Motor da F1 se tornou uma máquina bastante complexa
(Foto: Pirelli)

Orquestra escondida: a complexa arte de gerenciar o motor da F1 moderna

As famigeradas unidades de potência híbridas são frequentemente mencionadas pelos fãs como um dos pontos negativos da F1 moderna. Mas, independentemente de preferências pessoais, não se deixe enganar pela falta de barulho: a eficiência do atual conjunto do motor é de encher os olhos.

As qualidades vão além da potência pura ou do torque (quase 20% a mais que o predecessor V8). O que chama a atenção é a impressionante autonomia do maquinário, que permite que um GP seja disputado com apenas 100 kg de combustível, 35% a menos do que se fazia até 2013.

Para que seja possível aliar desempenho com tamanha economia, exige-se tecnologia de primeiríssima linha, o que elevou o desafio de engenharia a outro patamar. Para entender mais da complexa união entre motor aspirado e elétrico, o Projeto Motor procurou o engenheiro brasileiro Ricardo Penteado, que trabalhou como chefe de operações de pista da Renault na F1.

Logo de cara, Penteado faz uma comparação categórica. “É como se antes [da unidade híbrida atual] tivéssemos um dragster e, agora, uma nave espacial que vai para Marte. É impressionante a diferença da complexidade do sistema”, destaca. Afinal, trata-se de uma mudança não apenas de equipamento, mas da filosofia como um todo.

“Antes tínhamos uma abordagem mais sprint, com o uso do máximo de potência, com a gasolina necessária para completar a corrida o mais rapidamente possível. Hoje, com a limitação de combustível, a engenharia é voltada a um motor mais eficiente. Tudo é muito mais conectado: hoje, quando chegamos ao circuito, já trazemos um relatório de 20 páginas”, explica.

Entendendo as partes do motor

A unidade de potência de um F1 moderno é composta por seis partes: motor de combustão interna (o V6 propriamente dito, alimentado por gasolina), ES, MGU-K, MGU-H, turbocompressor e centralina eletrônica.

Destas, destacamos as seguintes:

ES: A sigla vem de Energy Store, ou seja, é a bateria de armazenamento propriamente dita. Consegue acumular 4 MJ, o que é repassado ao MGU-K a cada volta em forma de potência.

MGU-K: Gerador que recupera a energia das freadas, como fazia o antigo KERS. Consegue retornar 120 kW ao motor, o que equivale, a 4 MJ, a 160 cv por 33s da volta. Ele pode gastar 4 MJ por volta e recuperar 2 MJ à bateria. Apenas ele e o motor a combustão “empurram” o carro.

MGU-H: Gerador que recupera a energia do calor do escapamento. Essa energia, resgatada de forma ilimitada, pode ser usada de imediato no MGU-K.

No entanto, o desafio não está só na construção da unidade, mas também em sua gestão com eficiência. Ao longo de um fim de semana, o uso do conjunto pode ser comparado a uma orquestra: há momentos em que um instrumento ganha maior destaque que os outros, mas todos tocam em conjunto, de forma ordenada, a fim de deixar a sinfonia perfeita.

Neste caso, os instrumentos são as peças da unidade de potência. Os maestros são os engenheiros, que precisam determinar como e quando  tudo deve ser utilizado. Vamos entender na prática, usando como exemplo o início da volta em Interlagos.

O uso do motor na prática

Atente-se aos comandos dos pedais. Sebastian Vettel vem de acelerador cheio na reta principal, mas alivia e freia forte pouco depois da placa dos 100 m. Ele belisca o acelerador ainda na freada do “S” do Senna, aplica mais pedal no fim da primeira perna, alivia novamente na segunda tomada e volta a acelerar fundo na saída, rumo à Curva do Sol.

Com base no que vimos nos gráficos, podemos chegar à seguinte telemetria aproximada:

Neste trecho específico é possível ver os três tipos de setor que são estabelecidos pelos engenheiros a fim de determinar o uso de cada parte da unidade de potência. Primeiro, temos o Power Limited Sector (1 e 4), onde 100% do acelerador é aplicado – o que limita o rendimento, então, é justamente a potência disponível. Depois há o Braking Sector (2), parte em que o piloto levanta totalmente o pé do acelerador durante a freada. Por fim, o Grip Limited Sector (3), onde o acelerador é aplicado até o ponto em que o carro possui aderência para não patinar e perder tração.

O grande desafio dos engenheiros é desvendar, através de simulações na fábrica, como usar todos os elementos da unidade de potência em cada parte da curva – lembre-se de que o carro precisa, ao mesmo tempo, manter ritmo minimamente competitivo, não extrapolar o limite de combustível e, portanto, ter boa gestão de energia. A configuração escolhida pode depender de diversos fatores, como o carro, pista, fase do fim de semana, pneu utilizado, condição climática, entre outros.

Assim, as equipes pré-definem diversos modos de gestão de energia que podem ser selecionados pelos pilotos durante a corrida. “No total, são 12 posições no volante para cenários diferentes. Tudo depende do que encontramos na pista”, esclarece Penteado. Vamos entrar em detalhes:

GRIP LIMITED SECTOR (GLS)

“O trabalho nos GLS é muito importante”, pontua Penteado. Isso porque o uso da unidade de potência pode variar muito neste tipo de setor, com atuação maior do motor V6, do elétrico ou uma mistura de ambos. Novamente, tudo depende de qual é a real intenção no momento específico da corrida.

Via de regra, as equipes procuram usar modos sustentáveis durante os GPs, com saldo energético neutro – ou seja, somente se gasta em uma volta aquilo que pode ser recuperado no mesmo período. Por isso, eficiência é a palavra-chave, o que requer cuidado nos estudos dos GLS.

Assim, o engenheiro brasileiro exemplifica dois cenários. No primeiro, é preciso recarregar o ES para uso posterior – como, por exemplo, na tentativa de uma ultrapassagem. “Vamos usar valores fictícios: a unidade tem capacidade de dar 550 Nm de torque. Mas na fase GLS não podemos entregar tudo isso, senão o motor pode patinar até a quarta marcha. Se o piloto quiser algo entre 0 e 100 Nm, o restante que poderia ser entregue é recuperado pelo MGU-K, que ‘freia’ o motor e carrega o ES com toda essa energia disponível. Só que, assim, gasta-se mais gasolina, então isso normalmente é feito quando há combustível sobrando”, detalha.

O MGU-K também pode ajudar no GLS se a intenção for economizar combustível. “Podemos entregar todo o torque com o MGU-K e não usar gasolina. Claro que o torque do MGU-K tem um limite, que não é tão alto quanto o do V6, mas, em compensação, o piloto tem maior precisão na dirigibilidade. No motor elétrico, ele tem à disposição exatamente a quantidade de torque que quer, enquanto que, com o V6, pode haver imprecisão. Então, se a pista estiver um pouco molhada ou for um trecho de baixo regime que exija delicadeza, podemos fazer com que o GLS seja feito com o motor elétrico – ou, pelo menos, misturar tudo, com o começo da aceleração com o MGU-K e o restante com o V6 para recuperar energia. Tudo depende da situação”, reitera.

BRAKING SECTOR (BS)

Penteado explica que o BS funciona meio que na contramão do GLS. Em vez de fornecer potência, o MGU-K desta vez atua como gerador, que recupera a energia das freadas e a armazena no ES – semelhante ao que acontecia com o antigo KERS.

Mas isso também pode variar de acordo com o momento. “Dependendo da quantidade de freio-motor que o piloto precisa, podemos escolher se recuperamos muita energia pelo MGU-K. Se ele não precisar usar o motor elétrico, podemos queimar um pouco de gasolina e recuperar ainda mais energia para usar depois”, conta o engenheiro.

O MGU-H também tem papel importante na fase final do BS. Ao término das freadas, a peça age como uma espécie de motor para manter o turbo girando em alta frequência, o que elimina o turbolag e fornece melhor dirigibilidade. O turbolag, pedra no sapato dos pilotos na primeira “Era Turbo” da F1, virou coisa do passado.

POWER LIMITED SECTOR (PLS)

Em tese, os PLS parecem ser os trechos mais simples, com a equipe fornecendo potência total à unidade a fim de ter rendimento máximo em linha reta. Mas também é preciso planejamento, pois pode ser necessário sacrificar alguns setores para priorizar outros.

“O MGU-K funciona por 33s por volta, mas o PLS dura mais que isso em quase todos os circuitos. Então, precisamos escolher quando cortar a potência máxima – normalmente usamos o MGU-K no começo das retas, devido ao arrasto aerodinâmico menor, e cortamos depois. Mas cortamos o quanto depois? E se o piloto estiver defendendo posição? O trabalho da fábrica é analisar todos esses fatores. No miolo de Interlagos, por exemplo, não tem como ultrapassar, então podemos economizar o MGU-K ali para usá-lo inteiramente na saída da Junção”, pondera Penteado.

Por isso, o uso da unidade de potência pode variar ao longo das PLS do circuito. Por exemplo, no gráfico que expusemos acima, o setor 1 poderia não contar com o uso do MGU-K, já que se trata do fim de uma longa reta – consequentemente, com muito arrasto. Já o setor 4, uma saída de curva, poderia contar com o “empurrão” do motor elétrico para ganho de performance.

Como é na classificação?

É importante ressaltar: o que muda da classificação para a corrida não é a potência do motor, e sim o seu regime. Nos GPs, o foco está voltado à sustentabilidade de energia, mas nas tomadas de tempo a abordagem é outra.

A unidade de potência trabalha em funcionamento máximo na classificação. Além de permitir que o V6 use todo seu fluxo de combustível durante a volta inteira (100 kg/h), o propulsor não precisa se preocupar em economizar ou recuperar energia.

Tudo começa ainda na volta de aquecimento, quando o carro está configurado para acumular carga na bateria – afinal, o giro cronometrado precisa ser iniciado já com 4 MJ armazenados. Durante a volta rápida em si, toda energia é transferida ao motor, sem que nada precise ser recuperado. O MGU-H possui funcionamento mais discreto, a fim de permitir que o V6 “respire” melhor. Por isso, é bem difícil ver um piloto dando duas voltas rápidas em sequência, já que toda a reserva de energia foi gasta no primeiro giro, o que deixa a bateria zerada para a segunda volta.

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