Conceito garrafa de Coca-Cola mudou o desenho dos carros de F1

Garrafa de Coca-Cola: o conceito pós carro asa que segue na F1 até hoje

John Barnard é famoso por duas intervenções fundamentais na F1: a fibra de carbono como principal matéria-prima para a confecção dos carros; e, alguns anos depois, a transmissão automatizada. Estas foram revoluções escondidas sob a carenagem. Curiosamente, sua contribuição mais óbvia e visível para a categoria é também a menos lembrada: a abordagem aerodinâmica encontrada para driblar o fim dos carros-asa.

Já reparou que os F1, desde meados dos anos 80, têm um formato que lembra o topo de uma garrafa de Coca-Cola do cockpit para trás? Barnard é o criador do conceito, que não se trata de mera opção estética. Aquelas curvas funcionam tão bem para o comportamento dos chassis em curvas que estão presentes até hoje em todos os bólidos.

De 1982 para 83, devido aos riscos de acidentes fatais como o que vitimou Gilles Villeneuve, o establishment da F1 obrigou seus engenheiros a abrirem mão de mais de cinco anos de desenvolvimento aerodinâmico. Paralelamente à revolução do efeito solo, a série também vira o nascimento da era turbo. O desempenho dos motores havia praticamente dobrado em ritmo de classificação, superando 1.000 cv. Para segurar tanta potência, as asas traseiras se transformaram em verdadeiros paredões, com extravagantes aletas auxiliares que acabariam proibidas ao fim de 84, de tão esdrúxulas que eram.

Nesse meio tempo, Barnard achou o caminho para recuperar parte do downforce perdido. Trabalhando a versão C do McLaren MP4-1 de modo que sua metade traseira se estreitava sobre o assoalho plano a partir de mais ou menos a metade do carro, ele potencializou o resquício de sua curvatura, na altura da suspensão traseira e do extrator, transformando o que deveria ser apenas o “chão” do carro em uma asa semifuncional.

Para ficar bem clara a ideia, resolvemos sobrepor a imagem de uma garrafa de Coca-Cola sobre a parte traseira da carenagem deste Sauber
Para ficar bem clara a ideia, sobrepusemos as imagens de uma garrafa de Coca-Cola e do Sauber C32 (2013)

A grande sacada foi utilizar o perfil de asa nos sidepods de maneira perpendicular ao solo. O efeito coanda faria o trabalho, mantendo a tendência do ar de seguir rente à superfície da carenagem e desaguando entre a parte de cima do extrator e o aerofólio traseiro, aumentando a eficiência dos dois. No MP4-1C, a curvatura começava cedo e vertiginosa.

Conceito dos carros em forma de seta começaram a ser desenvolvidos nos anos 70, e acabaram retomados numa concepção mais extrema em 83
Conceito dos carros em forma de seta começaram a ser desenvolvidos nos anos 70, e acabaram retomados numa concepção mais extrema em 83

O efeito, sozinho, não era suficiente para fazer frente aos turbo, mas permitiu que John Watson e Niki Lauda, mesmo empurrados pelo obsolescente Cosworth DFV V8, fizessem uma campanha decente e levassem o time inglês a terminar o ano em quinto lugar no certame de construtores. Poderiam ter ido melhor se não tivessem disputado as últimas quatro etapas com o MP4-1E, versão adaptada para acoplar o V6 turbo da TAG-Porsche, última – e principal – peça para tornar a McLaren uma escuderia competitiva a partir de 1984.

Por uma série de razões que podem ser melhor abordadas em outro artigo, a refrigeração do turbocompressor é fundamental para seu bom desempenho (a McLaren-Honda de 2015 que o diga) e este parâmetro costuma ser levado em grande consideração na hora de escolher sua posição na arquitetura do motor. Na Indy, que já os utilizava antes, eles ficavam atrás do bloco, um pouco acima do câmbio. Na F1, os engenheiros afastaram as turbinas para as laterais do carro, mais longe do calor do propulsor e ocupando um espaço que atrapalhava os carros-asa, mas que ficara vago com o regulamento de 83.

Aquele era o ponto visado pela nova concepção de Barnard e ele procurou conciliar as duas necessidades. O MP4/2 era menos esguio, mas tinha potência de sobra para fazer de sua proposta aerodinâmica uma vantagem providencial na hora de bater a concorrência. Os outros times não demoraram para perceber a lógica por trás do formato “garrafa de Coca-Cola”, mas qualquer reação eficiente passava por uma reengenharia profunda de seus projetos. A Brabham levou o primeiro título de motor turbo à base da força bruta do BMW 4-cilindros, mas o conceito mais harmonioso e confiável da McLaren não demorou a se impor em 84 e 85.

Repare na traseira estreita do MP4-1C; modelo inaugurou o estilo garrafa de Coca-Cola usado na parte traseira dos chassis
Repare na traseira estreita do MP4-1C; modelo inaugurou o estilo garrafa de Coca-Cola

A partir de 86, restrições do tanque de combustível e da pressão do turbo representaram enorme vantagem à Williams e seu bem acertado motor Honda. Ainda assim, a esquadra de Ron Dennis seguiu aproveitando a base criada por Barnard, mesmo que de forma indireta pelas mãos de seu ex-ajudante Steve Nichols. Em 87, a Ferrari fez várias concessões para contratá-lo, visando a um renascimento no pós era turbo que se avizinhava para 1989. Ele teria suas próprias instalações na Inglaterra e carta branca para criar. O resultado foi a linda e revolucionária F640, conhecida por ser o primeiro F1 que aposentava a alavanca manual de troca de marchas.

Com o retorno forçado dos motores aspirados, John teve maior liberdade para desenvolver sua “garrafa de Coca-Cola”. É nítida a semelhança da F640 com o McLaren MP4-1C: bico quadrado; rugas no encaixe dos braços da suspensão dianteira; sidepods compridos e curvilíneos; extratores virtualmente idênticos. O carro venceu sua prova de estreia, o GP do Brasil de 89. Era competitivo, mas ainda não a ponto de incomodar a McLaren, o V10 da Honda e a luta interna fratricida entre Ayrton Senna e Alain Prost. Confira no vídeo abaixo uma explicação rápida e ilustrada sobre como a solução funciona:

A evolução da F640 quase fez de Prost o campeão do ano seguinte, mas Barnard já não tinha mais ritmo para acompanhar nomes como Adrian Newey e Rory Byrne. Os dois deram um passo à frente e aproveitaram o conceito da “garrafa de Coca-Cola” para uni-lo ao desenvolvimento amadurecido da aerodinâmica dianteira, hoje tida como decisiva para definir como um monoposto vai se comportar de modo geral.

Todavia, a contribuição de Barnard ainda está ali, discreta mas ainda eficiente, na F1 do século XXI. Quando os atuais motores entraram em ação, em 2014, os projetistas demonstraram que a solução ainda é a melhor para a categoria ao mudar a posição dos turbocompressores em relação aos anos 80. Eles agora ficam escondidos entre as bancadas de cilindros, tudo para manter a garrafa de Coca-Cola atuante e aproveitar ao máximo aquela simples e profícua sacada surgida mais de três décadas atrás.

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