
Como a McLaren repetiu feito em Le Mans de seu fundador, Bruce
Em 1995, a McLaren já era uma das equipes mais importantes da história da F1. Na época, somava sete títulos mundiais de construtores, nove de pilotos e 104 vitórias, sendo sete no GP de Mônaco.
Além disso, o time tinha uma bela história na Indy, com 18 triunfos na categoria com chassis de fabricação própria, incluindo dois nas 500 Milhas de Indianápolis. A marca entrou para a história ao ter construindo carros que seriam eternamente lembrados pelos fãs do campeonato americano, como Os M16 e o M24. Já contamos em detalhes essa história aqui no Projeto Motor.
Mas faltava uma coisa. A última joia da chamada tríplice coroa do automobilismo: as 24 Horas de Le Mans. E curiosamente, esse feito era algo que o seu fundador, Bruce McLaren, tinha conquistado em sua história como piloto, em 1966, três anos após ter iniciado a operação da equipe que leva seu sobrenome.
Só que na época, Bruce corria como um piloto contratado pela Ford e venceu ao lado de seu compatriota neozelandês Chis Amon. Aquela era a primeira da sequência de quatro vitórias do icônico modelo Ford GT 40. Também já contamos essa história em detalhes aqui no Projeto Motor, incluindo suas polêmicas.
O momento da McLaren no começo dos anos 90, no entanto, era muito diferente. Bruce McLaren morreu em 1970 em um acidente enquanto testava um protótipo que ele estava desenvolvendo para a Can-Am (categoria norte-americana). Seu sócio na época, o empresário americano Teddy Mayer, vendeu sua participação no começo dos anos 80 para Ron Dennis e o empresário franco-saudita Mansour Ojjeh.
O foco desde então era todo na F1. E as vitórias estavam vindo com títulos em 1984, 85 e 86 um domínio total entre 1988 e 91, fase que ficou marcada pela parceria com a Honda, a produção de carros incríveis como o MP4-4 e a rivalidade explosiva entre seus pilotos, Ayrton Senna e Alain Prost.
E desde 88, o time tinha entre seus engenheiros o projetista Gordon Murray, que trazia um histórico de sucessos e projetos ousados com a Brabham. Ele já entrava nos capítulos finais de sua carreira de dia a dia na F1, mas ainda contribuiu de forma direta para a sequência de títulos naqueles anos.
Mas Murray queria aproveitar o momento da empresa para mais. E convenceu os proprietários Dennis e Ojjeh a abrirem uma divisão de carros de rua para o lançamento de seu projeto pessoal. Um carro que entraria para a história e imaginário dos entusiastas que foi batizado de McLaren F1.
O McLaren F1 e a semente inesperada para Le Mans
A ideia do McLaren F1 nunca foi de um GT para corridas, mas de ser o melhor esportivo possível que pudesse circular legalmente pelas ruas. E a empresa correu atrás desse objetivo.
Para se ter ideia, o McLaren F1 foi o primeiro carro de rua com monocoque em fibra de carbono. Ele foi projetado com três lugares para que o motorista pudesse ficar numa posição central, buscando a experiência de um piloto de F1.
Murray chegou a visitar o centro de desenvolvimento da Honda em companhia de Ayrton Senna. Na época, além da marca japonesa fornecer seus motores para a equipe de F1 da McLaren, o piloto brasileiro também tinha participado do desenvolvimento do NSX, esportivo de rua da Honda.
Anos mais tarde, Gordon escreveria o artigo “O carro que guardo no meu coração” sobre o NSX. Nele, ele explicou que depois de testar vários superesportivos, o modelo da Honda foi o único que tinha o estilo e a dirigibilidade que ele queria para o seu McLaren de rua.
“Quando pilotei o ‘compacto’ NSX, todos as outras referências – Ferrari, Porsche, Lamborghini – que eu havia usado no desenvolvimento do meu carro desapareceram da minha mente. É claro que o carro que criaríamos, o McLaren F1, precisava ser mais rápido que o NSX, mas a qualidade ao andar nele e a dirigibilidade do NSX se tornariam nosso novo objetivo”, afirmou.
Gordon tentou convencer os japoneses a desenvolverem um motor para seu carro, mas não teve sucesso. Assim, a McLaren fechou uma parceria técnica com a BMW, que fabricou um V12 de 6,1 litros especialmente para o projeto.
O lançamento do McLaren F1 aconteceu em 1992 e o carro foi um sucesso de crítica. Muitas publicações importantes da época, como AutoCar e Top Gear, consideraram o modelo como um dos melhores esportivos já produzidos na história.
Só que mesmo com todo o entusiasmo do setor, as vendas do modelo não decolaram como se esperava. Ainda mais para o caso de uma fabricação quase artesanal como era feita no caso do McLaren F1 e com altos custos de produção para uma marca com pouca estrutura, isso dificultava um pouco a vida do marketing.
Só que então veio uma pressão que a McLaren e Murray não estavam esperando. O carro era tão bom, que alguns dos clientes que o compraram começaram a demandar uma versão de corridas. A fabricante se viu então em uma situação em que caso não começasse a adaptar seu modelo, algum terceiro o faria por conta própria.
Foi assim que nasceu então uma segunda fase inesperada do projeto: o McLaren F1 GTR, a versão de pista do original. O carro de rua criado por Murray já era tão avançado e refinado, que não foram necessárias muitas mudanças. As maiores preocupações acabaram sendo adaptações aos regulamentos de segurança da FIA para GTs e retirada de equipamentos e funções puramente de conforto.
As regras seguidas foram para a Global GT Series, uma semente do futuro Mundial FIA GT. O projeto era totalmente voltado para equipes e genteman drivers clientes, com um suporte técnico da McLaren, mas sem criação de um time de corridas da marca específico.
A estreia aconteceu na temporada de 1995 e terminaria com o título para um dos times com o modelo da McLaren, vencendo seis das sete provas do campeonato contra outros modelos preparados para o regulamento GT1 da FIA como Bugatti EB 110, Venturi 600 LM, Porsche 911, Toyota Supra GT-LM, Ferrari F40, entre outros.
A empolgação fez com que os clientes pedissem mais. Eles queriam correr nas 24 Horas de Le Mans, onde o regulamento GT1 também era aceito naquela temporada. Mas para isso, o carro precisaria de um pouco mais de desenvolvimento.
“Dissemos que se tivéssemos que fabricar um kit [específico para Le Mans] e testá-lo, os clientes teriam que investir o dinheiro, pois aquilo não estava na nossa programação”, disse Jeff Hazell, chefe de competições da McLaren da época, em uma entrevista à revista britânica Motorsport, em 2023. “Eles colocaram o dinheiro até o teste e a única pista que conseguimos foi Magny-Cours”, continuou.
E assim começou uma aventura que provavelmente nem os mais otimistas representantes da marca de Woking poderiam imaginar aonde poderia chegar.
O incrível triunfo em Le Mans
A ideia original da McLaren sempre foi de vender os GTRs para equipes clientes. Seis chassis estavam sendo preparados para a prova. Só que em uma trajetória já cheia de surpresas do projeto, mais uma novidade forçaria o time a rever seus planos.
Uma clínica japonesa chamada Ueno entrou em contato querendo patrocinar um dos GTRs em Le Mans. Só que nenhum dos times que estavam no programa aceitaram a parceria por já estarem comprometidos com outras empresas.
Vendo a possibilidade de aumentar a visibilidade de seu modelo para o mercado asiático, a McLaren resolveu atender ao novo patrocinador a preparar um sétimo carro que ela mesmo inscreveria em Le Mans com um time de fábrica.
Sem nenhuma experiência nas 24 Horas de Le Mans, Ron Dennis manteve Jeff Hazell como supervisor geral da empreitada, mas contratou a equipe de um antigo amigo, Paul Lanzante, para fazer a operação da pista.
O problema é que a Lanzante Motorsport era mais ligada a corridas de carros históricos e estava competindo havia pouco tempo em provas com GT3, o que era visto por Hazell como um problema.
O dirigente então pediu a Ron Dennis pelo menos poder indicar o piloto principal do time, o que foi aceito pelo proprietário da McLaren. E ele mirou alto ao escolher Yannick Dalmas, que tinha duas vitórias em Sarthe, incluindo a do ano anterior.
“Eu disse [a Dennis] que queria Yannick Dalmas como capitão porque ele sabia exatamente o que queria. Não éramos muito experientes e precisávamos de alguém que pudesse nos dizer exatamente como as coisas precisavam ser. Ele disse ‘está bem, vamos contratá-lo”, explicou o então diretor de competições da McLaren.
O patrocinador japonês pediu para que um dos pilotos do time fosse Masanori Sekiya, piloto do país que tinha uma grande experiência em carros GT e com oito participações em Le Mans, incluindo por times de fábrica da Toyota. O currículo passava boa segurança e nunca foi visto como um problema.
O terceiro piloto do carro foi escolhido por Ron Dennis: o ex-F1 JJ Lehto. O finlandês não era exatamente a escolha que mais agradava a Hazell por conta de seu histórico de acidentes, porém, o próprio dirigente admitiu que o trio acabaria formando um bom encaixe com habilidades complementares.
O McLaren F1 GTR se enquadrava no regulamento LMGT1, uma classe secundária com modelos GTs. A ideia era manter o bom momento da Global GT Series para se consolidar como o principal carro do tipo no mundo, o que também serviria como um ótimo marketing para alavancar vendas do modelo de rua.
E a briga seria dura contra outras marcas importantes que iam a Le Mans com operações de fábrica como a Nissan com seu Nismo Skyline GT-R, Toyota com o modelo Supra GT, Honda com o NSX GT1, Ferrari e sua F40 GTE, Porsche e seu 911 e por aí vai.
A expectativa para a vitória na classificação geral, no entanto, era de ficar com com um dos modelos WSC, protótipos fabricados para a pista de forma pura como os Courage, Kremer e até mesmo a Ferrari 333 SP, projeto da marca italiana em parceria com a Dallara comissionado pela Momo (fabricante de assessórios automotivos) e que competia mais nos EUA. O carro marcava um retorno de um protótipo Ferrari a Le Mans depois de 23 anos.

Quando a corrida começou, porém, o duro desafio de Le Mans começou abrir possibilidades para surpresas. Uma forte chuva caiu logo ao final da primeira hora e não foi embora. Durante a noite, Lehto mostrou um talento particular na pista molhada, impondo um ritmo bastante forte com a McLaren de fábrica.
“Pedimos para ele ir mais devagar. Mas ele disse ‘já estou indo devagar, estou me divertindo’”, comentou Hazell em uma reportagem do site da McLaren em 2015. “Ele patinava as rodas na reta mudando as marchas e ficava de lado ao estilo rali nas chicanes. Eu não achava que precisávamos ir tão rápido para vencer, mas claramente seria um forte candidato”, continuou.
Vários dos protótipos da classe principal apresentaram problemas de confiabilidade, não conseguiram acompanhar o ritmo na chuva ou se envolveram em acidentes.
A chuva parou apenas ao amanhecer de domingo, e com os problemas dos concorrentes da classe principal, a McLaren do time de fábrica da Lanzante Motorsports estava na liderança.
O protótipo Courage oficial da classe WSC, que tinha entre seus pilotos o campeão da F1 Mario Andretti, vinha numa perseguição em segundo, mas não parecia que teria tempo o suficiente para descontar a desvantagem.
O foco do time ficou em evitar problemas, principalmente na embreagem, o calcanhar de Aquiles do modelo para uma prova de longa duração. E deu certo. Em sua estreia em Le Mans, a McLaren conquistou uma inesperada vitória com seu trio oficial, formado por Yannick Dalmas, Masanori Sekiya e JJ Lehto.
Para melhorar a situação da marca, três carros de equipes clientes terminaram na terceira, quarta e quinta posições da classificação geral, à frente de outros protótipos da categoria principal. E todos satisfeitos com o resultado do time oficial pela valorização financeira de seus veículos de corrida.
Nada poderia ser maior para o projeto do McLaren F1 entrar para a história dos modelos GT e como um dos melhores carros esportivos já produzidos.
Além disso, o triunfo completava a tríplice coroa para a marca, com vitórias de seus carros no GP de Mônaco, 500 Milhas de Indianápolis e nas 24 Horas de Le Mans. McLaren e Mercedes são as únicas montadoras a terem chassis que triunfaram nas três provas na história.
“Vencer em Le Mans é mais difícil que vencer um campeonato da F1. É o esforço de uma temporada inteira de corridas sem parar. E não foi apenas que vencemos, foi a maneira como vencemos: na estreia, com um carro de produção GT contra protótipos. Foi muito especial. Tenho orgulho disso. Eu era contra, mas sou agradecido pelo F1 ter corrido”, disse Murray ao site da McLaren.
O McLaren F1 GTR voltou a Le Mans e teve bons desempenhos, mas não conseguiu repetir a vitória na geral contra os protótipos, ainda mais com a chegada de uma equipe de fábrica da Porsche na classe principal.
Mesmo assim, terminou com quarto, quinto e sexto na geral em 1996, e segundo e terceiro em 97 (primeiro e segundo na classe GT). O carro ainda voltou a conquistar o título da Global GT Series em 96. A partir de 1998, Le Mans não aceitou mais modelos GT1 e o McLaren GTR deixou de ser elegível para competir na prova.
Em abril de 2025, a McLaren anunciou que voltará à prova francesa com uma operação de fábrica na atual classe principal, a Hipercarros. O retorno está programado para acontecer em 2027.
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