Carros de F1 sofreram com aderência em Istambul em 2020
(Foto: Clive Mason/Getty Images/ Red Bull Content)

O asfalto das pistas da F1 e o que deu errado em corridas recentes

Com o passar das décadas, a F1 começou a ficar cada vez mais exigente com a qualidade do asfalto de suas pistas. Ficou claro para dirigentes e engenheiros que para ter carros cada vez mais especiais, é preciso um pavimento especial.

Para muitos de fora da F1, os requisitos ficaram até exagerados. E as novas gerações de pilotos e engenheiros passaram a se incomodar com qualquer tipo de ondulação ou qualquer tipo de nível de aderência abaixo do habitual em um circuito do Mundial.

Em 2020, por conta da pandemia, diversas corridas precisaram ser desmarcadas e a F1 precisou utilizar circuitos em que nunca tinha corrido ou que há anos não visitava. E pelo fato de o tempo para as remarcações ter sido bastante escasso, a preparação de organização talvez não tenha sido a melhor.

Portimão e Istambul, por exemplo, foram incluídos de última hora no calendário de 2020. E, além da novidade das pistas em si, acabaram colocando mais um ingrediente meio maluco na visita da F1 aos circuitos: uma total falta de aderência. Na pista turca o problema foi ainda mais grave, com os carros escorregando tanto no seco quanto no molhado.

O problema dos dois autódromos teve a mesma origem: um recapeamento feito poucas semanas antes das provas. Quando a F1 chegou tanto a Portimão quanto Istambul, o asfalto ainda tinha uma camada de óleo em sua superfície por conta do novo pavimento. A alegação é que ambos os autódromos precisaram correr para se adequarem, já que não tinham até o começo da pandemia a previsão de receberem o Mundial. Porém, a falta de tempo não necessariamente deveria ter sido um problema.

Em conversa com o Projeto Motor sobre a questão, Luis Ernesto Morales, engenheiro chefe do GP do Brasil e membro da Comissão de Circuitos da FIA, explicou que em Interlagos já foi utilizado um procedimento de limpeza da superfície do asfalto que libera o circuito em até 15 dias, com o nível de aderência mais próximo do exigido pela F1.

“Para eliminar esse óleo que fica nessa superfície, a gente usa [em Interlagos] um equipamento utilizado em aeroporto. Ele joga água em alta pressão e elimina esse óleo da pista. É uma técnica de execução para acelerar esse desgaste”, explicou o engenheiro.

O processo foi desenvolvido pela própria equipe técnica do GP do Brasil após pesquisas pelo mundo e não necessariamente é utilizado em outros circuitos. Ele foi visto no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, onde é utilizado para tirar a borracha acumulada na pista no local onde os aviões pousam, e adaptado para a realidade de uma pista de corrida.

O objetivo principal foi de acelerar a liberação do circuito para uso. Caso contrário, segundo Luis Ernesto Morales, é preciso se esperar normalmente entre 30 e 45 dias para oxidação natural que elimina o óleo da superfície. “O pessoal tem falado de tempo para cura. Não é isso. É outra coisa. É atingir o grip [aderência] pela eliminação desse óleo que fica por cima”, pontuou.

Trabalho de recapeamento da pista de Istambul para receber a F1 em 2020
Trabalho de recapeamento da pista de Istambul para receber a F1 em 2020 (Facebook/Istambul Park)

O recapeamento tanto de Portimão quanto de Istambul foi completado poucas semanas antes dos GPs de Portugal e da Turquia e as pistas não passaram por nenhum procedimento de limpeza e o tempo para oxidação natural pelo tempo não foi o necessário. Para se ter ideia, o trabalho de colocação do novo pavimento de Portimão terminou menos de 30 dias antes da etapa, enquanto de Istambul Park, duas semanas. Daí, os problemas para os pilotos.

Como funciona o recapeamento de uma pista de F1

Antes é preciso entender que assim como quase tudo na F1, tanto o material utilizado na superfície dos traçados quanto a técnica de recapeamento dos circuitos que são utilizados por categorias de alto nível são relativamente bem diferentes do que temos nas ruas. Por outro lado, até neste quesito, o automobilismo também é utilizado como laboratório para a melhoria do que temos no nosso dia a dia.

Em 2000, Interlagos recebeu pela primeira vez um tipo de asfalto chamado SMA (Stone-Matrix Asphalt, ou Matriz Pétrea Asfáltica, na tradução adotada pela academia no Brasil). Nesta mistura, os itens principais são agregados mais graúdos de pedras e a massa asfáltica serve para preencher o espaço entre elas. Nas ruas brasileiras, a combinação é ao contrário, com o asfalto como ingrediente principal e as pedras misturadas no meio para engrossar e dar corpo.

As vantagens do SMA são sua durabilidade e principalmente o fato dele ficar mais liso e com menos ondulações. Além disso, ele sofre menos deformação com o tempo e também gera maior aderência com a banda de rodagem do pneu. Por outro lado, ele é consideravelmente mais caro.

O contato das pedras com a massa asfáltica do SMA gera uma reação química e que acaba soltando óleo na superfície após os primeiros dias de sua implantação. Por isso, ao se utilizar esse tipo de pavimento é importante dar o tempo necessário para oxidação por vias naturais ou limpeza, assim como feito em Interlagos, para acelerar o processo.

Interlagos passou a receber o asfalto SMA em 2000 e desenvolveu técnica para retirada de óleo nos recapeamentos de 2007 e 14 (Foto: Duda Bairros/Vicar)

Este tipo de asfalto já é utilizado desde os anos 60 na Alemanha em grandes rodovias e depois de sua instalação em Interlagos, passou a ser estudado e usado por algumas concessionárias de rodovias paulistas e algumas federais. Inclusive ele já está presente, segundo Morales, na Imigrantes e na Bandeirantes, além de nos últimos anos ter sido utilizado pela prefeitura de São Paulo em algumas avenidas de maior movimento, como na Bandeirantes, na zona sul da cidade.

A forma como o produto é instalado também é bem diferente. Nas ruas e estradas, o serviço é feito por faixas paralelas, já que é a forma normalmente como os carros transitam, com poucas mudanças de direção, e ainda assim em velocidades baixas ou até 120 km/h (máximo permitido pelo código de trânsito brasileiro). Nas pistas, os carros até possuem um traçado “comum”, porém, eles não necessariamente seguem uma linha natural que poderia ser delimitada por uma faixa. Os pilotos transitam por toda a pista.

Além disso, é preciso se levar em conta as curvas em que eles cruzam toda largura da pista e em alta velocidade. Por isso, as máquinas trabalham de uma forma para a superfície não ter emendas, o que causaria ondulações. “Na pista, como você tem essa transição o tempo todo, existe um plano de execução para que essas faixas terminem fora da linha de corrida para que não tenha bump na freada ou no traçado. Isso exige um plano de execução mais cauteloso e um tempo maior também”, aponta Morales. “O asfalto tem que ter uma característica homogênea em todo circuito. Se não for assim, as categorias mais competitivas vão sentir a diferença no asfalto. Não só a F1, mas a Stock Car já sentiria também”, continua.

Com óleo na pista por conta do recapeamento recente, pilotos da F1 sofreram para ficar no traçado em Istambul
Com óleo na pista por conta do recapeamento recente, pilotos da F1 sofreram para ficar no traçado em Istambul (Foto: LAT/Mercedes)

Segundo o engenheiro, a questão das ondulações não é apenas uma questão de conforto para os pilotos. Especialmente na F1, os carros dependem bastante de sua pressão aerodinâmica para fazerem as curvas nas velocidades em que chegam e boa parte disso é conseguida pelo trabalho do assoalho. Os engenheiros projetam a peça para que o ar que passa por baixo dos modelos ganhe velocidade em relação ao que passa por cima e assim crie uma zona de baixa pressão que mantém o carro estável e “grudado” ao chão. Uma ondulação na superfície do asfalto muda essa corrente e pode fazer o piloto perder o controle.

E isso tudo precisa ser feito durante um tempo com temperaturas mais amenas e em hipótese nenhuma pode ser realizado com chuva. Por isso, o período normalmente escolhido para o trabalho em Interlagos, por exemplo, é entre maio e setembro, que pega tanto o inverno como a época de seca em São Paulo.

Desta forma, o processo completo de recapeamento de uma pista como do Autódromo José Carlos Pace, segundo Morales, dura cerca de 60 dias. Destes, os primeiros 30 servem basicamente para planejamento, alocação dos agregados para fabricação do asfalto SMA e inspeção das máquinas (se elas quebrarem e pararem em um lugar fora do planejado, podem gerar emendas na superfície). O serviço de colocação do pavimento em si dura mais 30 dias.  E finalmente, ao término de tudo isso, existe o trabalho de limpeza pelo processo explicado acima.

Neste século, Interlagos passou por recapeamentos a cada sete anos: 2000, 2007 e 2014. Morales explicou ao Projeto Motor que seguindo o projeto, em 2021 será necessário um novo estudo, que pode apontar para a necessidade de um novo serviço. “Vai ser feita uma avaliação do estado do asfalto, o desgaste, se tem algum ponto crítico, e aí será tomada a decisão”, disse.

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