Michael Schumacher, com sua Ferrari de 2001
(Ferrari)

Schumacher, o malabarista dos pedais | Desvendando o estilo dos gênios #2

No segundo artigo de nossa série sobre o estilo de pilotagem dos grandes nomes da história da F1, detalharemos a tocada de Michael Schumacher, a maior figura do livro de recordes da categoria. Entre 1991 e 2012, o alemão atingiu números que pareciam inalcançáveis, como seus sete títulos mundiais, 91 vitórias e 155 pódios.

Vinte e um anos separaram a primeira largada de Schumacher na F1 à sua última vez no pódio. Naturalmente, os carros mudaram drasticamente neste período: os mais exagerados diriam que comparar o Jordan 191 ao Mercedes W03 seria como colocar lado a lado um telefone de disco e um iPhone 6s.

Mais do que velocidade natural, o alemão mostrou enorme capacidade em se adaptar às mudanças do certame. Neste texto, mostraremos como que Schumi fez seu estilo de pilotagem se encaixar feito luva às regras da F1 no momento em que ele despontou.

Bom de braço ou de pés?

Se você conferiu a primeira parte deste especial, já viu que Ayrton Senna fazia diferença em sua pilotagem com o uso diferenciado do freio-motor. O tricampeão brasileiro costumava brecar de forma breve, mas reduzia a velocidade do carro em menores distâncias por descer as marchas de maneira precisa e rápida na alavanca de câmbio.

Com a era do câmbio semiautomático, a partir do início dos anos 1990, isso acabou. O ato de reduzir marchas estava literalmente na ponta dos dedos, e não no braço, o que possibilitou que todos diminuíssem a velocidade com recursos equivalentes. No entanto, os grandes pilotos sempre encontram meios de fazer a diferença nos mínimos detalhes que possuem à disposição.

Schumacher e Barrichello tinham estilos bastante diferentes
Schumacher e Barrichello tinham estilos bastante diferentes (Ferrari)

O câmbio semiautomático eliminou não só a alavanca de câmbio, mas também o pedal da embreagem. A frição também passaria a ser acionada no volante, embora utilizada somente nas largadas e pitstops. Para alguns, a extinção do terceiro pedal pouco mudou na forma de conduzir o carro. Por exemplo, Rubens Barrichello, um dos nomes da nova safra nesta fase de transição, continuou freando com o pé direito até o fim de seus dias na F1.

Schumacher não. Diante de seus dois pedais no carro, o alemão incorporou o espírito do kart: acelerava com o pé direito, freava com o esquerdo. Isso permitia não só maior agilidade na transição acelerador-freio, mas também possibilitava o uso dos dois pedais de forma simultânea, o que se mostrou a grande marca registrada de sua carreira.

Nos mais diversos tipos de curva, Schumacher carregava velocidade ao máximo ao frear e acelerar ao mesmo tempo. No auge do alemão na Ferrari, a revista inglesa “F1 Racing” teve acesso a dados de telemetria que comparavam os comandos utilizados pelo heptacampeão, um freador de pé esquerdo, e de Barrichello, que freava com o pé direito. Reproduzimos abaixo:

1 – Silverstone, Inglaterra

Nas curvas de alta, Schumacher aliviava o pé do acelerador e, ao mesmo tempo, freava parcialmente. Já Barrichello ficava “ou lá ou cá”, pois usava o mesmo pé para acelerar e frear. Como resultado, o alemão foi 20 km/h mais veloz na Copse, e 25 km/h mais rápido no complexo Maggotts/Becketts.

2 – Montreal, Canadá

Até mesmo em uma curva tão fechada Schumacher conseguia manter o pé no acelerador durante a frenagem, enquanto que Barrichello, por aliviar o acelerador, precisa pisar no breque por menos tempo. Contudo, somente na aproximação da curva o alemão conseguia ser 15 km/h mais veloz que o brasileiro.

3 – Suzuka, Japão

Aqui se vê um malabarismo puro com os pedais. Schumacher freia de maneira mais gradativa na entrada da curva, e, como sempre, sem tirar totalmente o pé do acelerador. Na saída, ele “inverte” ao aumentar a pressão no acelerador e aliviar o breque. Barrichello mais uma vez fica alternando os comandos durante a trajetória, o que lhe faz ser 25 km/h mais lento na entrada da curva – ou, em cronômetro, 0s3 de atraso.

Busca instintiva pela aderência

“Ah, mas é muito fácil conduzir no limite naquela Ferrari quase perfeita”. Verdade. Porém, saiba que, na fase inicial de sua carreira, Schumacher teve em mãos carros de difícil comportamento, os quais somente ele próprio conseguia domar. Foi o que relatou Gerhard Berger após guiar pela primeira vez a Benetton de 1995, carro em que Schumacher conquistou seu segundo título mundial:

Quando passava em alta velocidade sobre alguma deformação da pista, o carro entrava em “estol”, como um avião que perde subitamente a sustentação aerodinâmica. Se ele pegasse uma ondulação em uma curva de alta velocidade, “chicoteava” subitamente com a traseira. […] E Michael Schumacher possuía um certo sexto sentido que criou um reflexo para a situação: ele contra-esterçava automaticamente pouco antes de pegar uma ondulação – o processo de correção estava programado em seu cérebro. Foi assim que eliminei minhas últimas reservas contra o talento de Schumacher. Qualquer um que conseguisse atingir um controle tão magistral de seu carro, mesmo em situações-limite, era de absoluta primeira classe.

Com o uso magistral de seus dois pedais, mais a busca pela melhor trajetória ao volante, Schumacher encontrava, de maneira quase que inexplicável, um nível extra de aderência. Não à toa, o alemão anulava completamente seus companheiros de time.

A tocada de Schumacher seguia alguns mandamentos básicos. Afeito a carros traseiros, o alemão manipulava o balanço ao longo da trajetória como poucos conseguiam. Normalmente, o bólido entrava nas curvas com a traseira escorregando, mas, no meio da tomada, seu equilíbrio era neutralizado. Assim, Schumacher conseguia aproveitar o máximo de velocidade na entrada das curvas sem comprometer o desempenho na saída.

Sua tocada era vista por seus engenheiros como excessivamente agressiva, o que resultava em um consumo maior de pneus e combustível. Porém, Schumacher sabia exatamente como extrair o máximo dos recursos que tinha à disposição, seja ao inovar com um carro de três velocímetros, seja ao encaixar feito luva no regulamento da época.

Moldado para a F1 dos anos 90

Schumacher se tornou protagonista num momento de transição para a F1, quando os carros não precisavam mais ser poupados e podiam ser abusados do início ao fim dos GPs. Em conversa com este escritor em 2012, o ex-companheiro de Benetton Martin Brundle destacou a diferença entre o jovem queixudo e os veteranos da época:

“Ele chegou à F1 e a mudou, já que ele guiava em todas as curvas, em toda a volta e em todo GP em velocidade máxima. Nós, os outros pilotos, não conseguíamos fazer isso. Vínhamos de uma época onde a prioridade era manter o carro inteiro, confiável. Ele chegou à F1 na época certa”

Se Schumacher devorava pneus e combustível com mais rapidez que seus oponentes, isso foi minimizado com a introdução do reabastecimento, em 1994. Desta forma, era possível dividir um GP em duas ou três “minicorridas”: acelerava firme do início ao fim de cada stint, trocava pneus, reabastecia e começava tudo de novo. Ninguém de sua geração conseguia acompanhá-lo.

Em seu retorno à F1, Schumi não teve sucesso como nos velhos tempos. Já quarentão, sua busca pelo limite estava comprometida, além de uma difícil adequação ao regulamento que eliminava reabastecimento e impunha pneus altamente desgastantes. Mesmo assim, seu legado já estava feito. Em sua carreira, o alemão comprovou uma tendência que se mostra verdadeira não só na F1, mas em qualquer esporte: para se destacar, o competidor precisa se adequar como poucos às condições disponíveis e estabelecer novos parâmetros.

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