GP do Brasil 2003: uma das corridas mais loucas da história da F1
O GP do Brasil de 2003 é amplamente considerado como uma das corridas mais malucas que a F1 já viu. Afinal, foi uma prova que correu risco de não acontecer, que não teve uma largada tradicional, não teve bandeirada, e teve só dois pilotos no pódio, sendo que dias depois o resultado foi revertido e passou a ter um novo vencedor.
Isso sem contar a Ferrari de Rubens Barrichello parando sem gasolina, os acidentes múltiplos em um mesmo ponto da pista e uma chuva que deixou todo mundo encharcado. Enfim, aconteceu de tudo.
Primeiro, precisamos explicar como estava o contexto da F1 naquela época. A Ferrari vinha de uma fase de domínio nos anos anteriores, então, como resposta, a FIA implementou mudanças impactantes no regulamento desportivo. Uma delas foi no sistema de pontuação, que diminuía a margem do vencedor, e passava a premiar os oito primeiros colocados das corridas.
Mas as que mais importam para este vídeo vieram no formato do fim de semana como um todo. Passaria a haver uma pré-classificação na sexta-feira, onde cada piloto iria à pista sozinho, um de cada vez, e na ordem do campeonato – ou seja, primeiro ia o líder da tabela, depois o segundo colocado e assim por diante.
Cada piloto dava apenas uma volta rápida, sendo que essa sessão servia para definir a ordem em que eles iriam à pista para a classificação de sábado. Aí, no sábado, a classificação também era em formato de volta lançada única, com um de cada vez na pista, na ordem invertida do resultado da classificação de sexta.
Só que ali os carros deveriam já contar com o combustível da largada e o acerto de corrida, já que depois da classificação eles seriam lacrados no novo parque fechado.
Além disso, cada fornecedora de pneus poderia levar somente um tipo de composto para pista molhada. Para o GP do Brasil, a Bridgestone levou pneus intermediários, enquanto os compostos da Michelin eram capazes de suportar uma chuva um pouco mais forte.
Essa informação é bastante importante para nossa história. Se todas essas mudanças quiseram chacoalhar a relação de forças, deu certo. A McLaren, que
havia iniciado o ano com o seu carro de 2002 adaptado, havia vencido as duas primeiras corridas de 2003, enquanto a Ferrari, que também usava seu modelo do ano anterior, tinha apenas um segundo lugar de Barrichello na Malásia como melhor resultado.
GP do Brasil sob risco e classificação em Interlagos
A terceira corrida do ano seria o GP do Brasil, na última ocasião em que a prova em Interlagos foi realizada na porção inicial do calendário. Mas uma curiosidade: você sabia que a corrida esteve em risco de não acontecer por conta de uma tensão nos bastidores?
Isso porque a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, queria fazer valer uma lei que proibia patrocínio de cigarros em corridas de carro. Isso gerou repercussão na F1, uma vez que várias equipes do grid contavam com financiamento da indústria tabagista.
A polêmica se desenrolou por dias e até envolveu o Ministério do Esporte. Mas, no fim, se resolveu com a publicidade de tabaco sendo liberada.
Quando o foco voltou a ser a ação dentro da pista, na sexta, a chuva já tomava conta de Interlagos, e muitos pilotos tiveram dificuldades em andar na pista molhada.
O mais rápido da classificação de sexta-feira foi o surpreendente Mark Webber, da Jaguar. Ele fecharia a sessão de sábado logo depois de Barrichello, que ficou em segundo lugar na pré-classificação com a Ferrari.
Mas, quando chegou o sábado, a situação climática era bem diferente: fazia sol, o que deixava tudo mais embaralhado – uma vez que os pilotos tinham de se classificar com o acerto que usariam na corrida, sendo que a previsão do tempo indicava um clima instável para domingo.
Rubinho, o penúltimo a ir à pista, decidiu apostar em um acerto um pouco mais voltado à pista seca, e em sua tentativa na classificação, superou a McLaren de David Coulthard por apenas 0s011. Como depois dele faltaria apenas o azarão Webber com a Jaguar, a torcida brasileira já comemorava a pole position de Barrichello.
Só que o australiano deu um susto no público. Em sua volta rápida, ele passou 0s2 mais rápido que do que a segunda parcial de Barrichello. Mas como seu carro estava com mais pressão aerodinâmica pensando na chuva, ele perdeu rendimento na reta dos boxes e completou a volta com um tempo 0s044 pior que Barrichello, ficando com o terceiro lugar e dando ao brasileiro sua primeira pole position em casa.
Domingo maluco em Interlagos
Mas o destino traria um desdobramento inesperado para domingo. Quando chegou o dia da corrida, de novo a chuva compareceu com força em Interlagos.
Isso mudou os procedimentos de largada: o começo da prova foi adiado em 15 minutos, sendo que o início das atividades aconteceria atrás do safety car, e não nos moldes tradicionais de grid parado.
A partir do momento em que as ações começaram, Barrichello, com o carro preparado para pista seca, começa a perder sua vantagem e chega a cair para a sexta posição. A McLaren domina a fase inicial da prova, com Kimi Raikkonen à frente de David Coulthard, enquanto que Michael Schumacher chega a subir de sétimo para terceiro.
Só que um choque entre Ralph Firman e Olivier Panis, na volta 18, provoca a entrada do safety car e embola as estratégias. Praticamente todos os ponteiros decidem parar para reabastecer, com exceção justamente do líder Raikkonen.
Então, o finlandês permaneceu na ponta, mas tinha imediatamente atrás vários rivais que já tinham uma parada. Quando houve a relargada, ainda tinha muitos pontos da pista com bastante água acumulada.
O principal deles era a Curva do Sol, com um verdadeiro riacho correndo no local. Então, em questão de poucas voltas, nomes como Schumacher, Juan Pablo Montoya, Jos Verstappen e Jenson Button escaparam na curva e bateram na barreira de proteção.
O acidente de Schumacher foi o mais perigoso, já que no momento havia tratores de resgate na área de escape removendo outros carros. Ao todo, seis carros abandonaram naquela curva.
Frustração brasileira
Quando o líder Raikkonen enfim parou para reabastecer, ele perdeu terreno. Com as posições estabilizadas, o finlandês era o quinto colocado, e como todos em tese ainda precisariam parar mais uma vez, a vitória parecia que seria disputada por Coulthard e Barrichello, os dois primeiros.
E, na medida em que a pista secava, era o momento de o brasileiro brilhar. Na volta 45, Barrichello pressiona Coulthard e ultrapassa no S do Senna, assumindo a liderança da prova para delírio das arquibancadas em Interlagos. E ele era tão mais rápido que, em pouco tempo, já abria 4s de vantagem para o escocês da McLaren.
Parecia que o sonho da vitória em casa enfim estava chegando, mas o destino tratou de dar uma ducha de água fria no piloto e na torcida. Somente duas voltas depois, Barrichello encostou seu carro e abandonou a prova, de uma maneira que parecia absolutamente inexplicável. O que parecia uma vitória certa se transformou em seu nono abandono consecutivo em Interlagos.
A imagem de Barrichello sentado ao lado da pista foi uma das cenas mais marcantes daquele GP do Brasil, e a explicação foi complexa e simples ao mesmo tempo. O seu carro sofreu um problema eletrônico e apagou os dados de telemetria que eram transmitidos aos boxes.
Ou seja, a Ferrari não conseguia saber ao certo o consumo de combustível do brasileiro, então a solução era usar o carro de Schumacher como referência para a situação de Rubinho.
Mas, como o alemão bateu e abandonou, a Ferrari precisou partir para o cálculo – só que a chuva e um consumo mais alto do que o esperado pegou a todos no contrapé. Quando a equipe ainda estimava que Barrichello tinha 12 litros de combustível em seu tanque, veio a pane seca.
Inclusive, o brasileiro disse anos mais tarde que um dos momentos mais sofridos daquele dia foi quando ele ouviu o motor de seu carro ligando normalmente na garagem quando puseram gasolina – ou seja, era a prova concreta que de fato não houve nenhuma falha mecânica, e sim um erro de cálculo.
Bagunça na cronometragem no final do GP do Brasil
Mas a corrida ainda estava agitada. Quando o novo líder Coulthard fez seu segundo pit stop na volta 52, ele voltou atrás de Raikkonen, Giancarlo Fisichella, da Jordan, e Fernando Alonso, da Renault.
Raikkonen sofria com os pneus e cometeu um erro quando estava logo à frente de Fisichella, que aproveitou a chance para ultrapassar o finlandês e assumir a ponta de maneira surpreendente. E foi quando o caos chegou a um nível ainda mais alto.
Na Curva do Café, Mark Webber rodou, bateu forte e espalhou sujeira pela pista. Alonso, que vinha logo atrás, estava distraído conversando no rádio com a Renault, não percebeu os detritos e também colidiu forte, o que provocou a interrupção da prova em bandeira vermelha.
Alonso foi atendido na pista e depois levado ao hospital. Como mais de 75% de distância da corrida já havia sido disputada, a direção de prova optou por não retomar as ações, e encerrou o GP por ali.
Fisichella, mesmo com o carro já pegando fogo nos boxes, comemorou com a Jordan, afinal ele era o líder no momento em que a corrida foi encerrada.
Mas a direção de prova depois esclareceu a situação. A bandeira vermelha foi acionada na volta 55, e nessas condições o regulamento mandava voltar duas voltas antes para estabelecer o resultado final.
Aí era Raikkonen em primeiro como vencedor, Fisichella em segundo, e Alonso em terceiro. Assim, Raikkonen vencia pela segunda vez seguida, e dava continuidade a um início de temporada dos sonhos para a McLaren. E, como Alonso estava sendo atendido no hospital, o pódio contou apenas com dois pilotos, em uma outra cena inusitada para a F1.
Só que é claro que a maluquice não parou por ali. A direção de prova suspeitou que havia algo de errado, e decidiu rever o resultado em Interlagos. Cinco dias depois, uma reunião foi realizada em Paris para analisar novamente a cronometragem, um novo fato veio à tona.
Na verdade, 12 segundos antes de a bandeira vermelha ser acionada, o líder Fisichella já havia aberto a volta 56. Sendo assim, como eles já estavam na volta 56, o resultado final deveria levar em conta a volta 54, e não a 53.
Então, pela ordem da volta 54, o vencedor seria Fisichella, com Raikkonen em segundo e Alonso em terceiro. O resultado foi corrigido, e Fisichella enfim vencia pela primeira vez na F1 depois de 110 largadas, sendo que ele só recebeu o troféu de vencedor no GP seguinte, em Ímola. Aquela também seria a última vitória da equipe Jordan e dos motores Ford na F1.
Pós-GP do Brasil
Sem viver o mesmo domínio dos anos anteriores, a Ferrari estreou o seu novo carro para 2003 duas corridas mais tarde, no GP da Espanha. A McLaren correu o ano inteiro com o seu modelo de 2002 adaptado.
A disputa foi bastante acirrada,durante toda a temporada, com Raikkonen, mesmo vencendo apenas uma corrida, se mostrando bastante regular. Schumacher conquistou o hexacampeonato batendo o finlandês por apenas dois pontos ao final do campeonato.
Já Fisichella, o grande vencedor do GP do Brasil de 2003, só pontuou mais uma vez na temporada inteira, sendo que a Jordan ficou em penúltimo no Mundial de Construtores.
Tudo isso mostra como que o GP do Brasil de 2003 foi uma das situações mais anormais que a categoria já viu.
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