Thomas Danielsson: o piloto que só enxergava em 2D e até testou na F1
Um sonho infante, herdado do pai, de e seguir os passos de nomes como Niki Lauda e Ronnie Peterson no automobilismo. Uma família de classe média alta, mas não rica, que com certa dificuldade deu o suporte necessário para o ínicio de carreira. Então, veio o sucesso no kart, o relativo destaque na base, a falta de apoio e resultados consistentes para dar aquele último passo rumo à F1. Esta foi, em um resumo insípido e incolor, a trajetória do sueco Thomas Danielsson ao longo dos anos 1980.
É uma história que à primeira vista é muito semelhente com a de outras centenas, talvez milhares de outros garotos não só de sua época, que tinham os mesmo objetivo dentro do esporte a motor, mas que ficaram pelo caminho na busca pelo objetivo maior.
Só que o nórdico, nascido na cidade de Kungsbacka, não era um menino como os outros. Sim, ele tinha dois braços, duas pernas e uma cabeça. Tudo lhe parecia dentro dos padrões. Mas havia um detalhe, um singelo e quase imperceptível detalhe, que seria decisivo em sua carreira e o marcaria pelo resto da vida.
Danielsson sofria de uma condição conhecida em inglês como stereoblindness, que em português pode ser traduzida como “cegueira estéreo”. Trata-se da ausência da capacidade de enxergar em três dimensões através da estereopsia, ou seja, quando o cérebro funde as imagens de nossos dois olhos em um único ponto de vista.
Falta a Thomas a mesma noção de profundidade dos objetos de uma pessoa com visão dita comum. Mas ele demorou a descobrir isso. É como um daltônico, que só descobrirá sua condição quando constatar que não enxerga diferenças de cores que outros veem e mencionam. No caso dele, foi preciso bater à porta de entrada da F1 para que terceiros percebessem a limitação.
A boa ascensão de Danielsson na base
Até chegar a esse ponto, Danielsson teve um início de carreira muito promissor, obrigado. Com ajuda dos pais, que se mudaram da pacata vila de Näset para Gotemburgo, uma cidade maior e mais bem estruturada na Suécia, a fim de prover um melhor suporte para o filho em sua escalada automobilística, Thomas começou no kart, como manda a cartilha de todo “novo-melhor-piloto-do-mundo”.
Em quatro anos, tornou-se campeão sueco da modalidade e terceiro colocado no campeonato mundial. Nada mau. Inclusive, em seu primeiro ano de kartismo, chegou a dividir pista com um tal de Ayrton Senna, quatro anos mais velho.
Após quatro temporadas no kart, aos 21, veio a hora de tentar as categorias de base nos monopostos. Na Fórmula 3 sueca, em 85, o jovem sobrou: quatro pole positions, três vitórias e duas voltas mais rápidas em seis etapas, sempre a bordo de um chassi Reynard 853 com motor 2.0 L4 fornecido pela Saab (!).
Após essa conquista, mais um segundo lugar na Copa Europeia de F3 daquele ano, uma única prova disputada no circuito francês de Paul Ricard, Danielsson obteve destaque continental e conquistou uma vaga para disputar a F3 Italiana no ano seguinte, com um chassi Dallara chancelado pela Alfa Romeo na equipe Euroracing.
Só que o sucesso lhe havia subido à cabeça e, diante do pacote limitado, que não lhe permitia lutar por vitórias e muito menos título, Thomas simplesmente mandou a equipe às favas após a quinta etapa do ano, afirmando que “não estava correndo para terminar em sétimo”. Ah, a impetuosidade da juventude…
Ele ainda conseguiria fazer algumas pontas na F3 Britânica e no campeonato japonês de esporte-protótipo naquele mesmo ano, até achar um rumo mais certeiro para a carreira em 87. Naquele ano, com o patrocínio da petrolífera Q8, Danielsson enfim se estabeleceu como titular da Madgwick Motorsport na badalada F3 Britânica.
E fez uma boa campanha: quatro poles, três vitórias, seis pódios e três voltas mais rápidas em 17 etapas, o que lhe rendeu 56 pontos e o quarto lugar em um certame que teve Johnny Herbert como campeão. Bertrand Gachot e Martin Donnelly foram o segundo e o terceiro colocados, respectivamente. Logo atrás de Danielsson na tabela ficou o futuro campeão de F1 Damon Hill. Ou seja, nosso anti-herói estava rodeado de nomes que alcançariam o pináculo do esporte a motor mundial.
O pesadelo no “time dos sonhos” da F3000
Tudo parecia muito bem encaminhado. Para o ano seguinte, Thomas assegurou um contrato com a Eddie Jordan Racing para correr na F3000 Internacional, logo na esquadra com apoio oficial da Reynard, fornecedora de chassis. Teria como companheiro de equipe ninguém menos que Herbert, naquele que era considerado o “time dos sonhos” da estação.
Ambos competiriam com o Reynard 88D empurrado pelo motor Cosworth DFV V8 de 3 litros. Aquele mesmo, que durante anos reinou na F1. Mas foi naquele momento que as coisas começaram a degringolar. Enquanto Herbert vencia a prova de abertura, em Jerez, e brigava sempre no pelotão da frente, Danielsson se destacava de um jeito ruim, pelos constantes acidentes. Faltava-lhe notória consistência para guiar um monoposto maior e mais potente.
E é aí que nossa história passa a ficar realmente interessante. Porque os grandes responsáveis pela descoberta de que Thomas Danielsson não enxergava em 3D, o que consequentemente lhe custou a licença de piloto por quase um ano, foram sua escuderia e seu companheiro de equipe.
Deu-se da seguinte forma: Johnny Herbert havia sido vetado pelo médico oficial da então FISA, Sid Watkins, de correr a rodada de Pau, a terceira do calendário, devido a uma concussão sofrida duas semanas antes, em Vallelunga, após uma batida provocada por Gregor Foitek (sempre ele!). Veja o acidente no vídeo logo abaixo.
Sem poder ir para a pista, o inglês passou o fim de semana na garagem, acompanhando tudo de fora, e achou muito estranho o comportamento de Danielsson com o carro. Ele relatou à equipe que Thomas tomava traçados não habituais e perdia os pontos de frenagem o tempo inteiro.
Munidos dessa informação, os diretores da Jordan, que já não estavam lá muito satisfeitos com os serviços de seu segundo piloto, reportaram o caso aos organizadores da categoria, que também não vinham enxergando as inúmeras trapalhadas do sueco com bons olhos. Eddie Jordan teria solicitado pessoalmente, vejam só, um exame psicotécnico para aferir se Danielsson tinha condições físicas de pilotar.
Sid Watkins, o delegado médico da FISA, fez uma bateria de testes com o jovem e chegou ao diagnóstico revelador: Thomas Danielsson não possuía a noção de profundidade de uma pessoa comum. Ele enxergava em apenas duas dimensões.
Consta que o sueco, frustrado com a descoberta, chegou a desabafar com amigos que “enxergava como nos videogames”. Lembrando que os jogos virtuais da época eram de aparelhos como Atari e Mega Drive, abissalmente longe do realismo dos atuais simuladores.
Licença revogada
Devido a essa condição, sua licença de pilotagem foi revogada e ele teve de brigar para reconquistá-la. Entrou na Justiça e buscou mais uma série de baterias de exames e laudos que provassem que, apesar dos pesares, sua condição não o impedia de correr nem oferecia riscos a outras pessoas. Sua “carteira” de piloto só seria recuperada no princípio de 89.
Em recente entrevista a um jornal sueco, Danielsson minimizou o problema e afirmou que Eddie Jordan usou politicamente sua condição física para forçar a suspensão. “Eu não tenho uma visão estéreo convencional”, admitiu. “É algo que raramente me atrapalhava, mas [Eddie] achou uma boa ideia apontar aquilo”, seguiu. “Fiquei parado por um ano e tive que fazer uma porção de testes, mas consegui minha licença de volta”, completou.
Thomas nunca afirmou publicamente, mas diz-se à boca miúda que o empenho da Jordan em provar sua limitação física e, assim, obter a suspensão de sua licença, foi uma forma de rescindir o contrato sem perder o patrocínio da Q8, empresa que estava atrelada a Danielsson. Para seu lugar foi chamado o compatriota de Herbert, Martin Donnelly.
O retorno triunfal de Danielsson
A licença foi recuperada às vésperas do início da temporada de 89, mas Danielsson já não tinha mais o apoio financeiro d’outrora. Conseguiu, graças ao amigo Robert Synge, dono da Madgwick – a mesma escuderia que ele havia representado na F3 –, um assento na pequenina operação que correria com um chassi Reynard 89D de segunda mão e motores Cosworth inferiores aos Mugen usados pelas esquadras mais abastadas daquela grelha.
E não é que Thomas voltou em grande estilo? No circuito de Silverstone, sem ter participado da pré-temporada e com um pacote limitado, obteve um triunfo brilhante. Consta que boa parte do padoque se comoveu com o resultado. Uma das poucas exceções teria sido o impassível Eddie Jordan.
O nórdico ainda obteria outro pódio naquele ano, ironicamente na etapa de Pau, após segurar JJ Lehto por várias voltas até confirmar o terceiro lugar. Entretanto, o dinheiro escasso minou a evolução do carro, enquanto o próprio Danielsson seguiu aprontando casos como este aqui, demonstrando que constância não era mesmo o seu forte:
A dupla chance de testar um F1
Ainda assim, estava com a reputação em alta e recebeu o convite para testar pela Rial, minúscula equipe alemã que competiu na F1 por apenas dois anos. A primeira experiência ocorreu ainda em 6 de julho de 1989, no mítico circuito de Hockenheim.
Tudo bem que que seria conduzindo o fraquíssimo chassi ARC 02, um dos piores do campeonato. Tudo bem que seria em uma versão mais curta do traçado. Tudo bem que o carro estava com ajustes de banco e pedais adaptados ao primeiro piloto da operação, Christian Danner, um alemão bem mais alto que ele. Não dava para ter tudo na vida…
Além de tudo isso, um vazamento no sistema de refrigeração atrapalhou boa parte das atividades e, para piorar, a sessão ocorreu junto de uma bateria de testes da Mercedes-Benz com modelos de rua. “Fomos instruídos a não ultrapassar nenhum daqueles carros, exceto nas retas, e havia muitos deles”, reclamou o sueco em entrevista logo após a experiência.
No fim, após rodar apenas nos 45 minutos finais de um total de 3 horas a que o time tinha direito, completando 20 voltas, Danielsson foi 1s4 mais lento que Danner: virou 56s, contra 54s6 do titular. “Agora posso dizer que pilotei um F1. Já é um começo. Não foi espetacular, devido às circunstâncias, mas logo terei outra chance”, declarou, otimista.
A outra chance, de fato, veio. Em 20 de julho do mesmo ano, ele voltou a Hockenheim para andar com o mesmo ARC 02, desta vez só entre os Fórmula 1. E entre nomes como Senna, Alain Prost, Nelson Piquet e Nigel Mansell, visto que praticamente todas as escuderias da categoria participaram. Ah, e na versão completa do traçado, incluindo suas longas retas e desafiadoras chicanes.
Danielsson terminou com o pior tempo do dia, 1min53s00, porém a apenas dois centésimos do outro titular da Rial, o também germânico Wolker Weidler, que virou 1min52s98 e foi o penúltimo. Consta, inclusive, que Weidler demorou vários giros até conseguir bater o tempo do novato.
O mais veloz da sessão foi Ayrton Senna, a bordo do ilustre McLaren MP4-5 Honda, com a marca de 1min43s36, quase 10 segundos mais rápido. Ainda assim, Danielsson demonstrou contentamento: “Acho que [o teste] foi muito bom. Levando em conta minha falta de experiência com o carro e com a pista, fiquei muito satisfeito”, contou.
Havia o prognóstico de novos testes, que nunca se concretizaram. Anos depois, Thomas afirmou ter chegado a negociar com algumas equipes pequenas o acesso à categoria principal do esporte a motor, mas que “não tinha os 20 ou 30 milhões de coroas [suecas em patrocínio] que me pediam”.
Guinada ao Oriente e volta para casa
Sem ter mais o que fazer no Velho Continente, Thomas Danielsson se mudou para o Japão, onde correu na F3000 local entre 1990 e 95, com apenas uma vitória registrada, em 93. Também participou esporadicamente de competições japonesas de turismo e protótipo, e chegou a tentar a sorte nas 24 Horas de Le Mans de 91, tudo com resultados muito discretos.
Depois, casou-se com uma chinesa e voltou ao seu país natal, onde passou a trabalhar com imóveis. Hoje, já perto dos 60, está aposentado. Enfim, o menino sueco que se enxergava como uma estrela do automobilismo mundial encerrou a carreira até com boas conquistas e recordações. Para quem só enxerga em 2D, alcançou até mais do que nossos olhos poderiam crer.
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