Por que Mazepin e atletas na Olimpíada não usam bandeira da Rússia
Muita gente já tinha reparado no começo da temporada que ao lado do nome de Nikita Mazepin na tela de cronometragem na F1, não aparece a bandeira da Rússia, mas sim a sigla RAF, de Federação Russa de Automobilismo. O caso se repete agora nos Jogos de Tóquio, em que os atletas do país aparecem representando o Comitê Olímpico Russo, ROC.
Isso é consequência de um dos maiores escândalos de doping da história, em que a Rússia foi julgada não só pela recorrência de seus atletas, mas pelo esquema orquestrado e organizado dentro das principais entidades esportivas e até mesmo governo do país. Desta forma, a nação recebeu uma punição da Corte Arbitral do Esporte, o CAS, a não poder participar dos Jogos Olímpicos e Campeonatos Mundiais até o final de 2022 usando seu nome, bandeira ou hino.
Casos de doping infelizmente não são uma novidade no esporte profissional. Diversos países, equipes e atletas campeões mundiais e olímpicos já foram flagrados durante a história em exames que apontaram o uso de substâncias proibidas. E desta forma, a primeira vista, a punição a Rússia até pode parecer dura.
O problema aqui, no entanto, foi a forma como um grande esquema de trapaça esportiva foi patrocinado pelo país com o intuito de inflar seus resultados em Mundiais e Olimpíadas de Inverno e Verão.
No Projeto Esporte, canal no YouTube do mesmo grupo do Projeto Motor, explicamos os detalhes deste caso, como as investigações foram iniciadas e o caminho até a última punição, que está em vigor no momento.
A denúncia e investigação contra a Rússia
Em 2010, Vitaly Stepanov, um funcionário da Agência Antidoping Russa, a Rusada, tentou entrar em contato com a Wada, Agência Antidoping Mundial, para fazer a denúncia. Isso mesmo que você ouviu: tentou. Isso porque durante três anos, ele enviou mais de 200 e-mails e 50 cartas para a Wada sobre a questão e como resposta ouviu apenas que a entidade não tinha como investigar o caso.
Neste meio tempo, segundo matéria do jornal americano New York Times, a atleta de lançamento de disco Darya Pishchalnikova também enviou em dezembro de 2012 um e-mail para Wada com detalhes de um programa de doping patrocinado pelo governo da Rússia. Ainda de acordo com o Times, três dos principais dirigentes da agência antidoping receberam o e-mail, mas, em vez de abrirem uma investigação, eles resolveram encaminhá-lo para dirigentes esportivos russos. Coincidência ou não, em abril de 2013, Pishchalnikova foi flagrada pela segunda vez em um exame antidoping e suspensa pela Federação Russa de Atletismo por dez anos.
Um dirigente da Wada que não concordava com a falta de ação da entidade durante todo esse caso, resolveu colocar então Stepanov em contato com o jornalista alemão do canal ARD, Hajo Seppelt, que já tinha feito anteriormente reportagens sobre doping na antiga Alemanha Oriental. Com informações de Stepanov, o alemão produziu o documentário “O Segredo do Doping: Como a Rússia cria seus Campeões”, apontando participação direta do governo russo em um programa de doping de atletas de diversos esportes.
Na produção de 2014, Stepanoc e sua esposa, Yuliya Stepanova, corredora dos 800 metros rasos, acusaram dirigentes de entidades esportivas russas de fornecerem substâncias proibidas a atletas em troca de 5% de seus ganhos financeiros. Eles ainda atuariam para falsificar testes antidoping. Além de entrevistas, os dois incluíram gravações secretas que mostravam, entre outros casos, a campeã olímpica dos 800 metros rasos dos Jogos de Londres, Mariya Savinova, dizendo que contatos dela em um laboratório de exames em Moscou tinham acobertado o seu doping.
O documentário caiu como uma bomba no mundo esportivo e a Wada não teve alternativa a não ser abrir uma ampla investigação sobre o caso, liderada por Dick Pound, ex-presidente da agência. Um relatório foi apresentado pela entidade em nove de novembro de 2015, corroborando as acusações de Stepanoc sobre o envolvimento direto e sistemático do governo e principais autoridades esportivas russas em um amplo programa de doping.
Em suas 325 páginas, o documento apontou uma “cultura profundamente enraizada de trapaça”, além de “prática de corrupção e suborno no mais alto nível do atletismo internacional”. Assim, recomendou-se que a Rússia fosse suspensa e impedida de competir em eventos internacionais, incluindo os Jogos do Rio de 2016.
No dia seguinte da apresentação, a Wada suspendeu o Centro Antidopagem de Moscou, proibindo o laboratório de realizar qualquer atividade antidoping lidada a ela.
Em 13 de novembro, o conselho da Associação Internacional das Federações de Atletismo, a IAAF, votou por 22 a 1 em favor de banir a Rússia de provas de pista ou de campo com efeito imediato. A Federação Russa de Atletismo sequer tentou reverter a punição.
No mesmo mês, a França iniciou uma investigação criminal contra o ex-presidente da IAAF, Lamine Diack, alegando que em 2011 ele aceitou uma propina de um milhão de euros da Associação Russa para acobertar resultados positivos de pelo menos seis atletas do país. Ele seria condenado por lavagem de dinheiro, corrupção e tráfico de influência a dois anos de prisão de pena suspensa, por conta de sua idade de 87 anos.
E tudo isso era apenas o começo. Nos meses a seguir, diversas suspensões e banimentos de atletas aconteceram, medalhas olímpicas de 2012 foram cassadas, além do surgimento de mais denúncias sobre o acobertamento do programa de doping russo.
O relatório McLaren e as primeiras punições
Para ir ainda mais fundo no caso, a Wada contratou o advogado canadense Richard McLaren para investigar possíveis problemas com a delegação russa na olimpíada de inverno de Sochi de 2014, dois anos antes. Foram realizadas novas entrevistas com testemunhas, revisão de documentos, análise de memória de computadores e revisão forense de amostras de urina do evento.
O material gerou o que ficou conhecido como Relatório McLaren, em que foi apontado ligação direta do Ministério do Esporte russo e entidades esportivas do país numa operação de proteção de atletas russos que competiram dopados, afirmando ainda “que sem dúvida alguma, as tampas das amostras de urina poderiam ser abertas sem deixar evidências a um olho treinado”. E que esse esquema foi utilizado, pelo menos, entre 2011 e 15, acobertando 643 exames positivos em 31 modalidades diferentes tanto de esportes de inverno como de verão.
Diante das evidências, a Wada recomendou que o COI banisse a Rússia dos Jogos do Rio de Janeiro, que aconteceriam menos de um mês após as novas denúncias, mas o Comitê Olímpico declinou a requisição e deixou a decisão nas mãos das federações de cada esporte. Nessas condições, 111 atletas russos, sendo 63 só do atletismo, acabaram impedidos de competir no evento enquanto outros 278 foram liberados.
Por outro lado, o Comitê Paraolímpico Internacional resolveu seguir a recomendação da Wada e baniu a Rússia de seu evento, também na Rio 2016. O Comitê Paraolímpico Russo apelou da decisão ao CAS, A Corte Arbitral do Esporte, e até à Corte Suprema de Justiça da Suíça, onde fica a sede do Comitê Internacional, mas sem sucesso.
Mesmo diante desse enorme escândalo, em outubro de 2016, o ministro do esporte da Rússia, Vitaly Mutko, foi promovido a primeiro-ministro. O país anunciou uma série de novas leis antidoping e criou uma comissão sobre o assunto liderada pela bicampeã olímpica do salto com vara, Yelena Isinbayeva. Só que dois meses depois, foi publicada uma segunda parte do Relatório McLaren afirmando agora que mais de mil atletas russos se beneficiaram do esquema de acobertamento de doping.
Nos anos seguintes, uma série de acordos e promessas foram feitas entre entidades russas, Wada, COI e federações, além da imposição de diversas multas, mas pouco se caminhou na questão de transparência. A IAAF chegou a votar para manter a suspensão do país em eventos internacionais por 11 vezes em seu conselho.
Rússia fora das Olimpíadas e Mundiais, incluindo F1
Em 17 de dezembro de 2020, o CAS revisou o caso da Rússia e resolveu diminuir a punição que tinha sido recomendada pela Wada. Em vez de banir o país de eventos esportivos internacionais, incluindo os Jogos Olímpicos, a Corte impôs um período de dois anos em que as equipes e atletas russos não poderiam usar o nome “Rússia”, bandeira ou hino, e passariam a se apresentar como um atleta ou equipe neutra.
Existe a permissão do nome Rússia e as cores da bandeira do país aparecerem nos uniformes dos competidores, porém, devem estar na mesma proporção da designação de atleta ou equipe neutra. Desta forma, foi concedida a autorização de ser usada a nomenclatura de Comitê Olímpico Russo, com a marca da entidade.
A sanção é válida também para campeonatos mundiais, por isso, ela também está presente para pilotos que competem em categorias deste nível da Federação Internacional de Automobilismo, como F1, Mundial de Endurance, Rali ou Fórmula E até o final de 2022.
Apesar de oficialmente obedecerem às restrições, informalmente, governo e entidades esportivas russas usam o discurso que todo o caso é uma perseguição do ocidente e ainda defendem que não fazem nada que outros também não fazem. Posição que deve manter por algum tempo ainda uma névoa em torno da administração do esporte no país.
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