Primeiro impacto e o título que não veio: Senna no Mundial de Kart
Em várias entrevistas mesmo após seus títulos na F1, Ayrton Senna nunca escondeu sua paixão e respeito pelo kart. A categoria é o primeiro passo natural para pilotos que querem um dia correrem em carros de corrida.
E coincidência ou não, de suas várias conquistas na carreira, o Mundial de kart acabou sendo um troféu que nunca entrou na vasta galeria do brasileiro. Foram cinco tentativas no total, sendo que as últimas duas quando ele já estava competindo com sucesso nas categorias de carros como F-Ford.
Assim como quase todo piloto de alto nível, o começo desta relação remonta à infância de Senna. Ele ganhou do pai seu primeiro kart aos quatro anos de idade. Só que mesmo após muitos anos de treinos no kartódromo de Interlagos, ele só pôde começar a competir para valer quando completou 13.
Vindo de uma família abastada, o jovem tinha condições de, pelo menos duas vezes por semana, ter um motorista que o levasse de sua casa na zona norte de São Paulo até a pista de karts em Interlagos no outro extremo da cidade, na zona sul.
E por lá ele chegava a ficar entre cinco e seis horas apenas treinando, entendendo cada vez mais o funcionamento da máquina e se aperfeiçoando. É conhecida a história que ele ficava ainda mais motivado de cumprir essa rotina quando chovia, o que fez com que desenvolvesse uma técnica bastante especial para corridas com asfalto molhado.
Quando finalmente começou a correr para valer, não demorou para o jovem piloto conquistar os títulos paulista, brasileiro e sul-americano. Em 1978, poucos meses antes de completar 18 anos, com um currículo bastante premiado em pistas brasileiras, Senna partiu então para sua primeira experiência internacional para competir na Europa. Ele entrou na famosa equipe italiana DAP, dos irmãos Angelo e Achille Parrilla.
Logo nos primeiros treinos pelo time, ele chamou a atenção não só dos donos da DAP, mas da comunidade do kart europeu no geral. “Pode parecer difícil acreditar, mas o garoto era mais rápido no kart do que ele depois foi na F1”, afirmou Angelo Parrilla.
Foi neste momento em que ele também conheceu o piloto Terry Fullerton, um dos grandes talentos do kart, mas que ficou muito conhecido do público geral anos mais tarde após Senna dizer apontá-lo como melhor adversário que teve durante toda sua carreira.
Naquela época, o britânico já era bastante experiente. Com 25 anos, ele optou por não subir para as competições de carros porque o seu irmão mais velho tinha morrido em um acidente de motovelocidade. Principalmente pensando nos pais, não queria correr o risco de repetir o destino em uma era em que a morte no automobilismo era algo quase que corriqueiro.
Fullerton acabou se tornando um piloto profissional de karts, campeão mundial em 1973 e considerado um dos melhores kartistas do mundo em todos os tempos. Em uma entrevista ao site Motorsport em 2018, ele falou de sua primeira impressão quando conheceu Senna, durante os preparativos para o Mundial de Kart de 1978, apontando que o brasileiro era rápido e bastante focado.
“Ele apareceu na fábrica da DAP em 1978. Estávamos preparando o equipamento para o teste para o Mundial, provavelmente duas ou três semanas antes daquela corrida. Ele era apenas um adolescente de 17 anos. Muito magro, como se estivesse passando fome. Ele era muito intenso. Dava para ver que tinha uma intensidade nele. Ele ficou trabalhando na dele, ajudando seus mecânicos. Ele era muito focado no que ia fazer”, contou o ex-piloto.
Senna e a equipe partiram então para o Mundial que naquele ano aconteceria no kartódromo do complexo de Le Mans, na França. O brasileiro chamou muito a atenção do público e imprensa especializada pelo seu estilo sempre entrando muito forte nas curvas e deixando a traseira do kart deslizar.
Além disso, por ser canhoto, ele conseguia manter sua mão com mais força ao volante enquanto, com a direita, regulava as agulhas do carburador por mais tempo que os adversários. Isso lhe permitia buscar o tempo todo uma mistura mais rica e adequada de combustível.
Em sua primeira experiência contra competidores europeus, Senna chegou a ficar na briga pelo título, mas na corrida final da competição se envolveu em um acidente e acabou terminando em sexto, à frente de Fullerton, sétimo.
O campeão daquele ano foi o americano Lake Speed, que aos 20 anos se tornava o primeiro campeão mundial de kart não europeu da história. Ele seguiria no ano seguinte sua carreira na Nascar, onde correria até 1998.
Dois vices dolorosos de Senna
Mais experiente e adaptado ao ambiente europeu, Senna voltaria para o Mundial de kart em 1979, na edição que aconteceria no Estoril, em Portugal, em uma pista de kart improvisada que chegava a utilizar parte do circuito de corrida de carros. Talvez, esta tenha sido a participação mais dolorosa para o brasileiro por ter perdido o título por uma questão de regulamento.
Senna venceu a última das três corridas da fase final da competição e, assim, acreditava que tinha conquistado o Mundial. Quando chegou aos boxes, no entanto, foi informado que a situação não era bem assim.
O problema é que na soma dos pontos, ele terminou empatado com Peter Koene, seu companheiro de equipe na DAP. Como tinha vencido o holandês na bateria final, o brasileiro entendia que isso lhe garantia o título.
Mas justamente naquele ano tinha acontecido uma mudança de regulamento que apontava que para o caso de desempate pelo título, o resultado da semifinal definiria o campeão. A regra privilegiava Koene, que tinha terminado aquela bateria em quarto contra um oitavo de Senna. Após alguma discussão, os comissários anunciaram o resultado e o brasileiro ficou com o vice-campeonato.
“Quando ele parou o kart depois da corrida, ele achava que tinha vencido. E com o sistema de pontuação do ano anterior e do ano posterior, ele teria vencido. Mas mudaram as regras…”, contou Parrilla em 2012 com um ar de lamentação.
Em 1980, o Mundial de Kart aconteceu em Nivelles, na Bélgica, e Senna mais uma vez aparecia como um dos favoritos, principalmente por conta de seus bons desempenhos na temporada europeia, apesar da maior parte das vitórias ter ficado com Fullerton.
Naquele ano, os dois pilotos da DAP tiveram um problema na Copa dos Campeões, realizada no kartódromo de Jesolo (Itália). O britânico ultrapassou o brasileiro na última volta em uma tentativa bastante agressiva em que os dois karts chegaram a ficar apoiados em apenas duas rodas. Senna acreditava que o companheiro tinha sido desleal na manobra.
No dia seguinte, no hotel, o brasileiro mostrou a sua frustração ao empurrar Fullerton dentro da piscina. Apesar de nunca terem sido amigos próximos, a relação amigável que existia acabou ali e eles nunca mais conversaram.
“Ele não aceitava que eu o tinha vencido na última volta. Ele não podia aceitar aquilo, então, disse para todos que eu tinha batido nele na manobra, que eu tinha feito uma ultrapassagem ilegal. Eu não fiz isso, claro, estávamos correndo”, se defendeu Fullerton em uma entrevista ao jornalista britânico Mike Duff em 2011.
Nas finais do Mundial, Senna teve um acidente logo na primeira bateria quando brigava pela ponta e ficou apenas em 13º enquanto Fullerton venceu a prova. Porém, o regulamento previa descarte do pior resultado das três corridas decisivas. Assim, quando venceu a segunda prova enquanto o companheiro enfrentou um problema mecânico, o brasileiro entrou na corrida final com boas chances de título. Um segundo lugar bastaria para ele erguer a tão sonhada taça.
Correndo por fora na briga, o holandês Peter de Bruijn acabou surpreendendo os dois principais competidores. Senna não conseguiu passar da terceira posição enquanto Fullerton foi apenas o quinto.
Com dois segundos nas duas primeiras provas, De Bruijn venceu a corrida final e conquistou o título. Senna viu mais uma vez o sonho do título Mundial de Kart escapar ao terminar com o vice-campeonato atrás de Bruijn.
“O problema foi falta de sorte nestas tentativas”, disse Parrilla, na entrevista de 2012. “O primeiro acidente [em 1978] não foi culpa dele. No segundo ano [1979], tinham mudado as regras. Tudo bem. No terceiro ano [1980], outro acidente que também não foi culpa dele. O garoto poderia ter vencido três campeonatos mundiais”, continuou.
As últimas participações já como estrela
Em 1981, Senna seguiu em frente com sua carreira nos carros e se transferiu para a F-Ford 1.600 pela tradicional equipe Van Diemen. Mesmo assim, as derrotas nos Mundiais de Kart claramente ainda tinham deixado algo em aberto para o brasileiro.
Senna aceitou o convite para retornar à competição nos anos de 1981, em Parma (Itália), e 82, em Kalmar (Suécia). A preparação menos focada somada a temporadas em que a DAP-Parrilla também não teve o melhor dos equipamentos (ambos foram conquistados por pilotos da Birel), acabou o deixando em posição desfavorável em relação aos principais adversários.
Em Parma, Senna ainda chegou a incomodar os principais nomes da época e terminou com o quarto lugar no geral (o melhor entre os DAP-Parrilla). Naquele mesmo ano, ele ainda venceria o seu quarto campeonato brasileiro de kart enquanto fazia sua transição definitiva para os carros. No ano seguinte, em sua última participação já como um piloto de monopostos, ele precisou se contentar com um apagado 14º.
Senna estrearia na F1 em 1984, após três temporadas muito vitoriosas em categorias de base britânicas, somando os títulos da F-Ford 1.600 de 81, F-Ford 2.000 e Europeu de F-Ford de 82, e da F-3 Britânica e do GP de Macau de F3 de 83.
De qualquer maneira, a ligação com o kart nunca foi totalmente cortada. Senna fez várias participações em eventos especiais como na inauguração de sua própria pista no interior de São Paulo e a famosa corrida de kart com pilotos de F1 realizada em Bercy, na França, em 1993, que marcou seu último confronto com Alain Prost.
E até mesmo em seus últimos dias de vida, o kart parece que voltou a sua mente. Angelo Parrilla afirmou em 2012 que o brasileiro chegou a conversar com ele em 1994, durante o final de semana do GP de San Marino, dizendo que pensava em abandonar a F1 e queria unir forças com o italiano para fabricar karts no Brasil.
“Ele me ligou na sexta-feira de Imola [dois dias antes de seu acidente]”, contou Parrilla. “Eu perguntei o que aconteceu e ele disse ‘eu quero parar. O carro não está bom. Essa equipe britânica [Williams] é louca. Eu quero parar’. E aí perguntei o que ele queria fazer da vida dele. ‘Vou começar a produzir karts no Brasil. Você pode me ajudar?’. Posso, claro, respondi. ‘Ok, vou tomar uma decisão e nos encontramos em Milão’. Mas ele tomou a decisão errada, continuou lá e morreu”, lamentou o italiano, que seguiu amigo de Senna por toda sua carreira.
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