Depois de três anos, Haas enfrenta sua crise real (dentro e fora da pista)

Praticamente três anos e meio depois de sua estreia na F1, quando conseguiu provocar um impacto positivo de imediato, a equipe Haas sofre sua primeira crise real – o que acontece de maneira intensa, com contratempos e bateção de cabeça dentro e fora da pista.

Até então, o time liderado por Gene Haas e Gunther Steiner seguia à risca a cartilha do sucesso para prosperar em seu ingresso na F1. A iniciativa americana foi a primeira a iniciar sua trajetória na categoria com uma operação do zero – ou seja, sem adquirir uma equipe já existente – desde o trio de “nanicas” de 2010, formado por Virgin, Caterham e Hispania. E, ao contrário das três citadas, a Haas conseguiu se firmar, ganhar seu espaço e incomodar equipes mais tradicionais e estabelecidas.

Com uma operação enxuta, o time apostou suas fichas na parceria técnica com a Ferrari, adquirindo de Maranello não só motor e caixa de câmbio, mas também praticamente todas as peças que o regulamento lhe permite. Já aquilo que deve ser de uso exclusivo da equipe, ou seja, as chamadas “peças listadas” do regulamento, são de responsabilidade da experiente Dallara.

A filosofia trouxe dois benefícios imediatos. Primeiro, haveria o ganho de know-how  tanto pelos itens adquiridos da Ferrari como no desenvolvimento de chassi por parte de uma empresa veterana no ramo. Segundo, isso proporciona uma contenção de custos e livra a equipe em si de distrações e turbulências no desenvolvimento desenfreado dos carros.

Foi assim que a Haas surpreendeu a F1 no começo de 2016, quando conseguiu pontuar com Romain Grosjean em três de suas primeiras quatro corridas na categoria. Também foi assim que o time se tornou um dos destaques na temporada de 2018, ficando em quinto entre os construtores – o que fez com que parte da concorrência se incomodasse e questionasse o teor da parceria dos americanos com a Ferrari.

No entanto, 2019 viu a equipe sair dos trilhos. Tal fato foi simbolizado pela semana desastrosa envolvendo o GP da Inglaterra, quando a Haas experienciou desdobramentos catastróficos dentro da pista e risíveis fora dela, sobretudo com o conflito público com sua principal patrocinadora. Tudo isso foi consequência de decisões tomadas há alguns meses, como relembraremos.

Os problemas da Haas dentro da pista

A expectativa da Haas para o modelo VF-19 não podia ser outra: dar continuidade à temporada farta obtida em 2018 e, quem sabe, se tornar a “melhor do resto” da F1, posto com o qual chegou a flertar no ano passado.

Porém, a transição para a nova campanha não foi fácil. O carro apresentou momentos de velocidade em algumas oportunidades, mas não conseguiu estar em compatibilidade constante com o traiçoeiro comportamento dos pneus Pirelli para a temporada de 2019.

Para o atual ano, a fornecedora italiana introduziu em definitivo pneus com banda de rodagem 0,4 mm menor do que os compostos regulares da temporada passada (algo que já havia sido usado em três corridas de 2018). A intenção com a diminuição era eliminar o superaquecimento dos pneus para que os pilotos pudessem forçar o ritmo constantemente na corrida, sem precisar aliviar para reduzir as temperaturas.

Como efeito colateral, a redução da borracha também provocou mudança na chamada “janela de performance” dos pneus, ou seja, na temperatura ideal que o composto deve atingir para alcançar seu rendimento máximo. Se os pneus de 2018 tinham a tendência de armazenar temperatura com facilidade, causando até o superaquecimento, em 2019 seria preciso tratá-los de uma forma diferente para mantê-los dentro desta janela de forma constante, sem perder a temperatura.

Haas tem tido problemas que ainda não tinha enfrentado na F1 dentro e fora da pista
Haas tem tido problemas que ainda não tinha enfrentado na F1 dentro e fora da pista (Foto: LAT/Haas)

Foi nisso que a Haas enfrentou problemas. No geral, Kevin Magnussen e Romain Grosjean ocasionalmente se destacam em situação de classificação, quando é preciso manter as temperaturas ideais dos pneus por apenas uma volta lançada. Contudo, em condição de corrida, com tanque cheio e stints mais longos, os pneus pouco a pouco vão perdendo temperatura e deixam a janela de performance, o que faz com que seus carros despenquem no pelotão.

Com quase metade da temporada já concluída, a Haas ainda coça a cabeça para entender por que o VF-19 é ineficaz no trato com os pneus. Em uma tentativa quase que desesperada, a equipe colocou Grosjean para competir em Silverstone com o pacote aerodinâmico usado na abertura do campeonato, na Austrália, enquanto que Magnussen utilizou a versão mais recente, introduzida na Espanha. A ideia era comparar o rendimento das duas versões para verificar se a equipe havia perdido a mão na corrida por desenvolvimento.

Grosjean se classificou à frente de Magnussen e se disse mais confortável com seu “novo velho” carro. Só que as comparações mais detalhadas foram comprometidas com contratempos que, certamente, a equipe julga desnecessários.

Primeiro, Grosjean bateu de maneira caricata na saída do box logo no primeiro treino livre, comprometendo sua programação. Já na corrida, ele e Magnussen colidiram nas primeiras curvas, o que provocou o abandono de ambos – e deixou Gunther Steiner irritado, já que foi a segunda colisão entre os pilotos que já haviam se estranhado em Barcelona.

Como resultado de tudo isso, a Haas se vê perdida no desenvolvimento de seu carro, na penúltima posição do Mundial de Construtores e com dois pilotos que esboçam uma crise graças a uma rivalidade interna.

Os problemas da Haas fora da pista

Para 2019, a Haas também teve uma grande mudança em sua identidade visual: sai a combinação branco/vermelho/cinza para a chegada do preto e dourado de seu novo patrocinador principal. Mas, em vez de relembrar qualquer momento de glória das cores dos tempos da Lotus, o acordo traz à memória alguns momentos questionáveis da F1, quando a categoria atraía figuras excêntricas e de procedência nebulosa.

Antes de qualquer detalhe, é importante relembrar que a Haas adotou filosofia diferente até mesmo em sua abordagem com patrocinadores. Entre 2016 e 2018, a equipe somente exibia marcas da empresa de automação de Gene Haas e de suas parceiras técnicas, patrocinadores de menor porte e/ou trazidos por seus pilotos (como a marca de relógios Richard Mille, de Romain Grosjean, ou a de roupas Jack Jones, de Kevin Magnussen). O acordo firmado com a empresa Rich Energy, que mudou as cores dos carros, foi simplesmente o primeiro patrocínio de maior porte já firmado pela Haas na F1.

Romain Grosjean, Haas F1 Team, Kevin Magnussen, Haas F1 Team, Guenther Steiner, Team Principal, Haas F1, William Storey, CEO Rich Energy in the Press Conference

A Rich Energy tem sede na Inglaterra, com foco no mercado de bebidas energéticas. Ocorre que seus produtos são raramente encontrados em prateleiras mundo afora, o que, aliado ao supostamente grande poder financeiro da empresa, mais um discurso megalomaníaco de sua chefia, provocam questionamentos sobre sua procedência e seriedade.

A figura que representa a situação é a do então diretor executivo da marca, William Storey, que circunda a F1 já há algum tempo. Em 2018, o excêntrico inglês quis tornar a Rich Energy compradora do espólio da Force India e se queixou publicamente quando sua oferta foi rejeitada.

Seu foco se voltou, então, a se tornar um patrocinador máster de uma equipe de F1. Chegou a conversar inicialmente com McLaren e Williams, mas, no GP dos Estados Unidos, quando compareceu como convidado da segunda equipe, deu os canos em Claire Williams em um jantar de negócios para conversar com a Haas. O acordo com o time americano foi anunciado apenas quatro dias depois, sendo que a equipe esclareceu que fez todas as verificações burocráticas sobre as finanças e regularidades da nova parceira.

A grande exposição trouxe à tona outras questões envolvendo a Rich Energy. A empresa foi alvo de um processo por parte da empresa de bicicletas esportivas Whyte Bikes devido à logo bastante parecida, para dizer o mínimo. Storey inicialmente deu de ombros, disse que não estava preocupado com o desfecho do caso nos tribunais e que a empresa de bicicletas “não era conhecida”. Bem, pelo menos alguém da Haas conhecia…

Let’s have some fun with Mr Storey… 😉 #WhosEverHeardOfWhyte

How about the RichEnergy Haas F1 team driver Romain Grosjean…? Pictured on 26th August 2014 on a LotusF1 Team demo-day.

Retweet if you’ve ever heard of us… 🤦‍♂️

via @PeterDWindsor pic.twitter.com/aXNhdnd26m

— Whyte Bikes (@WhyteBikes) 18 de maio de 2019

O caso correu nos tribunais e viu a vitória da Whyte Bikes. Assim, a Rich Energy retirou o desenho dos carros da Haas, mantendo apenas a tipografia, e foi condenada a reembolsar a empresa de bicicletas pelos custos jurídicos (cerca de £35 mil).

Mas não parou por aí. A fim de calcular a indenização a ser paga pela Rich Energy pelos danos da violação do uso indevido da logo, a empresa teria de apresentar à justiça, até o dia 1º de agosto, uma série de informações sobre seus lucros, vendas, movimentações financeiras e negócios pelo mundo – e isso incluía os detalhes do acordo com a Haas.

Coincidência de datas ou não, justamente em meados de julho a situação entre Haas e Rich Energy ganhou tons estranhos. Nas vésperas do GP da Inglaterra, a empresa publicou em seu Twitter que encerraria de imediato o contrato com a equipe devido à “performance ruim”, já que ela queria “bater a Red Bull”, mas ficou “atrás da Williams na Áustria, o que é inaceitável”.

O método utilizado para anunciar a decisão, bem como a linguagem usada e até mesmo a ortografia, indicavam que não se tratava de um comunicado planejado, e sim algo feito de maneira impulsiva, beirando até o amadorismo. Depois, o site da Racer apurou que a senha das redes sociais da Rich Energy foi modificada recentemente, enquanto que a Autosport diz que o autor dos tweets foi o próprio Storey ou alguém autorizado por ele.

Durante o fim de semana em Silverstone, os demais acionistas da Rich Energy diziam que aquele não era o real posicionamento da empresa, que manteria o acordo com a Haas. Enquanto isso, nas redes sociais, a Rich Energy segue enaltecendo a posição de Storey e até ridicularizando a Haas pelo acidente entre Grosjean e Magnussen na abertura da corrida inglesa.

O desdobramento mais recente do caso foi a mudança do nome da empresa (que passará a se chamar Lightning Volt) e a retirada de William Storey do posto de diretor executivo.

Por mais que boa parte dos eventos que detalhamos há pouco digam mais respeito à empresa Rich Energy/Lighning Volt do que a Haas em si, isso não deixa de ter desdobramentos catastróficos para a equipe americana. Nenhuma equipe da F1 que se preze gosta de se associar com parceiros que ostentam postura amadoresca, fazem críticas de forma ríspida e infantil e lavam roupa suja de conflitos internos em público. Mesmo que isso tenha sido ação de um único indivíduo, como garantem os acionistas, isso não deixa a situação como um todo menos patética, até porque o responsável em questão era justamente Storey, que agia como porta-voz da marca e foi quem costurou o acordo com a Haas.

Se o grande mérito da Haas em sua entrada na F1 foi escolher de forma cirúrgica seus parceiros, este talvez seja o maior pecado cometido atualmente do ponto de vista de imagem. Ao se associar de forma tão íntima com uma marca, até mesmo unindo seus nomes de forma oficial (já que o nome de inscrição da equipe é “Rich Energy Haas F1 Team”), qualquer ação irresponsável do Rich Energy respinga na reputação da Haas. Levando até a uma situação mais extrema, isso até pode ferir as intenções imediatas de outras marcas se associarem à equipe, já que passa a impressão de que a Haas “aceita qualquer um” que tenha dinheiro a bordo e, consequentemente, não acrescenta tanto valor assim em prestígio para a companhia.

Em sua curta vida na F1, a Haas superou muitos desafios que várias outras equipes não conseguiram. Porém, tardou, mas não falhou, e os tropeços enfim apareceram, e em dose dupla. O sucesso em curto prazo da equipe irá depender, parafraseando Gunther Steiner, de como ela sairá do buraco que ela própria ajudou a cavar com algumas poucas (mas importantes) decisões questionáveis.

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