da Austrália, primeira etapa do Mundial, ou quando a Mercedes optar levar para uma etapa. E seguramente acontecerão diversos protestos de rivais para que se cheque o W11 para se ter certeza de que ele não está infringindo nenhuma regra.
Importante dizer que obviamente a Mercedes mantém o funcionamento e os efeitos de seu sistema em máximo segredo para não abrir aos rivais. Desta forma, muito do que sabemos ainda está no plano de informações prévias. Mesmo assim, já podemos explicar o princípio do DAS.
Como funciona a convergência
Antes de se entender o novo sistema da Mercedes, é preciso compreender como funciona o acerto de um carro de corrida. E aqui não estamos falando apenas de F1, já que o trabalho de convergência e cambagem é algo básico de um veículo e trabalhado em competições desde o kart.
A maioria das pessoas que acompanha automobilismo já está bastante familiarizada com a cambagem, cujo visual nos modelos de competição é bastante claro a olho nu. A parte de cima dos pneus fica apontada para o centro do carro enquanto a de baixo fica aberta. Essa configuração é conhecida como cambagem negativa. Ela é usada por conta da força lateral a que o carro enfrenta nas curvas.
Quando o veículo está dentro da tomada, todo o carro, pneus e rodas são empurrados na direção oposta. Como a cambagem está negativa, isso faz com que neste momento, por conta da deflexão do composto, o pneu passe a ter toda sua área em contato com o solo, aumentando a aderência mecânica.
No caso da convergência, a ideia é muito parecida, porém, estamos falando aqui da posição horizontal dos pneus. Ou seja, a parte da frente dos compostos fica apontada para fora, como se cada um tivesse rolando para direção oposta ao outro. Esta configuração é conhecida como toe out ou divergência.
Por conta da deflexão dos pneus na entrada da curva, esta posição faz com que os pneus, ao terem sua trajetória alterada pelo movimento do volante para apontarem para o lado, consigam trabalhar melhor em relação às forças laterais. Principalmente em entradas de curvas mais fechadas, que precisam de uma frente presa ao chão.
Só que, como nada na vida é fácil, este tipo de acerto, que ajuda muito nas curvas, traz problemas. Para começar, por estarem apontados cada um para um lado, os pneus sofrem um aquecimento maior na sua parte interna quando estão nas retas, já que estas estão puxando o resto do composto para a linha reta. Isso causa desgaste irregular na banda de rodagem e bolhas.
Além disso, a configuração também diminui a velocidade máxima nas retas, já que o carro precisa literalmente arrastar os pneus, que não estão virados para frente. Por isso tudo, o comprometimento do toe out entre curvas e retas em cada circuito precisa ser muito bem calculado para que o carro consiga um desempenho mais próximo do ideal em ambas as situações.
A solução encontrada pela Mercedes
O que a Mercedes está propondo parece bastante simples, mas exigiu um grande estudo sobre a real efetividade e segurança. Enquanto o projetista da equipe, Allison, fugiu dos detalhes sobre o desenvolvimento do sistema, Valtteri Bottas chegou a comentar que ouve falar do DAS na fábrica do time há mais de um ano.
O acerto no box é feito com o toe out convencional para que o caro tenha uma boa resposta e estabilidade nas entradas de curva. Só que ao entrar nas retas, o piloto literalmente puxa o volante para trás. Este movimento traz junto a coluna de direção e o eixo que a liga às rodas. Isso tudo faz com que a divergência das rodas venha para dentro, diminuindo ou até possivelmente anulando o problema de aquecimento irregular dos pneus e o arrasto mecânico dos pneus nas retas.
Quando se aproxima da zona de frenagem antes da curva, o piloto empurra de volta o volante para sua posição original, retornando à configuração de divergência para as curvas feita nos boxes, antes de sair à pista.
A beleza do sistema é que ele é simples, porém, requer estudos de dinâmica (já que tudo é feito com o carro em movimento) e segurança. Por isso, mesmo parecendo algo fácil de ser implantado, dificilmente as adversárias conseguirão copiar o DAS para as primeiras provas da temporada.
O mecanismo poderá ser bastante efetivo em circuitos com grandes retas, como Barcelona, Monza e Baku, por exemplo. Em circuitos sem esta característica, como Melbourne, Mônaco e Budapeste, talvez já consiga ser utilizado de forma tão otimizada. Mesmo assim, tudo indica que é uma ideia pode trazer benefícios importantes para a Mercedes.
Legal ou ilegal?
O artigo 10.2.3 do regulamento técnico da F1, dentro do item “geometria da suspensão” estipula que “nenhum ajuste pode ser feito no sistema de suspensão enquanto o carro está em movimento”. Então, se existe a mudança do acerto, por que o DAS da Mercedes não é claramente ilegal?
A própria entidade entende, pelo menos de acordo com as informações que se tem por enquanto do sistema, que todo o movimento do DAS mexe apenas com peças do sistema de direção e não da suspensão em si. Ou seja, volante, coluna de direção, e eixos.
No artigo 10.4 do regulamento técnico da F1, que regulamenta o sistema de direção, o primeiro item afirma que “nenhum sistema de direção que permita o realinhamento de mais de duas rodas será permitido.” A ideia aqui é a de banir carros virem, por exemplo, as quatro rodas ao movimento do volante, como foi testado na década de 90 pela Benetton. Basicamente, o que o regulamento está falando é que só é permitido que o volante mude a direção de duas rodas.
A Mercedes encontrou aqui a brecha de interpretação para dizer que o piloto está movimentando o volante (ou seja, não está usando nenhum dispositivo eletrônico) e mudando o alinhamento das rodas. Ninguém disse que o movimento do volante deveria ser restrito para direita e esquerda. Desta forma, ele vai para frente e para trás e, como consequência, muda a direção das rodas.
Claro que ao ir para Melbourne, comissários irão pela primeira vez ter acesso total ao sistema e poderão encontrar alguma irregularidade que a Mercedes possa ter deixado para trás. A própria interpretação pode ser revista. Porém, até o momento, tudo indica que a FIA vê o DAS como legal.
TV na pré-temporada entregou a Mercedes
Uma das coisas mais curiosas de toda esta polêmica nem é o sistema em si, mas como o mundo o descobriu. Como parte do projeto de aumentar a divulgação, promoção e acesso à F1, a pré-temporada de 2020 está sendo transmitida ao vivo pelo streaming da categoria.
Não fosse esta novidade, não teríamos acesso às câmeras on board dos carros e ninguém, pelo menos até a primeira etapa do Mundial, teria a chance de perceber o movimento do volante e das rodas do carro da Mercedes.
É um marco para o novo momento da F1, que permite gravações como “Drive to Survive”, da Netflix, mostrando bastidores, e explicações dos canais da própria categoria sobre as corridas e as invenções dos engenheiros. Um novo tempo ao qual as equipes ainda tentam se acostumar.
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