Suspensão da McLaren trabalhando com Norris passa pela zebra
(Foto: McLaren)

Entenda como funciona a “dança orquestrada” da suspensão de um F1

Muito se menciona, mas pouco se explica qual o papel e a importância dos conjuntos de suspensões para o funcionamento de um carro de F1. Em meio à grande discussão sobre motores e aerodinâmica, o Projeto Motor fará uma afirmação que talvez seja nova ao douto leitor: a suspensão está entre os elementos mais relevantes do chassi, e a partir delas é possível definir basicamente como será todo o comportamento do bólido na pista. “Só” isso.

Parece meio elementar explicar que as arquiteturas desenvolvidas nos dois eixos têm como principal serventia manter o monobloco suspenso (daí o nome) enquanto ligado às rodas, sendo somente essas as responsáveis pelo contato com o solo. Só que sua serventia vai muito além disso: devido às atuais cargas de pressão aerodinâmica e forças gravitacionais alcançadas, as suspensões precisam suportar um peso equivalente a mais de três vezes a massa do próprio carro.

Ainda, sua geometria é capaz de determinar todos os parâmetros de aderência mecânica: desde tendências a sub ou sobre-esterço até o nível de desgaste dos pneus, passando por altura livre do solo e rigidez torcional do chassi em relação às forças vertical e lateral. Desde meados do atual milênio as suspensões ganharam também certo caráter aerodinâmico. Seus braços, esculpidos em fibra de carbono e com formato “chapado”, não mais cilíndrico, passaram a aprimorar o fluxo de ar que passa pelo chassi.

Para deixar mais claro o que estamos falando, segue um exemplo notório: a grande razão para o comportamento arisco do Williams FW16 que Ayrton Senna guiou no princípio de 1994 estava na suspensão traseira. Adrian Newey tentou compensar o fim da suspensão ativa aplicando um inovador conceito de braços superiores integrados por carenagem e em uma estranha forma um “Y”. Ali ficava claro que o projetista era um visionário, pois anteviu o aproveitamento aerodinâmico das peças. O problema é que a solução deixou o conjunto rígido demais e dando curso a toda hora, o que tornava o carro muito mais instável do que seus antecessores.

Os elementos da suspensão

O atual regulamento da F1 não permite mais tantas inventividades em relação às suspensões. Todos os carros construídos em tempos recentes são dotados de arquitetura independente e multibraço, com os seguintes elementos ligando a carroceria a cada roda: dois braços duplos triangulares sobrepostos (os populares “duplo-A” ou double wishbone); uma haste (chamada de rod) ligada a um balancim, que por sua vez se conecta a uma barra interna de torção e ao conjunto de mola e amortecedor; barra estabilizadora; e uma mola centralizada denominada “terceira mola” (já que há outras duas ligadas às rodas de cada eixo), terceiro elemento ou elemento central.

Estamos falando, portanto, de seis braços, o máximo permitido pelas regras. Abaixo explicamos de maneira bastante resumida a atribuição dada a cada uma das principais partes.

-Braços triangulares sobrepostos: os dois pares de braços aparecem posicionados horizontalmente em forma de… triângulo (por isso o nome), sendo os grandes responsáveis pela ligação do chassi às rodas e por estabelecer a altura livre do solo. Diferentemente de um carro de rua, que pode ser suspenso por componentes de cunho mais simples, como eixo tipo McPherson ou de torção, um F1 necessita dos braços sobrepostos para ser muito mais rígido e, assim, mais rápido e preciso. Além disso, tal montagem permite manter uma cambagem negativa das rodas (montagem com as pontas superiores mais próximas e inferiores afastadas), a fim de melhorar a sustentação dos pneus nas curvas e evitar uma sobrecarga sobre a área externa da banda de rodagem.

Suspensão da Renault de 2019
Suspensão da Renault de 2019. A carenagem aberta nos permite enxergar o encontro das hastes com os balancins, molas e amortecedores (Foto: Projeto Motor)

-Hastes de acionamento: Como balancins, molas e amortecedores são atualmente posicionados dentro do chassi (por questões aerodinâmicas), sua missão é promover a ligação desses componentes com as rodas. Pode ser projetado em dois sentidos distintos: pushrod, como na imagem de abertura, ou pullrod. No primeiro caso a barra se encontra com o sistema de amortecimento a partir de seu topo, empurrando-o (to push) para baixo. No segundo é o inverso: o contato se dá pela base, puxando (to pull) os elementos para cima. Explicaremos um pouco adiante as diferenças conceituais entre ambos.

-Balancins: elementos que integram as hastes ao sistema de amortecimento e realizam o acionamento efetivo das molas.

-Molas e amortecedores: praticam a absorção direta de impactos e ondulações. Se num automóvel comum sua função é aumentar o conforto, em um F1 a ideia é simplesmente deixar o chassi sempre rígido e equilibrado, sem tremedeiras ou saltos excessivos. Os dois elementos precisam atuar unidos: enquanto as molas helicoidais lidam com as irregularidades do piso, os amortecedores controlam o “efeito sanfona” das próprias molas. Sem os amortecedores, pois, as suspensões ficariam balançando incessavelmente para cima e para baixo. A regulagem desse conjunto é o que vai tornar as suspensões mais macias (lidando melhor com ondulações e zebras) ou rígidas (deixando o carro mais “à mão” em trechos de alta velocidade), de acordo com as características de cada circuito.

-Barras estabilizadoras: a tradução do nome deste componente para o inglês – anti-roll bar ou barra antirrolamento – dá uma indicação mais precisa de sua funcionalidade: lidar com as forças centrífugas laterais e segurar a inclinação do monobloco nos contornos de curvas.

-Terceiro elemento: aqui temos outra grande diferença das suspensões de um F1 para o carro que está estacionado em sua garagem. Como a capacidade de aceleração e frenagem dos bólidos de corrida é extremamente alta, os engenheiros precisam incluir uma terceira mola em cada eixo. Seu objetivo é controlar a ação das forças verticais, evitando que o bico aponte demasiadamente para baixo nas freadas ou para cima nas retomadas. Com isso, ajuda a manter os dois eixos numa altura sempre próxima do ideal, sem variações bruscas que comprometam a estabilidade.

O resultado de todos esses itens atuando sinergicamente, na prática, é este:

via Gfycat

Desde o fim de 93 o regulamento proíbe qualquer tipo de dispositivo, eletrônico ou mecânico, que promova um controle dinâmico das suspensões de acordo com o piso. É por isso que soluções como as suspensões ativas e os amortecedores de massa (usados pela Renault em 2006) não existem mais na categoria. Desde 2015 a FIA determina também que não haja qualquer tipo de interligação entre os eixos dianteiro e traseiro. Cada suspensão deve ser ajustada e atuar de maneira independente, sem auxílio de peças móveis que exerçam influência sobre a altura do chassi.

Pushrod ou Pullrod?

Uma das discussões mais intensas acerca das suspensões de um F1 se deu, em 2012, quando a Ferrari decidiu implantar o sistema de acionamento pullrod no carro que deu a Fernando Alonso o vice-campeonato daquela temporada. Mas, afinal, qual a diferença prática entre esse tipo de suspensão e a convencional pushrod, atualmente empregada em todos os modelos do grid?

Vamos lá: o estilo pushrod é mais vantajoso em diversos aspectos: primeiro, costuma ser mais amigável aos coeficientes aerodinâmicos e permite trabalhar com um centro de gravidade melhor, já que “empurra” molas e amortecedores para baixo (enquanto o outro “puxa” para cima). Suas hastes são mais longas e, portanto, trabalham sob uma carga menor de tensão, o que deixa o conjunto todo mais macio e colabora para um desgaste controlado dos pneus.

Já o pullrod possui uma arquitetura mais “tinhosa”: suas hastes são menos compridas e, como se posicionam sob o chassi, e não sobre, precisam suportar uma carga de peso cerca de três vezes maior. Isso se reflete em rigidez excessiva, tornando-a deveras mais dura e complexa de ajustar. É por isso que Felipe Massa teve tanta dificuldade na primeira metade daquele ano com a F2012: o brasileiro não conseguia encontrar uma regulagem confortável para sua pilotagem, que lhe permitisse carregar velocidade nas entradas e saídas de curva e ainda conservar os pneus.

Por outro lado, tal sistema ajuda a entregar mais aderência mecânica. É por isso que Fernando Alonso conseguiu se dar tão bem nas sessões disputadas sob chuva naquele ano (GP da Malásia e classificações para as etapas de Grã-Bretanha e Alemanha), a ponto de surgirem elogios exacerbados quanto a um hipotético cenário em que o espanhol estaria “carregando o carro nas costas”. Só que, no fim das contas, as vantagens do pullrod acabam quase nunca compensando suas limitações, e por isso a própria Ferrari desistiu da solução no fim de 2015.

A suspensão pullrod da Ferrari F2012. Repare na haste que vai de cima para baixo do cubo de roda para o chassi (Foto: Ercole Colombo/Ferrari)

Evolução da suspensão ao longo da história da F1

É óbvio que as suspensões empregadas aos monopostos de F1 passaram por um processo evolutivo ao longo de 67 anos de Mundial. Entretanto, os conceitos aplicados não são tão distantes assim daqueles existentes nos anos 50. Na fase primeva da categoria, os Alfa Romeo 158 e 159 eram dotados de braços tipo trailing, mas já em 1954 a Mercedes-Benz aderiu ao sistema de braços duplo-A no eixo dianteiro do icônico W196.

Na década de 60, engenheiros sustentaram o conceito de manter os braços triangulares inferiores, mas passaram a substituir os triângulos superiores por um braço único, do tipo balancim. Já nessa época, com a adoção dos motores centrais-traseiros, o sistema de amortecimento frontal pôde ser acasulado pelo chassi, aprimorando a aerodinâmica (o douto leitor sabe: quanto menos componentes atrapalhando o fluxo de ar, melhor). Em meados do decênio seguinte molas e amortecedores traseiros também passaram a ser integrados à carroceria.

Lotus 49 exibe suspensão dianteira com balancim superior e sistema de amortecimento exposto no eixo traseiro

Com a adoção dos carros-asa, a partir da segunda metade dos anos 70, as escuderias radicalizaram o conceito das suspensões com braço superior tipo balancim, criando carros com braços cada vez mais finos e rígidos. Chegamos ao ponto de, em dezembro de 1980, a Williams testar uma versão do FW07 desprovida de sistema de amortecimento. Teoricamente a rigidez extrema melhoraria o efeito solo, mas Alan Jones precisou apenas de algumas voltas em Paul Ricard para constatar que o carro batia o tempo todo contra o solo e se tornara inguiável daquele jeito.

O fim dos carros-asa, em 83, abriu caminho definitivo para a adoção dos braços duplos triangulares dotados de hastes complementares. Já nesse período havia estudos sobre a possível adoção de suspensões ativas, cuja altura variaria de acordo com o solo. Lotus e Williams venceram corridas com bólidos “ativos” em 1987, mas o conceito só se estabeleceria em 92, quando enfim havia tecnologia que permitisse um gerenciamento eletrônico efetivo do sistema.

Como todos sabemos, a suspensão ativa foi banida e, de lá para cá, a obsessão se voltou a transformar as suspensões em elementos integrantes da proposta aerodinâmica do chassi. Braços passaram a ser confeccionados em fibra de carbono e, mais recentemente, a receber desenho similar ao de uma pá, com foco total no aprimoramento da passagem de ar.

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