McLaren MP4-4 e a polêmica: quem criou o carro mais dominante da F1?
Domingo, 3 de abril. Após pontear 60 das 60 passagens disputadas, o então bicampeão Alain Prost recebeu a bandeira quadriculada para uma das vitórias mais tranquilas de sua carreira, a do GP do Brasil de 1988. Bem verdade que sua vida fora facilitada pela ausência do novo companheiro de equipe, Ayrton Senna, que sofrera uma falha mecânica antes da largada, apelara ao carro reserva quando o regulamento já não permitia e, por isso, fora desclassificado. Não deixou de ser, porém, uma tremenda demonstração de força daquele que se tornaria o bólido mais dominante da história da F1: o McLaren MP4-4.
Vamos aos números: 15 vitórias e 15 pole positions em 16 corridas disputadas. Dez voltas mais rápidas. Mil e três giros liderados de um total de 1.031 em que esteve na pista. Não houve antes nem haveria depois um carro tão avassalador em relação à concorrência. Ferrari F2002 e Mercedes-Benz W07 Hybrid até se aproximaram de tais números e superaram alguns dos recordes absolutos, mas ainda sem alcançar a mesma hegemonia percentual.pul
Una a essa receita a presença de Senna e Prost, os dois melhores volantes daquela época e também presentes na lista de maiores de todos os tempos, e completamos o cenário de massacre.
Só que, mesmo trinta anos depois do surgimento de tão icônica máquina, uma grande polêmica perdura. Quem, afinal, merece as láureas pelo surgimento do MP4-4: Gordon Murray ou Steve Nichols? Ambos reivindicam para si a maior parcela de créditos pelo surgimento do monoposto alvirrubro, e o Projeto Motor explica ao douto leitor neste artigo por que há divergência entre eles a respeito.
Por que o MP4-4 foi tão dominante
Antes de chegarmos lá, precisamos avisar que o conspícuo colega Bruno Ferreira já apontou neste outro artigo os detalhes que levaram o MP4-4 a ser tão dominante frente os rivais na temporada 88. Não custa, porém, refrescar os motivos e acrescentar algumas informações.
Não é segredo para ninguém que o grande trunfo do monobloco estava em seu caráter esguio, assustadoramente baixo e de entre-eixos alongado em relação à oponência. A área frontal do chassi, por exemplo, foi reduzida em 10% em relação ao MP4-3, enquanto a posição de pilotagem passou a uma angulação de 30 graus em relação ao solo, relembrando o inovador conceito aplicado pelo genial Colin Chapman no Lotus 25, o “charutinho” do primeiro título de Jim Clark, em 1963.
Tais conquistas só foram possíveis por três fatores: primeiro, o extremamente compacto e eficiente propulsor RA168E fornecido pela Honda. A arquitetura era a mesma V6 biturbo com 80 graus de angulação entre as bancadas oferecida antes a Williams e Lotus, porém mais leve, compacto e com altura do virabrequim reduzida em 2,8 cm, a fim de diminuir o centro de gravidade.
Apesar da iminente morte das usinas turbocomprimidas a partir de 89, Osamu Goto, chefe do departamento de motores da Honda na F1, resolveu bancar uma profunda atualização da unidade turbinada, com objetivo torná-la ainda mais eficiente frente às restrições de 2,5 atmosferas de pressão e 150 litros de consumo de combustível por corrida impostas para aquele campeonato. E olha que a ideia inicial dos japoneses era estrear o V10 utilizado a partir de 89 já naquele ano…
Poderia ser ainda pior: antes de fechar com a Honda (muito graças ao fator Senna), a McLaren negociava uma renovação com a Porsche, que projetava um V12 já visando a 89. Estamos falando do mesmo projeto que se tornaria um fracasso retumbante na Footwork em 1991. O destino é realmente fascinante…
Voltando a falar do RA168E. Para atingir o desempenho esperado, a fornecedora promoveu: redução de diâmetro e curso dos pistões; aumento da taxa de compressão de 7,4 para 9,4:1 (ou seja: mais partes de ar para cada parte de combustível, o que significa redução de consumo); virabrequim mais baixo e plano; uso de bloco com paredes mais finas, embora ainda bastante rígidas, graças ao uso de ferro fundido dúctil, o que levou a uma redução de peso para a casa de 146 kg. Um trabalho realmente louvável.
Com as modificações o motor foi capaz de render quase 690 cv de potência (a 10.000 rpm) em regime de classificação, sendo 424 Nm (ou 43,2 kgf.m) de torque. Ao fim da campanha consta que a usina já superava 700 cv.
Entretanto, para que o virabrequim rebaixado pudesse ser aplicado ao monobloco, o time de engenheiros da McLaren teve de igualmente elevar o nível e construir uma novíssima caixa de câmbio. Ainda manual de seis velocidades, a transmissão dispunha de três, e não dois, eixos longitudinais de engrenagens. Pete Weismann e David North foram os responsáveis pelo desenvolvimento do sistema, sob supervisão intensa de Murray.
Vale destacar que uma regra vigente desde 87 surgia como terceiro ingrediente: a Fisa (à época braço esportivo da FIA) estabelecera que, por questões de segurança, os pés do ás deveriam estar posicionados atrás do eixo dianteiro. Isso estimulou o alongamento dos entre-eixos e consequente expansão da distribuição de massa, algo crucial para a implatanção eficaz do conceito do “carro-skate”.
Com esses elementos em mãos, Nichols pôde liderar sua equipe de aerodinamicistas para que desenhassem um bólido de traços simples (não havia qualquer tipo de rebuscamento nos aerofólios ou casulos dos radiadores laterais, por exemplo), alguns derivados do relativamente malsucedido MP4-3, mas que se encaixavam perfeitamente ao perfil baixo pretendido.
Se o trabalho parece ter sido tão bem dividido e posto em prática, por que então Murray e Nichols brigam até hoje pela alcunha de “verdadeiro pai” do MP4-4? Resposta direta e franca: duelo de egos. Embora nunca tenha havido qualquer acusação explícita de nenhuma parte, a sensação que fica é de que os dois nunca se “bicaram”, e só toleravam trabalhar juntos porque, oras… Eram bem pagos para isso.
Os argumentos de Nichols pela paternidade do MP4-4
Discípulo de John Barnard, o americano Steve Nichols herdou a responsabilidade de projetar os modelos da McLaren quando seu mentor decidiu aceitar o desafio da Ferrari, em 87. É por isso que talvez tenha tanta resistência em aceitar os méritos de Murray no projeto: foi ele quem fez o trabalho duro de criar o MP4-3 e, posteriormente, o MP4-4, enquanto Murray ingressou com o “bonde andando”, no papel de diretor-técnico. Por ser mais famoso, Murray acabou levando quase sozinho (e de maneira exagerada) os méritos pela criação.
Só que Nichols enxerga o chassi de 88 como nada mais do que uma evolução daquele criado em 87. “Dependendo do ângulo, se você olhar rapidamente a algumas fotos do 4-3, pensa que é um 4-4”, defendeu certa vez em entrevista à revista britânica Autosport. Não é que ele tem uma parcela de razão? Elementos como o entre-eixos mais longo, o centro de gravidade mais baixo e o sidepod também rebaixado já eram conquistas do MP4-3 em relação ao 2C, de 86.
O engenheiro afirma que em nenhum momento Murray tentou impor um conceito de carro extremamente baixo, e que o conjunto responsável pelos oito triunfos de Senna e sete de Prost naquela estação surgiu como mera consequência do uso de motor e câmbio extremamente compactos, além de um tanque de combustível com capacidade reduzida em 45 litros.
“[Toda a responsabilidade pelo perfil baixo do chassi] se deve aos componentes. Com um trem-de-força e um tanque tão menores, o que iríamos fazer? Posicionar os pilotos como se fossem uma parede em frente a eles? Seria natural adotar uma posição mais deitada nesse cenário”, argumentou.
Segundo Nichols, Gordon Murray ingressou na McLaren com a função de organizar os processos na nova sede da Mclaren e, principalmente, promover uma divisão bem definida entre os projetos de 88 e 89. “Ele ocupava uma função mais de diretor que de técnico. Estava muito envolvido com projetos do futuro e não queria misturar muito as coisas. Acabou deixando para nós a tarefa de confeccionar o carro”, definiu.
Diversos engenheiros e mecânicos que trabalharam na esquadra à época endossam a versão. Murray pouco teria “colocado a mão na massa” para criar o MP4-4, e coube a Nichols o papel de liderar todo o serviço prático de concepção do chassi. Matthew Jeffreys, projetista responsável pela porção dianteira daquele monoposto, é um deles: “John [Barnard] sentia que era importante ter um selo dele em qualquer detalhe [do bólido]. Já Gordon nos deu liberdade para criar nossas próprias soluções”, relembrou, também em depoimento à Autosport.
Os argumentos de Murray
Gordon Murray admitiu em diversas entrevistas ter assumido um papel mais burocrático na McLaren do que, por exemplo, na Brabham, mas não sem dizer que o conceito do “carro-skate” só foi aplicado ap MP4-4 por recomendação sua. “Eu reuni os caras e mostrei alguns esquetes da Brabham, um tipo de coisa que você jamais seria autorizado a fazer nos dias de hoje. Alguns desenhos mostravam o piloto numa posição de 30 graus. Apontei isso a Steve e a outros engenheiros, e lhes disse que era aquilo que devíamos fazer”, contou à Autosport.
Mais: Murray também assegura que partiu dele a ideia de tornar o motor Honda mais compacto e baixo e fim de facilitar a aplicação do conceito. Afinal, o BMW 4-cilindros em linha fora um verdadeiro estorvo para ele na construção do BT55, tendo que ser montado numa estranha posição de 72 graus. “Aquele V6 era bastante compacto, e eles o compactaram ainda mais. Eu expliquei todo o conceito e então reduziram a altura do virabrequim a meu pedido”, enfatizou.
Tais depoimentos são confirmados por outras fontes. “Tenho quase plena certeza de que [a reunião descrita por Murray]aconteceu mesmo, embora eu não tenha participado. Lembro que uns esquetes daquele carro [Brabham BT55] viviam aparecendo no escritório”, declarou Neil Oatley, chefe de desenho do McLaren MP4-5 em 88. “Murray nos abriu a visão sobre como poderíamos rebaixar a posição dos pilotos”, acrescentou o aerodinamicista Bob Bell.
Já a questão do motor foi embasada por ninguém menos do que o próprio Osamu Goto, obviamente quando ainda vivo, também à Autosport. “Ele me disse que queria adotar uma posição de pilotagem igual à do BT55, e por isso necessitava de um motor mais baixo”, rememorou.
Houve ainda a questão da caixa de marchas, este um elemento do chassi ao qual Murray dedicou mais de sua expertise técnica, conforme corroborado pelo próprio Nichols e também por membros de seu esquadrão de engenheiros. “Se houve uma área na qual Gordon esteve mais envolvido tecnicamente, foi o câmbio”, apontou Matthew Jeffreys. “O sistema de transmissão foi ponto chave para o sucesso do MP4-4. Tecnicamente representou um risco enorme. Potencialmente era nosso ‘calcanhar-de-Aquiles’”, descreveu o próprio Murray.
Por fim, as suspensões. O MP4-4 utilizava a geometria pullrod na dianteira, a mesma do… BT55. Sergio Rinland, substituto de Murray na Brabham e um dos autores do BT56 (sucessor do 55), surpreendeu-se durante o fim de semana do GP da Itália de 87 ao se deparar com o ex-chefe agachado em frente a um monoposto do time enquanto explicava, justamente a Nichols, os segredos daquela suspensão dianteira. “Não sei se eles me viram, mas sei que não gostei nada daquela cena”, contou.
Afinal, quem é o pai?
Uma pergunta tão complexa que nem os membros da cúpula de engenheiros da McLaren em 1988 são capazes de dar uma resposta exata. “Não saberia dizer o quanto daquele carro foi uma evolução natural e o quanto foi o dedo de Gordon. A paternidade dele é uma coisa difícil de definir”, ponderou Bob Bell.
Já Neil Oatley o considera uma “cria de Steve Nichols”, mas não sem uma ponderação. “Ambos eram um pouco teimosos e acho que não havia muita química entre eles. Talvez Steve tenha ficado ressentido com a chegada de Gordon”, disse.
Para o Projeto Motor, após coletar todas essas informações, é preciso reconhecer o trabalho de todas as partes igualmente. Sem as ideias e as requisições de Gordon Murray o MP4-4 não seria tão baixo e provavelmente nem tão eficiente quanto deveria, inclusive pela questão do motor e do câmbio, dois elementos cujo grau de compacidade foi influenciado diretamente por ele.
Do outro lado, sem o trabalho entrosado do time liderado por Nichols, que já iniciara a aplicação de parte das soluções do MP4-4 no 4-3, o resultado poderia ter sido tão desastroso quanto foi no Brabham BT55. Por fim, se a Honda não aceitasse o desafio de tornar ainda mais eficiente, baixo e compacto o já consagrado V6 biturbo, nada do que fora pensado lograria o mesmo êxito (pelo menos não de maneira tão massacrante).
No fim, o MP4-4 foi fruto não de uma mente específica, mas de um trabalho conjunto liderado por duas cabeças. São dois os seus pais. E aqui temos a irônica moral da história: mesmo sem um ir com a cara do outro, Steve Nichols e Gordon Murray complementaram um o trabalho do outro de maneira magistral. Uma harmonia obtida “sem querer querendo”, como já diria um poeta mexicano.
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