Hora da verdade: analisamos qual a era mais equilibrada da história da F1
Quantas vezes o douto leitor não ouviu/leu um comentário nostálgico sobre o quanto a F1 do passado era mais emocionante e equilibrada do que a atual? Provavelmente muitas. Quem acompanha o Projeto Motor desde o nosso nascimento, em 2015, sabe que sempre contestamos esse discurso. Agora chegou o momento de irmos um pouco além. Resolvemos realizar um extenso levantamento estatístico para apontar, com números, qual o período mais discrepante e o mais equilibrado entre os carros da categoria. O resultado vai surpreender os defensores da teoria de que o “passado era muito melhor”.
É óbvio que qualquer estudo precisa seguir métodos. O deste artigo, por exemplo, tem como base as diferenças de desempenho entre todos os bólidos da categoria em provas classificatórias, quando se extrai o máximo de rendimento. Portanto, nosso objetivo aqui é observar a evolução de equilíbrio do grid como um todo, e não a distância da melhor escuderia de cada temporada ante a segunda melhor. Para isso seria necessária uma nova análise (quem sabe num futuro próximo…). Dito isto, hora de explicar os critérios utilizados:
1) Para deixar a análise mais precisa, apontamos as diferenças absolutas (em segundos) e percentuais (que levam em conta a relação com o tempo de volta do pole, deixando a auferição mais precisa em relação, por exemplo, à extenção do traçado).
2) Foram utilizados resultados das classificações de todas as etapas de todas as temporadas desde os GPs da Grã-Bretanha de 1950 até o do Japão de 2017. Com esses dados criamos uma média de diferença temporal por ano (absoluta e percentual), que são as informações presentes em nossos dois gráficos. Só não entraram na pesquisa as edições das 500 Milhas de Indianápolis que fizeram parte do Mundial.
3) Não foram contabilizados resultados de sessões pré-classificatórias.
4) Registros de tempo excessivamente discrepantes, auferidos claramente sem que o competidor estivesse andando próximo ao limite do carro, foram excluídos a fim de reduzir o chamado desvio padrão. Exemplo: no GP de Mônaco de 1958, Bernie Ecclestone (ele mesmo!) anotou absurdos 6min05s em sua tomada de tempo, enquanto o segundo mais lento da grelha, Horace Gould, fez 1min54s e o volante mais rápido, Tony Brooks, rodou em 1min39s8. Por essa razão, a diferença considerada foi aquela entre Brooks e Gould.
DAS DIFERENÇAS ABSOLUTAS
Observe o gráfico abaixo, que mostra a diferença média (em segundos) do primeiro ao último colocado nas classificações de cada temporada. Para tornar a experiência mais interativa, basta passar o mouse ou o dedo pelos pontos a fim de obter informações detalhadas sobre cada uma das 68 estações já realizadas pela série (sendo que a de 2017 ainda está em andamento, com análise realizada até o GP do Japão, conforme já informado).
Observando as linhas de cada decênio é possível afirmar, tranquilamente, que o discurso de que a F1 do passado era mais equilibrada é completamente falso. Pelo contrário: está bastante nítido o quanto os monopostos se tornaram cada vez mais parelhos ao longo dos anos. Atenção: reiteramos que não está em discussão aqui o domínio de uma ou duas escuderias sobre as demais, mas sim a disparidade média de ritmo entre todos os carros que compunham/compõem o grid. Abaixo faremos uma análise, decênio a decênio, de como se deu a evolução.
Anos 1950
1950 – 38s25
1951 – 51s212
1952 – 32s357
1953 – 53s9
1954 – 31s7875
1955 – 24s316
1956 – 61s971
1957 – 46s4
1958 – 34s704
1959 – 17s6
A F1 iniciou sua vida como uma categoria extremamente desigual. O douto leitor poderá observar na lista acima o quanto eram díspares os desempenhos dos carros de topo para os que fechavam o pelotão, independentemente do regulamento técnico (que foi profundamente modificado à época). Por que isso acontecia? Há vários fatores. Primeiro, o campeonato ainda possuía ares amadores, permitindo a entrada de aventureiros sem a menor condição de competir. Estamos falando tanto daqueles que disputavam GPs com equipamentos velhos e defasados comprados de escuderias oficiais quanto os que tentavam fazer as vezes de construtores com projetos totalmente fora dos padrões.
Além disso, os circuitos possuíam extensão média muito maior do que os atuais, por vezes passando dos 20 quilômetros. E aí você sabe: quanto maior a pista, maior será a diferença de tempo absoluta do primeiro ao último colocado. Não era incomum que esse intervalo extrapolasse a casa de um minuto. Entretanto, no fim daquele decênio uma singela modificação no conceito dos carros permitiu que o funil se apertasse sensivelmente: a adoção de chassis com motor central-traseiro, muito mais estáveis. Observe como a estatística sofre uma queda brusca de 34s7 para 17s6 de 58 para 59. Impressionante, não?
Anos 1960
1960 – 20s398
1961 – 27s325
1962 – 35s25
1963 – 32s06
1964 – 22s825
1965 – 13s804
1966 – 25s82
1967 – 16s15
1968 – 22s333
1969 – 16s813
Em um dos períodos mais difíceis de sua história, a F1 se viu praticamente abandonada pelas montadoras (exceção à Ferrari), tendo de se apegar com força aos garagistas (principalmente britânicos). Isso, aliado aos pouco potentes propulsores aspirados de 1,5 litro, significou uma redução significativa nas diferenças entre líderes e retardatários, embora a distância ainda fosse demasiadamente alta para os padrões recentes. Tanto que em 1965 foi possível, pela primeira vez, completar uma campanha inteira com os carros nivelados a uma diferença média de menos de 15 segundos por volta.
Ocorre que a categoria mantinha a cultura das participações privadas e da comercialização de veículos (já dotados do conceito monobloco) antigos e defasados, o que inibia o afunilamento dessa distância. Para piorar, dois fatores interromperam bruscamente o processo em 1966: a adoção de usinas maiores e mais fortes, de 3,5 litros (conforme constataremos mais adiante, quanto mais relevante é o motor para o desempenho, maior será a disparidade entre os carros); o GP da Alemanha daquele ano, cujo grid reuniu tanto carros de F1 quanto de F2, estratégia que visou a mascarar o esvaziamento dos dois certames. Com isso, o tempo do último colocado na grelha ficou 75 segundos acima do pole, comprometendo o resultado final da temporada (aqui temos um exemplo de desvio padrão que não pôde ser descartado).
Anos 1970
1970 – 8s113
1971 – 18s603
1972 – 10s891
1973 – 9s35
1974 – 12s156
1975 – 11s851
1976 – 13s012
1977 – 7s153
1978 – 5s869
1979 – 8s918
A F1 dos anos 1970 enfim alcançou um padrão de equilíbrio mais próximo àquilo que vemos hoje nas pistas. Pode-se afirmar que a grande responsável por esse incrível salto de qualidade foi a Cosworth. Apesar de o regulamento do campeonato ainda permitir a presença de aventureiros independentes, o caminho para um padrão mínimo de competitividade estava mais simples: bastava adquirir uma unidade DFV V8, uma caixa de câmbio Hewland e um chassi que não fosse tão defasado assim. O resultado: em 1970 a média de diferença entre os carros nas provas classificatórias ficou, pela primeira vez na história, abaixo de 10 segundos.
No fim dessa década, a saída de Nürburgring Nordschleife do calendário e a padronização dos circuitos às faixas de 4 a 5 km de extensão acelerou ainda mais o processo, assim como a ainda tímida adoção de sistemas de pré-classificações em determinados páreos. Para melhorar, ao incorporar o efeito solo a Lotus, sem querer, promoveu um fortalecimento da aerodinâmica como elemento decisivo para o desempenho. A partir dali, qualquer projetista poderia replicar o conceito em seu chassi sem gastar muito. Por isso é possível afirmar que a fase dos carros-asa foi a mais parelha já vivida pela F1 naqueles 30 anos de existência. O ápice foi a campanha de 1982, em que 11 diferentes ases venceram as 16 rodadas disputadas, sendo que nenhum anotou mais do que dois triunfos.
Anos 1980
1980 – 7s878
1981 – 8s133
1982 – 7s497
1983 – 8s694
1984 – 9s87
1985 – 11s929
1986 – 11s05
1987 – 13s341
1988 – 7s476
1989 – 7s238
Contudo, os graves acidentes gerados pelos carros-asa e o consequente banimento da tecnologia aceleraram o surgimento de outra fase: a era turbo. Com ela, o público passou a presenciar um distanciamento entre equipes de ponta e nanicas, especialmente a partir de 1985, quando os propulsores turbocomprimidos mais potentes superaram tranquilamente a casa de 1.000 cv na configuração de volta lançada. A disparidade de desempenho entre os vários fornecedores da época era atroz, especialmente no comparativo com as usinas naturalmente aspiradas. É por isso que em 1986 não havia bólidos que não fossem turbocomprimidos na grelha.
De nada adiantou. Em 87, com o retorno dos motores naturalmente aspirados na pouco conhecida Copa Jim Clark, a F1 regrediu a um estágio em que os bólidos mais lentos viravam cerca de 13 segundos por passagem acima dos mais velozes. Isso em circuitos que raramente passavam de 5 km. Percebendo tal tendência de desequilíbrio extremo, a Fisa (antigo braço desportivo da FIA) anunciou já em 86 o banimento dos motores turbo a partir de 1989, incluindo uma redução gradativa de pressão das turbinas e consumo de combustível para 88. Como consequência, apesar de a McLaren ter protagonizado a campanha mais dominadora de um time em toda a história do Mundial naquele ano, a distância geral entre o pelotão retornou a um patamar mais aceitável: 7s5 por giro, em média.
Vale mencionar que também ao final desse decênio a entidade máxima do automobilismo começou a tomar medidas esportivas que visavam a garantir um padrão mínimo de competitividade entre participantes não só das corridas como das provas classificatórias. Um exemplo foi a instauração definitiva da pré-classificação. Sem ela teríamos que colocar em nossa conta resultados de participantes ainda menos competitivos, o que jogaria as médias finais das estações de 88 e 89 um pouco mais para cima.
Anos 19901990 – 6s286
1991 – 6s828
1992 – 8s606
1993 – 6s84
1994 – 8s356
1995 – 9s475
1996 – 6s47
1997 – 4s557
1998 – 5s235
1999 – 4s613
A primeira metade dos anos 90 foi o momento em que o novo presidente da FIA, Max Mosley, iniciou uma verdadeira caça aos aventureiros que ingressavam na F1 sem o mínimo de capacidade para tal. Com suas medidas um tanto “higienistas”, caso da cobrança de taxas de inscrição para lá de proibitivas e da regra dos 107%, mais o aumento considerável dos custos da categoria, Mosley rapidamente minou as esquadras nanicas. O grande problema é que o tiro saiu pela culatra e mesmo operações já consolidadas no certame, tipo Arrows e Minardi, acabaram afetadas. Foi graças à ação de Mosley (sob a forte tutela de Bernie Ecclestone) que a F1 se tornou uma competição praticamente anti-garagista.
Outro ponto a se observar é a confusão técnica proporcionada pelos esforços em se aprimorar a segurança (fruto da morte de Ayrton Senna), logo depois de frear o avanço da eletrônica (92 e 93). Os competidores tiveram de lidar com novas dimensões, novos parâmetros aerodinâmicos e de aderência mecânica e, claro, motores menores (de 3,5 para 3 litros). Tudo isso agitou a competição (afetando em especial os times mais fracos, obviamente) e só a partir de 1996 foi possível retomar o processo de afunilamento de desempenho. Um grande marco veio em 1997: pela primeira vez em quase meio século de F1 todos os carros se tornaram capazes de andar, em média, separados por menos de cinco segundos ao fechamento de cada volta.
Anos 2000
2000 – 3s941
2001 – 5s133
2002 – 4s959
2003 – 6s369
2004 – 6s222
2005 – 8s693
2006 – 5s263
2007 – 3s536
2008 – 2s633
2009 – 1s803
A fase de equilíbrio seguiu constante até 2005 (com uma pequena variação para cima entre 2003 e 2005, fase em que a FIA instituiu um sistema de classificação por volta única e com tanque cheio, o que contribuiu para um espaçamento dos tempos) e se reforçou no ano seguinte, com a troca dos propulsores V10 pelos V8 aspirados de 2,4 litros. Nesse momento as montadoras (Ferrari, Renault, Mercedes, BMW, Honda e Toyota) tomavam conta do campeonato e a aerodinâmica voltara a ter papel preponderante na concepção dos chassis, o que gerou um cenário paradoxal: se por um lado os carros estavam todos virando dentro de um intervalo extremamente competitivo de tempos, por outro os grids estavam vazios e havia críticas enormes quanto à dinâmica das corridas e às dificuldades para se ultrapassar.
Aqui vale uma menção honrosa a 2009: com média de apenas 1s8 separando o primeiro e o último colocados nas classificações, a temporada que coroou Jenson Button pode ser considerada a mais parelha já vista na F1. Por quê? Porque foi um campeonato que promoveu a estreia de um novo regulamento técnico, criando novos parâmetros aerodimâmicos e permitindo o uso opcional de propulsão híbrida (Kers), o que embaralhou o pelotão. Além disso, a Brawn GP, escuderia que iniciou o Mundial à frente, não teve fôlego (ou melhor, dinheiro) para se manter no topo, fato que compassou ainda mais as forças no decorrer do certame.
Anos 2010
2010 – 7s092
2011 – 5s572
2012 – 5s142
2013 – 3s858
2014 – 4s525
2015 – 5s222
2016 – 3s776
2017 – 3s137
Na tentativa de preencher novamente o campeonato com um número decente de participantes, a FIA autorizou o ingresso de três novatas para a temporada de 2010: Lotus/Caterham, Virgin/Marussia/Manor e Hispania/HRT. Pode parecer besteira, mas a verdade é que nenhuma delas entrou em condições de competir no nível das demais, e isso se refletiu diretamente nas médias apresentadas pelas temporadas de 2010 a 12.
Aliás, é preciso parabenizar o esforço de Caterham e Marussia ao observar que a diferença delas para os times de ponta caiu ano a ano até o louvável patamar de menos de 4 segundos em 2013. Isso prova o quanto a F1 é cruel: ambas conseguiram se aproximar das demais mesmo com orçamento muito menor, mas ainda assim tiveram que aguentar uma enxurrada de críticas e saíram com uma mão na frente e outra atrás, sem atrair investidores que custeassem a brincadeira.
A instituição da era turbo híbrida, em 2014, colocou os motores de volta ao posto de “carro-chefe” do desempenho e desequilibrou novamente as coisas, embora de maneira mais sutil do que a primeira era turbo. De lá para cá temos visto um novo e progressivo processo de nivelamento dos carros a cada temporada, que felizmente não foi interrompido pelas drásticas alterações em dimensões, aerodinâmica e aderência mecânica aplicadas em 2017. O atual cenário deve seguir até 2020, quando a F1 adotará um novo regulamento de motores. A ver se o próximo movimento gerará mais equilíbrio ou desequilíbrio para a série.
DAS DIFERENÇAS PERCENTUAIS
Para dirimir algumas distorções, segue abaixo um gráfico das diferenças percentuais por temporada (usando como base sempre os tempos registrados pelo pole position nas tomadas classificatórias). Aqui dá para ver com mais clareza o quanto a extensão dos traçados impactava nas discrepâncias de tempos. Numa análise mais pragmática, verifica-se que a tão cultuada era turbo promoveu um regresso do equilíbrio de forças aos patamares dos anos 60. E que a segunda metade dos anos 2000 foi mesmo a fase mais afunilada de todas.
CONCLUSÃO
A primeira reflexão a que se chega é que, diferentemente do que os mais nostálgicos propagam, a tendência da F1 ao longo de sua história sempre foi se tornar mais profissional e competitiva, e não o contrário. E o fim da década de 2000 representa o suprassumo dessa tendência até o momento. Isso significa que a categoria está mais emocionante e legal? Não necessariamente. Os carros do fundo da grelha conseguem acompanhar os líderes de maneira muito mais próxima (para não dizer digna) do que antigamente, isso é irrefutável, mas em nenhum momento isso se converteu em maior diversidade de vencedores, tampouco na percepção por parte dos fãs de que as corridas estão mais equilibradas (mesmo que estejam).
Sendo assim, o que fazer? Há muitos caminhos. Primeiro, é preciso realizar uma ampla mudança nos métodos de distribuição de receitas e controle de custos, a fim de “popular” a grelha com um número maior de equipes capazes de disputar em um nível condizente com o atual padrão do esporte. Segundo, intensificar o trabalho que já vem sendo feito de reconstrução da imagem da categoria, mostrando que a F1 jamais deixou de ter o nível de competitividade de outrora (conforme mostram os números aqui colocados, o nível na verdade só tem crescido).
Afinal, de nada adianta atingirmos novamente os padrões de 2008 e 2009 se o número de competidores for acanhado, as equipes estiverem em dificuldades financeiras e os pilotos não conseguirem ultrapassar (ou sequer acompanhar de perto) uns aos outros. Desde que o grupo Liberty assumiu o comando da F1 a impressão é que o principal campeonato do automobilismo mundial parou de patinar e está voltando à rota certa. Todavia, tal percurso precisa ser encarado como uma evolução constante e natural rumo a um futuro sustentável, e não uma tentativa desesperada de regresso a um nostálgico passado que nunca existiu.
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