(Foto: Simon Galloway / LAT / Pirelli)

Erros, pressão e regras: entenda o relatório da FIA sobre Abu Dhabi 2021

Durante o final de semana de abertura da temporada de 2022, a FIA emitiu seu esperado relatório com as conclusões da investigação sobre a controversa decisão do título de 2021, em Abu Dhabi, entre Max Verstappen e Lewis Hamilton. Junto do documento, ainda foi publicada a posição do Conselho Mundial da FIA em que se admite de forma clara que aconteceu um erro na condução da situação e interpretação das regras.

A polêmica central se deu pelo procedimento seguido pelo então diretor de provas, Michael Masi, na utilização do safety car nas últimas cinco voltas da prova. A Mercedes reclamou da forma como ele permitiu apenas alguns retardatários (os que estavam entre o líder Lewis Hamilton e o segundo colocado Max Verstappen) descontarem a volta no penúltimo giro da prova, e ainda deu a relargada ao final da mesma volta.

A comissão formada pela entidade fez uma linha do tempo de cada fato desde do instante do acidente de Nicholas Latifi, na volta 53 de um total de 58, até a decisão da Mercedes decidir desistir de seu protesto, três dias depois.

O relatório de sete páginas é descritivo, aponta os motivos principais que causaram a confusão, e ainda faz recomendações de melhorias. A maioria delas, inclusive, foi adotada para a temporada de 2022, antes mesmo da publicação do relatório, como já explicamos aqui no Projeto Motor.

Comissão aponta diretor de provas sobrecarregado e pressionado

No primeiro capítulo do documento, a comissão fez apenas uma descrição, com horário exato, sobre cada acontecimento durante as cinco voltas finais do GP de Abu Dhabi de 2021 e depois dos protestos da Mercedes até a desistência da equipe alemã de seguir com seu direito de apelar das decisões.

O segundo capítulo é o que começa apontar conclusões sobre a confusão. Este foi dividido em quatro partes. As duas primeiras focam basicamente na situação em que se encontrava o diretor de provas, Michael Masi, aparentando até iniciar como uma justificativa para possíveis erros, apontados em seguida.

Para começar, a comissão da FIA aponta que o diretor de provas já vinha atuando de forma sobrecarregada nos últimos anos. E faz um histórico para justificar essa posição.

“De 1994 a 2019, o papel de diretor de provas era desempenhado por Charlie Whiting. Além da posição de diretor de provas, o Sr Whiting simultaneamente tinha a posição de delegado de segurança da FIA, responsável permanente pelas largadas, e diretor esportivo de monopostos. Após a morte do Sr Whiting em março de 2019, Michael Masi foi nomeado como novo diretor de provas. O Sr Masi já era antes vice-diretor de provas da F1, F2 e F3 desde 2018. O Sr Masi também assumiu os cargos do Sr Whiting de delegado de segurança (desde 2021) e diretor esportivo de monopostos.”

No item seguinte do relatório, a Comissão então sugere que “algumas das responsabilidades dos diretores de provas deveriam ser divididas e atribuídas a outras pessoas para reduzir a carga de trabalho dos diretores de provas e permitir que eles possam focar em suas funções chave, incluindo administração e controle da corrida.”

Essa parte do documento parece uma abertura para as seguintes, em que começa a ficar evidente a opinião que Masi cometeu erros importantes na condução do GP de Abu Dhabi. Intitulada “Comunicações de rádio entre equipes da F1 e o diretor de provas”, a parte dois aponta a pressão pela qual o australiano foi colocado naquele momento, principalmente por parte da equipe Red Bull.

De cara, a comissão pontua que essa troca de mensagens é problemática e atrapalha o trabalho do diretor de provas. O relatório publica então a transcrição desta conversa entre Masi, o chefe da Red Bull, Christian Horer, e o gerente da equipe, Jonathan Wheatley. Essa comunicação aconteceu durante a volta 56, antepenúltima da corrida, logo após o envio da mensagem que explicava que os retardatários não poderiam ultrapassar os líderes e o safety car.

Horner: Christian para Michael.
Masi: Sim, diga Christian.
Horner: Por que não vamos tirar esses retardatários do caminho?
Masi: Me dê… Por que Christian… Me dê só um segundo… Ok, meu principal, mais importante é conseguir limpar esse incidente.
Horner: Você só precisa de uma volta de corrida.
Masi: Sim.
Wheatley: Obviamente esses retardatários, você não precisa deixá-los ir… imediatamente dar a volta e alcançar o pelotão atrás.
Masi: Entendido.
Wheatley: Você precisa deixá-los ir.
Masi: Entendido. Me dê apenas um segundo.
Wheatley: … e então teremos uma corrida de carros na nossas mãos.
Masi: Entendido.”

Na volta 57, o diretor de provas muda a orientação e pede para que os retardatários descontem sua volta de atraso ultrapassando o líder e o safety car, porém, apenas os que estavam entre Hamilton e Verstappen: Norris, Alonso, Ocon, Leclerc e Vettel. É a vez do chefe da Mercedes, Toto Wolff, reclamar pelo rádio.

Wolff: Michael.. Michael, isso é certo. Michael, isso não é certo. Isso não é certo.
[instantes depois]
Wolff: Ele [Verstappen] ultrapassou sob o safety car.”

A comissão concluiu que essa comunicação não ajudou em nada na situação e ainda colocou uma pressão extra no diretor de provas enquanto ele estava fazendo decisões importantes e que precisavam ser tomadas rapidamente.

“O diretor de prova precisa administrar os carros na pista, a intervenção do safety car e o que acontece na cena do incidente, o que é um número considerável de tarefas para serem cumpridas em um tempo mínimo para permitir que a corrida seja reiniciada de forma segura assim que possível, enquanto ao mesmo tempo responde as demandas dos chefes de equipe. Isso requer concentração.”

Desta forma, a comissão sugere, de forma unânime entre seus integrantes, que as comunicações entre equipes e o diretor de provas sejam restringidas.

Os problemas durante o safety car

A parte três deste capítulo, “Procedimento de desconto de volta no safety car”, talvez seja o mais sensível de todo o relatório, pois trata justamente das reclamações da Mercedes e onde poderiam estar os erros de Masi. Segundo a comissão, boa parte do problema estaria na redação do regulamento dos então artigos 48.12 (sobre o procedimento dos retardatários descontarem a volta atrás do safety car) e 48.13 (de relargada).

Uso do safety car na decisão de 2021 gerou polêmica
Hamilton atrás do safety car nas últimas voltas do GP de Abu Dhabi de 2021 (Foto: Pirelli)

O problema no primeiro é a palavra “qualquer” quando determinava que os retardatários poderiam descontar a volta. O que abriria brechas para a interpretação de que “qualquer” pode significar qualquer carro que o diretor de prova achar necessário ou todos os carros que estão com voltas atrás do líder, no sentido de qualquer carro que estiver na posição de retardatário.

No segundo, o regulamento dizia que quando o último retardatário ultrapassar o líder da prova para descontar sua volta, o safety car pode retornar ao pit na volta seguinte. Isso não foi seguido por Masi, que deu a relargada no final da mesma volta. A comissão aponta que em seguida, o regulamento diria que a pista poderia ser liberada quando o diretor de prova achar seguro, o que jogaria um artigo contra o outro.

A comissão apontou que Masi provavelmente tomou a decisão de antecipar a retirada do safety car por conta da discussão de alguns meses em que as equipes da F1 disseram preferir terminar as corridas sob bandeira verde, “mas que a segurança deveria sempre vir antes”. Assim, “se por questões de segurança não for possível retirar o safety car, as equipes da F1 confirmaram que aceitariam terminar a corrida sob condição de safety car”, explica o relatório. Seria o caso de Abu Dhabi, já que a pista só foi totalmente limpa na penúltima volta, quando finalmente abriu a chance dos retardatários descontarem suas voltas.

Diante dessas colocações, a comissão sugeriu que a identificação dos retardatários que precisarão descontar as voltas durante o safety car deve deixar de ser manual e passar a ser controlada por um programa de forma automática.

E ainda insiste que, apesar de erros que foram encontrados, “os resultados do GP de Abu Dhabi de 2021 e do Campeonato Mundial de F1 da FIA são válidos, finais e não podem ser alterados. De acordo com as regras, a Mercedes fez um protesto aos comissários depois da corrida, buscando uma mudança na classificação da corrida. Os comissários rejeitaram o protesto e a Mercedes então teve a oportunidade de apelar da decisão para a Corte Internacional de Apelação da FIA, mas não o fez. Não existe nenhum outro mecanismo válido nas regras para alterar a classificação da corrida.”

Estrutura administrativa da FIA e recomendações

Para encerrar o capítulo de análise, a comissão indicou a necessidade de melhorias na equipe de assistência ao diretor de provas e da melhor comunicação durante os GPs entre a equipe da FIA que fica em pista e no escritório da entidade em Genebra, e entre os departamentos técnico e esportivo.

O relatório termina então com o capítulo quatro em que são feitas as principais recomendações para mudanças de regras e procedimentos da FIA. Todas elas já tinham sido tornadas públicas pelo novo presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem, que também se comprometeu a adotá-las.

– A Sala de Controle Virtual de Corrida, algo parecido com o VAR do futebol, ficará no escritório central da FIA e conectada em tempo real com diretor de provas durante as corridas, o assistindo na aplicação do regulamento desportivo usando tecnologia de imagem e programação.

– A comunicação direta entre equipes e diretor de provas deve ser abolida e trocada por um sistema menos invasivo para o diretor de provas, apenas para responder perguntas.

– Revisão dos procedimentos de retardatários durante o safety car. A palavra “qualquer” já trocada no regulamento por “todos os retardatários devem descontar suas voltas”. Além disso, o processo de relargada também foi ajustado para deixar claro que o safety car retorna aos boxes na passagem seguinte a que os retardatários receberem a autorização para descontarem suas voltas, sem a possibilidade disso acontecer no mesmo giro.

– A troca da equipe de administração de corrida, com a saída de Michael Masi e a nomeação do alemão Niels Wittich, ex-diretor de provas do DTM, e o português Eduardo Freitas, ex-WEC, que vão se revezar e serem assistidos por Herbie Blash, ex-braço direito de Charlie Whiting, que será um consultor sênior.

Após relatório, FIA admitiu erros em Abu Dhabi

No mesmo dia em que o documento foi tornado público, a FIA também publicou em seu site as decisões e posições gerais do seu Conselho Mundial. Neste documento, a entidade acabou tomando uma posição menos política, admitindo que aconteceram erros nos procedimentos durante o safety car no final do GP de Abu Dhabi.

Entre os vários pontos de uma lista que resume o relatório da comissão, o Conselho Mundial aponta que “(…) o diretor de provas agiu de boa fé e dentro do melhor de seu conhecimento dadas as circunstâncias difíceis, particularmente reconhecendo as significativas restrições de tempo para as decisões serem tomadas e a imensa pressão aplicada pelas equipes.”

Em outro ponto, deixa mais claro o problema na questão da escolha dos carros que poderiam descontar a volta durante o safety car:

“O processo de identificação dos retardatários tem sido até hoje manual e um erro humano levou ao fato de que nem todos os carros recebessem a permissão de descontarem a volta. Dado ao fato que intervenções manuais normalmente aumentam o risco de erro humano, um programa desenvolvido vai, daqui por diante, automatizar a comunicação da lista de carros que devem descontar a volta. Além disso, o regulamento esportivo de 2022 da F1 foi recentemente atualizado para clarificar que “todos” e não “qualquer” carro(s) deve ter permissão descontar sua volta.”

A FIA assim toma uma posição que pode ser considerada histórica ao admitir que um erro de procedimento de sua equipe de administração de corridas interferiu diretamente na decisão do título de um campeonato da F1. A categoria e todos que a acompanham debateram de forma exaustiva nos últimos meses a questão. Nas últimas semanas, se discutiu se já era hora virar a página e seguir em frente. Com a publicação do relatório, é difícil saber se todos os envolvidos conseguirão fazer isso tão rápido e quais as cicatrizes ficarão abertas e por quanto tempo.

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