Hans: de “colar que causa dor” a item chave de segurança na F1
Em um esporte tão tecnológico como a F1, é difícil imaginar que um dos componentes de segurança mais eficazes tem um funcionamento tão simples. Pois é exatamente este o caso do HANS.
Trata-se de uma espécie de colar que os pilotos usam entre o capacete e os ombros, e que desempenha papel fundamental na proteção da cabeça e do pescoço em casos de alta desaceleração, que ajuda e muito a diminuir as lesões graves em acidentes mais fortes. Hoje em dia, é inimaginável um piloto competir em uma categoria de alto desempenho sem o HANS, mas saiba que nem sempre foi assim.
Quando a peça foi introduzida na F1, ela foi alvo de protestos, já que muitos pilotos não concordavam com a obrigatoriedade de seu uso, e até diziam que o HANS poderia piorar as coisas e provocar ainda mais lesões
Antigamente, as consequências de uma Lei da Física proporcionavam constantes lesões aos pilotos em caso de acidente. Em qualquer impacto em uma barreira de proteção, o corpo do piloto permanece preso ao carro pelo cinto de segurança, mas a cabeça ainda se movimentava violentamente graças aos efeitos da inércia. Isso é conhecido como “efeito chicote”, o que podia provocar graves lesões no pescoço e na cabeça, especialmente na base do crânio.
Foi para evitar este tipo de lesão que foi desenvolvido o HANS – que é uma sigla para Head And Neck Support, ou Suporte para Cabeça e Pescoço. A peça em sua configuração mais moderna é feita de fibra de carbono, e pesa cerca de 200g. Ela é composta por duas alças que passam por cima da clavícula e permanecem presas pelo cinto, enquanto que a base fica na região da nuca.
É importante que o piloto tenha um bom encaixe com o HANS, tanto que ele deve ser moldado com o formato de seu corpo, além de poder contar com alguma espuma na parte de baixo para aumentar o conforto. A peça conta com duas presilhas que são conectadas à porção inferior do capacete. Esta presilha deve ter em torno de 150mm, mas pode ser um pouco maior ou menor pela margem de tolerância .
Então, quando o piloto bate, o HANS garante que o movimento da cabeça seja significativamente reduzido. Isso, de acordo com os estudos, pode diminuir em até 86% a força imposta ao pescoço, e diminuir em até 68% o risco de lesões à cabeça.
Este dado tem enorme importância. Vale lembrar que, entre as décadas de 90 e 2000, as principais categorias do mundo acumularam fatalidades com pilotos que sofreram lesões na base do crânio. A F1, com Roland Ratzenberger e Ayrton Senna, a CART, na morte de Gonzalo Rodríguez, e a NASCAR, com Dale Earnhardt. E isso só para citar alguns. Mas o acidente que desencadeou todo o desenvolvimento do HANS foi menos midiático.
A história do desenvolvimento do HANS
Em 1981, o piloto Patrick Jacquemart morreu em um acidente durante um teste com carro da IMSA em Mid-Ohio. Jim Downing, um outro piloto que era seu amigo, pediu ajuda a seu cunhado, o engenheiro biomecânico Robert Hubbard, para estudar uma forma de se evitar lesões em pancadas do tipo. Assim, Hubbard chegou ao primeiro protótipo do HANS em 1985, mas demorou para a peça ganhar os maiores palcos.
Por exemplo, a CART só obrigou o uso do HANS na década de 2000, primeiro nos circuitos ovais, e depois em todo tipo de pista . Já a NASCAR tornou mandatória, em outubro de 2001, a adoção de uma peça que reduzisse o “efeito chicote”, seja com o HANS ou o Hutchens Device, um outro componente que tem funcionamento parecido. Nesta corrida, a F1 ficou para trás, pois a adoção do HANS não foi exatamente simples.
Voltemos um pouco no tempo. Após as mortes de Roland Ratzenberger e Ayrton Senna, em 94, a F1 iniciou uma verdadeira cruzada para aumentar a sua segurança. A FIA chegou a pedir ajuda à Mercedes para desenvolver algumas soluções, sendo que a fabricante alemã inicialmente foi na direção de um sistema de airbags para os carros de F1.
No entanto, Charlie Whiting e o médico Sid Watkins ficaram intrigados quando ouviram falar sobre o projeto de Robert Hubbard. Assim, em 1996, a F1 foi oficialmente apresentada ao HANS, sendo que a Mercedes imediatamente descartou o desenvolvimento dos airbags e apostou as fichas nesta outra solução, porque viu que se tratava de uma ideia muito mais simples e eficiente.
Mas ainda havia muito trabalho a ser feito. Era preciso diminuir o tamanho do HANS para ele caber no cockpit, além de resolver questões de conforto para o piloto. Ainda com o suporte da Mercedes em seu desenvolvimento, o HANS só encaixou direito em um carro de F1 no ano de 1999. Então, faltava o próximo passo, que era o mais importante: fazer o HANS ser implementado para valer na F1.
E isso demorou um pouco até sair do papel. Foi só em junho de 2002 que a F1 oficializou a introdução do HANS, que passaria a ser acessório obrigatório para todos os pilotos a partir do dia 1º de janeiro de 2003. Em Monza, em 2002, a Sauber foi a primeira equipe a usar o HANS em um fim de semana de GP, experimentando a peça com Nick Heidfeld e Felipe Massa.
Porém, a introdução completa não foi algo tão simples. Massa foi um dos que defenderam o HANS logo de cara – ele havia tido um acidente forte em Mônaco, no qual bateu o nariz em seu volante, e considerava que a peça teria ajudado a protegê-lo. Tanto que ele aprovou o HANS e usou o utensílio durante todo o fim de semana em Monza. Mas havia quem pensasse totalmente o oposto.
A rejeição inicial de pilotos da F1
Campeão de 1997, Jacques Villeneuve dizia que não conseguia se sentir confortável e guiar com o HANS, que, para ele, era um conceito que fazia muito mais sentido para ovais do que para circuitos mistos. De acordo com o canadense, o desconforto com o HANS poderia “provocar mais lesões do que evitá-las”, e usou como exemplo o acidente de Pedro Paulo Diniz em Nurburgring, 99, que Villeneuve acredita que teria sido fatal caso o brasileiro estivesse usando o HANS.
Nick Heidfeld, que testou o HANS com a Sauber durante o GP da Itália de 2002, vestiu a peça só durante a sexta-feira, mas abandonou o experimento por sentir dores na cabeça e desconforto na clavícula.
Já Michael Schumacher não sentia dificuldades particulares, mas acreditava que a novidade não deveria ser algo obrigatório . Houve também preocupações em termos de seguro, sobre quem iria se responsabilizar financeiramente caso um piloto se acidentasse por estar desconfortável com o acessório.
Porém, a visão da FIA era bastante categórica sobre o tema. O presidente da entidade, Max Mosley, reforçou que não haveria exceções, e que o mesmo tipo de rejeição existiu quando a F1 introduziu capacetes fechados, cintos de segurança e outros elementos de proteção. Ou seja, era uma questão de mudança de hábito por parte dos pilotos.
Assim, o GP da Austrália de 2003 foi o primeiro em que o HANS foi um item obrigatório. E é claro que ele seria um tema durante o fim de semana. Apenas na sexta volta da corrida, Rubens Barrichello perdeu o controle do carro e bateu, pois disse que teve sua concentração comprometida devido ao incômodo causado pelo HANS .
O brasileiro da Ferrari, aliás, foi um dos que mais diziam sofrer com o HANS desde a pré-temporada, e não concordava com a obrigatoriedade de ter de usar “um colar que causava dor”.
Para a segunda corrida do ano, na Malásia, Barrichello recebeu uma liberação especial para competir sem o HANS. Foi a última vez na F1 que alguém correu sem o utensílio. Até porque a FIA deixou claro que não faria mais concessões, e que se um piloto não quisesse usar o HANS, ele teria de ser substituído.
Mas isso não significava que os problemas estivessem resolvidos. Por exemplo, Justin Wilson, da Minardi, já enfrentava dificuldades de conforto por ser o piloto mais alto do grid , e o HANS deixava as coisas ainda mais complicadas.
Na Malásia, a peça se deslocou no cockpit e comprimiu um nervo de seu ombro, o que fez o inglês sofrer uma paralisia completa no braço direito. Ele abandonou a corrida e demorou oito minutos até conseguir ser removido do carro, e precisou passar a noite no hospital para se recuperar. Mesmo assim, a FIA não recuou, manteve o HANS como item obrigatório, e disse que eram as equipes que deveriam arrumar maneiras de se adaptar ao acessório.
A prova final e aprovação definitiva do HANS
Foi só na terceira corrida do ano, no Brasil, que o HANS foi elogiado por seu papel na prática. Fernando Alonso teve um acidente assustador na entrada da reta dos boxes, o que provocou o encerramento prematuro da prova. Mesmo assim, espanhol não ficou nenhuma dor na cabeça ou no pescoço, e considerou que o HANS teve papel fundamental nisso.
E foi assim que as equipes lidaram com o HANS com o passar do tempo. Cada time foi responsável por fazer adaptações para que os pilotos se sentissem mais e mais confortáveis com o novo acessório.
Em abril, Juan Pablo Montoya foi mais um que elogiou o equipamento depois de ter sofrido um forte acidente durante um teste em Silverstone, o que o deixou sem nenhuma dor no pescoço. A mesma coisa aconteceu com a batida de Jenson Button em Mônaco, que deixou o inglês sem maiores complicações.
Assim, a F1 conseguiu sobreviver ao período de adaptação ao HANS, que hoje se tornou um elemento indispensável para os pilotos de alto rendimento.
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