F1 fechou acordo para correr na Arábia Saudita a partir de 2021

Por que parceria com a Arábia Saudita é uma afronta da F1

A F1 anunciou no último dia 5 de novembro que irá correr a partir de 2021 na Arábia Saudita, em um circuito de rua na cidade de Jeddah. A repercussão para a categoria não poderia ser pior dado que o país é uma ditadura que ignora princípios básicos dos direitos humanos.

Entre os diversos pontos de uma enorme lista sobre transgressões da Arábia Saudita, segundo a Anistia Internacional, estão exemplos claros de repressão implacável de ativistas pacíficos, jornalistas e acadêmicos, detenção de mulheres defensoras de direitos humanos, punições cruéis, desumanas e degradantes como flagelação, chicotadas e até mesmo amputações, tortura, discriminação religiosa e contra as mulheres e por aí vai.

Ainda existem escândalos como o do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, crítico do príncipe Mohammed bin Salman, do rei Salman bin Abdulaziz Al Saud e da intervenção da Arábia Saudita no Iêmen. A guerra civil no país vizinho, um dos mais pobres do Oriente Médio, começou em 2011 durante a Primavera Árabe, porém, escalou de forma brutal a partir 2015, principalmente graças à participação saudita. O número de mortos já passa dos 100 mil. O conflito é considerado pelo ONU a pior crise humanitária em andamento no mundo.

Khashoggi vinha fazendo diversas denúncias sobre o regime saudita e sua participação na guerra e precisou se autoexilar na Turquia, por questões de segurança. Não bastou. Em 2 de outubro de 2018, ele entrou no Consulado saudita no país para pegar documentos que atestavam seu divórcio para assim com poder prosseguir com o casamento com noive turca. Ele nunca mais foi visto.

Após uma extensa investigação e mudanças de posição da Arábia Saudita sobre o caso, a CIA chegou à conclusão em novembro de 2018 que o próprio príncipe Mohammed bin Salman mandou matar Khashoggi em Istambul.

Em meio a tanto horror, a Arábia Saudita tem tentado melhorar sua imagem perante o mundo utilizando grandes eventos esportivos, como foi denunciado recentemente pela Anistia Internacional. Futebol, golf, lutas, tênis, entre outros grandes eventos internacionais estão sendo patrocinados pela ditadura. E o automobilismo não fugiu da estratégia. A Fórmula E já realiza uma etapa na cidade de Diriyah e o Rally Dakar trocou a América do Sul pelo deserto saudita para os próximos anos.

A F1 começou a aprofundar sua relação com a Arábia Saudita ainda em 2019, quando fechou um contrato de patrocínio com a Aramco, petrolífera estatal do país. Agora, vem o anúncio de que a categoria irá correr no país a partir de 2021.

A hipocrisia da F1 ao se aliar à Arábia Saudita

É muito fácil apontar os diversos problemas que de cara deveriam impedir a F1 de querer correr ou até mesmo se aproximar da Arábia Saudita. O que talvez piore ainda mais a situação é o fato da categoria ter lançado recentemente planos de zerar sua pegada de carbono para se tornar ambientalmente mais sustentável e sobre diversidade. A Aramco é uma das empresas que mais poluem no planeta e a Arábia Saudita é o pior exemplo possível da segunda questão.

Para se ter ideia, contato íntimo entre pessoas do mesmo sexo no país é crime. Veja bem, não estamos falando que é mal visto por uma questão religiosa. É crime e que pode resultar em açoitamento ou morte por apedrejamento.

Direitos das mulheres tiveram uma pequena evolução nos últimos dois anos, como a possibilidade de elas dirigirem, muito por pressão externa. Porém, as sauditas seguem fortes restrições gerais. Um exemplo disso é que a lei ainda obriga que cada mulher tenha um tutor, independente de sua idade, que pode ser seu pai, marido, irmão ou até filho. Ele deve liberar a mulher para estudar, trabalhar, receber dinheiro e até viajar. Além disso, ativistas por direitos das mulheres são frequentemente presas, e muitas passam mais de ano na cadeia, enfrentando torturas.

Como a F1 pode seguir como uma campanha intitulada “Corremos como Um”, que usa o arco-íris, em um país com tamanhas restrições? Mais: um protesto contra o racismo como tem sido feito antes de todas as provas poderá ser realizado na Arábia Saudita? O que acontece com um piloto ou qualquer outra pessoa que participe do evento e resolva fazer uma declaração ou protesto em favor de mulheres ou direitos LGBTQ?

Passado e até presente não justificam novos erros

O fato da F1 ser um negócio em que gira muito dinheiro não justifica certas tomadas de decisão. Se olharmos no esporte em geral, as cifras do futebol e Jogos Olímpicos e outras modalidades também são enormes. O esporte é uma ferramenta muito importante de integração de pessoas e povos e seus grandes eventos possuem um enorme alcance que, queira ou não, passa mensagens dos mais diversos tipos. Desde qual é o melhor tênis e camiseta, até conceitos sobre integração cultural e racial através da participação conjunta de pessoas em uma mesma atividade.  

Dizer que política e esporte ou cultura não se misturam, ainda mais em competições internacionais, é algo que simplesmente não condiz com a natureza de competições esportivas e manifestações culturais dos mais diversos tipos, e passa longe da realidade de modalidades profissionais de alto desempenho da atualidade. Isso sem contar com a questão de direito de livre expressão que qualquer pessoa deve possuir como direito humano básico, ainda mais esportistas que são grandes influenciadores em uma sociedade cada vez mais integrada por tecnologias de informação rápida e redes sociais.

Sim, a F1 já correu na África do Sul do Apartheid e no Bahrein durante a Primavera Árabe. Mais ainda. A F1 compete em países como China e Rússia, que também podem ser acusados de restrições a direitos humanos e liberdade de expressão das mais diversas naturezas. Se fizermos uma análise mais profunda, governos dos Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França vendem armamento e fomentam guerras civis como a do Iêmen e lucram com barbárie pelo mundo.

Tudo isso deve ser discutido e rediscutido para se encontrar quais são os limites do aceitável para uma categoria esportiva – que se é um grande negócio, é apenas por conta da paixão dos seus fãs pelo esporte – promover eventos e se aliar a empresas e países que praticam, patrocinam e possuem leis que não condizem com os princípios básicos defendidos por instituições multilaterais como ONU, Unicef e OMS, entre outras.

O mais importante é não se avançar ainda mais, baseado na eterna desculpa do “é um negócio”, em parcerias que diminuem valores tão importantes e intrínsecos ao esporte e a qualquer sociedade pacífica sobre igualdade de direitos e a busca por um mundo ambientalmente mais sustentável. O próprio negócio não irá se sustentar a médio prazo sem este espírito e será rechaçado pelas próximas gerações.  

Como se pode querer avançar em temas tão importantes como diversidade, igualdade de gênero e outros, dos quais a própria FIA e a F1 têm se comprometido a endereçar nos próximos anos, se ainda estamos aceitando regredir nestas questões? Não existe como. Cai o discurso, e se mostram as cruéis intenções por trás de um bonito banner no grid de largada.

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