McLaren investiu em eletrônica em 93, antes da F1 proibir diversos auxílios

Quando tecnologia é demais: os F1 que trocavam marcha sozinhos

O Projeto Motor já explicou ao douto leitor como funciona a transmissão automatizada usada pela F1. Além das duas embreagens, que operam de maneira intercalada em relação às engrenagens pares e ímpares, um seletor eletrônico é responsável por gerenciar toda a operação de ponto de embreagem e troca das marchas. Todos os comandos efetuados pelo automobilista nas borboletas do volante passam por esse “cérebro” antes de serem efetivamente executados, num processo que dura frações de segundo.

É claro que um módulo tão sofisticado assim permitiria que o cambiamento ocorresse de forma automática. Afinal, até mesmo em automóveis comuns de rua é possível encontrar dispositivos similares. Por que, então, isso não acontece na prática? A resposta é bastante simples e sucinta: porque o regulamento não permite.

Nem sempre foi assim. Estamos falando de um assunto pouquíssimo comentado (até por estar relacionado a artimanhas tecnológicas mantidas sob sigilo), mas o fato é que houve dois momentos históricos da categoria em que a transmissão totalmente automatizada – não apenas a popular “semiautomática”, cujas mudanças são sempre manuais – entrou em cena para elevar a eficiência dos monopostos e roubar mais um pouquinho do protagonismo dos ases. Com este artigo tentamos resgatar um pouco dessas histórias.

Vale lembrar: fazer com que um F1 opere em regime de altíssimo desempenho trocando de marchas sozinho não é um exercício tão fácil quanto parece. Quem já dirigiu um veículo sem pedal de embreagem – seja gerenciado por caixa automática com conversão de torque ou automatizada (de dupla embreagem ou, pior, monoembreagem) – percebeu que, por vezes, o módulo eletrônico parece se embananar na reação às demandas do motorista, demorando para realizar em especial as descidas de velocidade.

Em automobilismo o uso do freio-motor é primordial para extrair todo o rendimento do carro, conforme o conspícuo Bruno Ferreira explicou neste texto sobre o estilo de pilotagem de Ayrton Senna, um dos grandes magos na aplicação desta técnica. Portanto, ter um câmbio que atrasa as reduções é sinônimo de perda de tempo, e ajustar o sistema de forma que fosse plenamente confiável entregar a função ao computador demandou certo tempo. Precisamos estar cientes de tal premissa a fim de compreender algumas das soluções aqui mostradas.

Evolução da transmissão automatizada na F1

Entre 92 e 93, portanto quatro anos depois de a Ferrari surpreender com a estreia da transmissão automatizada na F1 as escuderias de ponta aperfeiçoaram o dispositivo a ponto de fazder com que as subidas passassem a acontecer sem intervenção do piloto, caso este assim quisesse. As descidas ainda eram feitas manualmente, pelas razões supracitadas.

Eis que a TAG, contratada pela McLaren para desenvolver os aparatos eletrônicos do MP4-8, desenvolveu em 93 um dispositivo que, telemetricamente, dava ao automobilista a possibilidade de, com o simples apertar de um botão (localizado no canto superior esquerdo do volante), autorizar que o módulo eletrônico reduzisse sozinho as marchas, em pontos perfeitos de giro, nos momento de frenagem mais forte. É possível conferir Senna usufruindo do auxílio neste vídeo a bordo e Adelaide:

Essa era da F1 durou pouco. Para 94 a FIA impôs as já tão comentadas, analisadas e polêmicas restrições às assistências eletrônicas, deixando como única ressalva a utilização do câmbio automatizado, desde que com trocas 100% manuais. A mesma McLaren, curiosamente, acabou tomando uma advertência da entidade naquela temporada porque seu sistema permitia marotamente subidas automáticas. O assunto ficou adormecido nas temporadas seguintes.

A nova invasão da eletrônica nos anos 2000

O cenário mudou em 2001. Naquela estação, mais precisamente a partir do GP da Espanha, o órgão máximo do esporte a motor decidiu liberar a aplicação de parafernálias como controle de tração e telemetria bilateral (que permitia operações de ajustes do bólido realizadas dos boxes). A Williams aproveitou a fase de flexibilidade para revisitar o conceito das transmissões 100% automatizadas.

No caso do FW23 a solução encontrada para as reduções foi interessante: o ás acionava a borboleta esquerda no sossego das retas, ainda durante o período de aceleração, indicando quantas marchas gostaria de reduzir no ponto seguinte de frenagem. Com isso, a esquadra de Grove criava uma forma confiável de realizar por conta do seletor eletrônico as trocas para baixo; ao mesmo tempo, minimizava a margem de erro nas tangências, já que o piloto passava a focar exclusivamente em sua tomada de curva.

É possível perceber Juan Pablo Montoya aplicando a engenhosidade neste a bordo do classificatório para o GP da Europa de 2001. Repare que, nos comentários em inglês de Martin Brundle, o ex-piloto menciona aos 0:26 que o colombiano “não está reduzindo marchas. O carro faz isso sozinho”. Entretanto, nos trechos de retas mais curtas o sul-americano optava por usar as aletas de modo convencional.

Não demorou para que a tendência se espalhasse. Em 2003 não havia veículo no grid que não contasse com transmissão inteligente o bastante para avançar ou descer as velocidades da transmissão sem interferência humana. Não acredita? Confira abaixo um aperitivo das últimas passagens do GP do Canadá, vencido (na marra) por Michael Schumacher e que teve uma interessante chegada com Ralf Schumacher, Montoya e Jarno Trulli em seu encalço.

Entre as diversas tomadas a bordo registradas pelas câmeras é possível perceber que nenhum dos volantes está cambiando manualmente (Trulli chega a usar a grande reta de Montréal para relaxar as mãos). A operação 100% computadorizada fica nítida quando Schumacher mais velho acelera na reta para receber a bandeirada: o multicampeão larga a mão direita do arco de esterço para celebrar o triunfo, ao mesmo tempo em que as marchas da Ferrari F2003-GA continuam sendo alteradas normalmente.

O protagonismo tecnológico estava, mais uma vez, rompendo o limiar do aceitável, e a FIA resolveu agir: nas regras para 2004 o órgão proibiu as transmissões totalmente automatizadas, voltando para o padrão utilizado até hoje. N’outras palavras, deixaram a tecnologia apenas adormecida, pronta para acordar na menor das brechas.

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