As três mortes esquecidas da F1 pós-Senna

Você já deve ter ouvido falar que, considerando apenas GPs e eventos oficiais, a F1 ficou mais de 20 anos sem acidentes que resultaram em mortes. Foi este tempo que separou o episódio de Ayrton Senna, em 1994, e o de Jules Bianchi, em 2014, que resultou no falecimento do francês no ano seguinte. 

Bem, este dado apresentado acima não é 100% correto. Afinal, neste meio tempo, houve outros incidentes que resultaram na morte de pessoas cruciais para a realização das corridas. Entre 2000 e 2013, três fiscais de pista perderam a vida durante os domingos de corrida, o que obrigou a F1 a realizar mudanças, mesmo que os episódios tenham caído no esquecimento ao longo dos anos.

Mortes de fiscais: uma dura realidade da F1

Infelizmente, não era tão incomum na F1 antiga acidentes que resultassem na morte de pessoas nas dependências dos autódromos. Alguns poucos exemplos são o GP da Itália de 1961, quando o acidente que matou Wolfgang von Trips também vitimou 15 torcedores, ou a tragédia envolvendo Tom Pryce, que resultou na morte do piloto e de um fiscal de pista.

Por isso, as categorias do automobilismo expõem em ingressos ou credenciais de imprensa avisos que alertam para o perigo das corridas, já que fiscais, jornalistas/fotógrafos e até mesmo pessoas nas arquibancadas não ficam imunes a riscos. A F1 também trabalhou forte no aumento de segurança, o que tornou ocorrências deste tipo mais raras do que antigamente.

GP da Itália de 2000 – Paolo Gislimberti

mortes Monza 2000
Confusão na primeira volta matou fiscal em Monza (Foto: Reprodução)

A tragédia voltou a assombrar a F1 no GP da Itália de 2000, em Monza. Logo na primeira volta, na freada da chicane Della Roggia, Rubens Barrichello, da Ferrari, emparelhou com Jarno Trulli, da Jordan, na luta pelo quarto lugar. No entanto, Heinz-Harald Frentzen, com a outra Jordan, ficou no meio da disputa e colidiu em ambos por trás. A confusão também eliminou David Coulthard, da McLaren, que vinha em terceiro, e levantou uma cortina de detritos e poeira na caixa de brita.

Como resultado do caos, Pedro de la Rosa, da Arrows, que vinha mais atrás no pelotão, bateu na Jaguar de Johnny Herbert e capotou várias vezes de maneira perigosa, aterrissando quase que em cima da Ferrari de Rubinho. Um destes detritos, uma roda do carro de Frentzen, foi em direção do lado esquerdo da pista e atingiu em cheio o fiscal Paolo Gislimberti. O impacto foi tão forte que o capacete de Gislimberti voou e rolou pela pista.

Logo de cara a situação já parecia bastante crítica, pois o médico da F1, Sid Watkins, foi visto nas câmeras de transmissão realizando massagem cardíaca em Gislimberti a fim de reanimá-lo. Ele chegou a ser levado ao hospital de ambulância, mas sua morte foi anunciada pouco depois do fim da corrida, por lesões severas na cabeça e no tórax. Ele tinha 33 anos de idade. 

Gislimberti (esquerda) atuava como fiscal e era fanático torcedor da Ferrari (Foto: Divulgação / Circuito de Monza)

Mais do que isso, Gislimberti deixou sua esposa, que estava grávida. Diante da situação, todas equipes do grid e Bernie Ecclestone, na época chefão da F1, coletaram fundos para auxilio financeiro à viúva do fiscal, chegando a uma quantia de US$ 150 mil. Pilotos como Frentzen, Trulli e Gastón Mazzacane, na época na Minardi, compareceram ao enterro de Gislimberti, sendo que a Ferrari foi representada por Luca Badoer, piloto de testes, e Stefano Domenicali, na época diretor esportivo do time. O caixão de Gislimberti foi coberto com uma bandeira da Scuderia de Maranello, dada pela própria equipe.

Na investigação do acidente, muitos pontos diferentes foram levantados. Houve críticas à construção da nova chicane no ponto inicial da pista, que estreou justamente em 2000 e que possibilitaria que todos os carros chegassem à Della Roggia mais emparelhados. Também questionou-se o uso da brita nas áreas de escape, o que prejudicou a visibilidade naquela batida específica. Outro detalhe: Gislimberti estava atrás do guard-rail, mas em pé e em frente da outra placa de publicidade, o que gerou questionamentos sobre a posição dos fiscais na pista.

GP da Austrália de 2001 – Graham Beveridge

As mudanças mais imediatas foram o aumento do alambrado, que passou a ficar com seis metros de altura, além da instalação de painéis de acrílico para aumentar a proteção. Já para 2001, haveria um reforço nos cabos de suspensão, a fim de evitar que as rodas se desprendessem e voassem com tanta facilidade. A questão é que a velocidade da F1 não parava de aumentar, sobretudo com o retorno da guerra de fornecedoras de pneus, a partir de 2001 – o que, consequentemente, deixava o cenário um pouco mais delicado do ponto de vista da segurança. 

Quase seis meses após a tragédia em Monza, mais um fiscal de pista perderia a vida após um forte acidente. Na quinta volta do GP da Austrália de 2001, Ralf Schumacher, da Williams, e Jacques Villeneuve, da BAR, lutavam pelo sexto lugar. Na aproximação da terceira curva do circuito, Schumacher freou e foi abalroado pelo canadense, que decolou em direção ao muro a mais de 250 km/h e bateu forte.

Villeneuve atingiu Ralf Schumacher, o que provocou morte de fiscal (Foto: Reprodução)

No impacto, uma roda voltou a se soltar e passou por um vão no alambrado, que existia devido aos fotógrafos e para facilitar o acesso da equipe de apoio à pista. Esta roda atingiu o fiscal Graham Beveridge e feriu pelo menos mais sete torcedores.  

Os médicos tiveram que abrir caminho em meio ao público, que se aglomerava no local em busca de detritos para levar como recordação. O fiscal sofreu severas lesões torácicas e foi levado ao hospital, mas foi anunciado morto ainda com a corrida em andamento, aos 52 anos.

A conclusão da investigação é de que se tratou de uma tragédia “evitável”, já que a organização da prova estava ciente do vão que havia nas barreiras de proteção e poderia ter solucionado esta vulnerabilidade antes. Mas, como os organizadores já haviam proposto mudanças imediatas como resposta à fatalidade, como a instalação de alambrados mais altos e vãos mais curtos, foi liberada a realização do evento em 2002. 

No entanto, os médicos australianos que prestaram socorro a Beveridge nas dependências do autódromo foram condenados por má conduta profissional. De acordo com a investigação, Beveridge havia sido declarado morto já dentro do circuito. No entanto, mesmo sem que houvesse esperança alguma, os médicos decidiram continuar com o protocolo e, desnecessariamente, persistiram com o procedimento de ressuscitação no fiscal. O objetivo era transferi-lo ao hospital para que sua morte fosse declarada por lá, e não no centro médico da pista. 

Com tudo isso, a F1 voltava a encarar o fator “segurança” com ainda mais preocupação. Meses depois da tragédia de Beveridge, a categoria retornou a Monza para a edição de 2001 do GP da Itália, e o clima era sombrio. Afinal, a morte do fiscal Paolo Gislimberti no ano anterior ainda estava na memória de todos. Além disso, houve em um curto espaço de tempo o grave acidente de Luciano Burti, no GP da Bélgica, os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos e a pavorosa batida de Alessandro Zanardi na CART, na Alemanha.

Por conta disso, 21 dos 22 pilotos do grid concordaram em percorrer as duas primeiras chicanes de corrida sem ultrapassagens, por precaução de segurança. O único que se opôs à ideia foi Jacques Villeneuve. Flavio Briatore, da Benetton, e Tom Walkinshaw, da Arrows, também forçaram seus pilotos a não aceitarem a ideia, então a largada foi dada normalmente. 

GP do Canadá de 2013 – Mark Robinson

Fiscais removem carro da Sauber; instantes depois, resgate terminaria em tragédia (Foto: Reprodução)

A F1 usou os episódios para buscar melhorias. Nos carros, as suspensões foram reforçadas ainda mais, com cabos extras para garantir que as rodas permanecessem presas aos carros em situações de batidas. Áreas de escape e proteções para fiscais também foram aprimoradas. Mas uma tragédia com um fiscal voltaria a acontecer em 2013, e em uma situação absolutamente banal.

A cinco voltas para o fim do GP do Canadá, Esteban Gutiérrez, da Sauber, ocupava a 16ª posição e bateu na saída da curva 2. Para remover o carro do mexicano, a direção de prova usou um trator de resgate e aplicou bandeira amarela no local – lembrando que tudo isso aconteceu antes do acidente de Jules Bianchi, que mudou os procedimentos para este tipo de caso.

LEIA TAMBÉM: A trágica história de Maria de Villota na F1

O carro foi temporariamente removido, e depois que a corrida terminou, ele estava sendo levado até a garagem da Sauber. Foi aí que o incidente aconteceu. Um fiscal caminhava logo à frente do trator, para garantir que o carro de Gutiérrez se estabilizasse e não se danificasse no transporte.

Porém, ele deixou cair sem querer o seu aparelho de rádio, e quando foi se abaixar para pegá-lo, tropeçou e caiu. O motorista do trator não conseguia ver o que estava acontecendo e acabou passando por cima do fiscal caído. Ele foi transportado de helicóptero ao hospital, mas faleceu pouco depois. 

Foi confirmado que o homem era Mark Robinson, de 38 anos, que atuava como fiscal voluntário há mais de dez. A CSST, uma comissão local que investiga acidentes de trabalho concluiu que a organização da prova cometeu falhas, entre elas:

  • O trator andava mais rápido do que deveria, a 11 km/h
  • Durante o resgate do carro, ninguém poderia ficar próximo ao trator, especialmente Robinson que chegou a ficar em em um ponto cego para o motorista. Isso mostrou que houve uma falha no treinamento dos fiscais por parte da organização local.

A segurança no automobilismo é um tópico em constante evolução, e ocasionalmente podemos ver episódios que expõem da pior maneira estas vulnerabilidades – seja de equipamento, seja de procedimentos. O importante é lembrar da história destes personagens e valorizar seus trabalhos como voluntários, para aprender com os erros e evitar que novas tragédias se repitam. 

Confira mais detalhes em nosso vídeo especial:

Comunicar erro

Comentários

Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial