Acidente de Streiff marcou a última passagem da F1 pelo Rio de Janeiro

O grave acidente de Streiff que marcou o fim da F1 no Rio de Janeiro

Em 1989, um grave acidente em um teste em Jacarepaguá mudou para sempre a vida do piloto Philippe Streiff. Depois de uma série de acontecimentos e mal-entendidos, o francês ficou tetraplégico e criticou o atendimento que recebeu no Brasil, em um episódio marcante na fase final da passagem da F1 pelo Rio de Janeiro.

Para entender o caso, precisamos lembrar do contexto bem diferente da F1 naquela época. Durante a pré-temporada, as equipes buscavam fugir do inverno europeu e realizavam testes no hoje extinto circuito de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, que era um local que habitualmente abria os campeonatos na década de 80. No ano de 89, uma das equipes que testaram no Rio foi a francesa AGS, com Philippe Streiff, um de seus pilotos titulares. Streiff tinha 33 anos, com 53 GPs disputados, incluindo um pódio.

No dia 15 de março, Streiff faria seu último teste com o modelo JH23B, nada mais do que uma atualização do carro da AGS de 88. Naquela quarta-feira, a equipe experimentaria uma nova configuração de rodas de alumínio. Perto das 11h da manhã, Streiff perdeu o controle a mais de 200 km/h na Curva do Suspiro, uma leve e rápida tomada à esquerda, que também era conhecida como Curva do Cheirinho. A causa mais provável para a escapada é uma quebra na suspensão traseira esquerda. O seu carro decolou quando passou por cima da zebra e bateu a cerca de 180 km/h. O AGS voou por cima do guard rail, capotou várias vezes, e só parou a cerca de 80 metros do local da escapada. 

A batida em si não foi filmada, mas quem testemunhou garante que foram cenas de horror. Os detritos atingiram dois homens que trabalhavam no local, que sofreram lesões leves, mas a preocupação maior era com o próprio Streiff. Seu carro estava destroçado e chegou a ter um princípio de incêndio, que foi controlado pelos bombeiros no local. Mas a maior preocupação era com o fato de o santo antônio, parte do carro que protege a cabeça do piloto em caso de capotagem, ter sido arrancado. Para a surpresa de todos, Streiff permaneceu consciente, dizia que estava bem e até tentou ficar em pé sozinho, mas como sentia dores nas pernas, foi colocado em uma maca. A partir deste momento, houve uma sequência de acontecimentos que tiveram graves consequências para a vida do piloto. 

O atendimento a Streiff

Inicialmente, Streiff foi levado ao ambulatório do circuito de Jacarepaguá, onde foram detectadas lesões na clavícula, omoplata e na coluna. Mas, para ter um atendimento mais completo, ele foi levado de helicóptero a um hospital na Gávea, a cerca de 30 km da pista. Chegando lá, Streiff teve diagnosticadas luxações na quarta e quinta vértebras da coluna cervical, além de um afundamento na altura da nona vértebra torácica. Ele passou por uma cirurgia, mas a sua situação era extremamente delicada, pois a esta altura o piloto já estava paralisado do pescoço para baixo. 

A esposa de Streiff se tornou uma crítica feroz do atendimento dado ao seu marido, então ela convidou o renomado ortopedista francês Gérard Saillant para prestar auxílio. Saillant era amigo de Streiff e se tornou mundialmente conhecido ao realizar cirurgias em grandes celebridades esportivas, como o jogador de futebol Ronaldo e Michael Schumacher. A chegada de Saillant ditou o tom de uma enorme guerra de narrativas entre os franceses e os médicos brasileiros. 

Os franceses apontaram uma série de erros que, segundo eles, tiveram papel fundamental para as sequelas que Streiff sofreu. Por exemplo:

– Constataram que não houve cuidado na remoção do piloto de seu carro no acidente, sendo que este momento é crucial quando há suspeita de lesões na coluna. De acordo com os bombeiros brasileiros, Streiff foi removido de forma apressada do carro devido ao fato de ele estar encharcado de gasolina, sendo que já havia um princípio de incêndio no local que poderia agravar ainda mais a situação.

– O heliponto do hospital na Gávea não estava preparado para ser usado. Então, o helicóptero médico teve de pousar no estacionamento do planetário da Gávea, para que, de lá, Streiff fosse transportado de ambulância até o hospital. Só que as ruas no caminho eram de paralelepípedos, o que gerava uma trepidação que não era a ideal para quem lesionou a coluna, além de ter havido a perda de importantes minutos para a recuperação do piloto. 

– Streiff chegou ao hospital perto das 13h, e a cirurgia só foi realizada às 23h, após ser detectado um edema na coluna cervical que já comprometia a sensibilidade de Streiff em alguns membros. A versão da época era de que, inicialmente, os médicos brasileiros julgavam que a cirurgia não era necessária, uma vez que “não havia déficit neurológico”. Mas, com a piora de Streiff e a perda da sensibilidade dos membros, ele foi levado ao centro cirúrgico.

– Além disso, o hospital não dispunha de um aparelho de tração cervical, que seria fundamental para o tratamento do piloto. 

Depois de feita a cirurgia, Saillant insistiu para que Streiff fosse transferido imediatamente para Paris. Os médicos brasileiros se opuseram, e defendiam que uma segunda cirurgia para fixação da coluna de Streiff poderia ser realizada ainda no Rio. Mas, no dia 19, quatro dias após o acidente, Streiff foi transportado, em um avião equipado com uma UTI. Ao chegar na França, o piloto foi levado direto a um hospital, onde foi constatada “uma paralisia total dos membros”, ou seja, ele estava tetraplégico. Do lado dos brasileiros, há a convicção de que ele não estava definitivamente tetraplégico quando deixou o país. 

Após ficar paraplégico, Philippe Streiff passou a liderar campanhas por segurança no trânsito e direitos dos deficientes
Após ficar paraplégico, Philippe Streiff passou a liderar campanhas por segurança no trânsito e direitos dos deficientes

Consequências na F1 e no GP do Rio

De qualquer forma, o dano já estava causado, o que trouxe repercussões negativas para a organização do GP no Rio. O diretor médico do evento brasileiro defendeu o atendimento dado a Streiff na pista, e reclamou que o hospital do Rio não tinha a estrutura necessária para fazer o atendimento adequado para a F1. Em resposta às críticas, o hospital anunciou que deixaria de prestar atendimento ao GP do Brasil a apenas dois dias para o começo do evento. No fim das contas, aquele ano seria o último da F1 no Rio. A partir de 1990, o GP do Brasil voltaria a Interlagos. 

Mas, problemas do Rio à parte, o acidente de Streiff também levantou questionamentos sobre a segurança dos carros de uma forma geral. O santo antônio do AGS foi partido pois ele não era parte estrutural do carro, já que estava apenas preso por quatro parafusos, o que deixa a coluna do piloto bastante vulnerável. Vale lembrar que, na época, a redução de custos com a proibição dos motores turbo provocou uma invasão de novas equipes com estruturas mais modestas, então temia-se que a segurança estava sendo deixada em segundo plano.

Até 89, a região do santo antônio precisava suportar forças de três toneladas nos testes de impacto. Com o acidente de Streiff, a exigência ficou maior, e a partir de 90, a região precisaria resistir a sete toneladas sem ceder. Algumas equipes tiveram dificuldades para passar nestes testes, incluindo a própria AGS. Naquele mesmo ano, a FISA, braço esportivo da FIA, estreou um novo procedimento de remoção de pilotos com suspeita de fratura na coluna cervical. A entidade julgava que, caso Streiff tivesse sido removido do carro de forma adequada, algumas de suas sequelas poderiam ter sido evitadas.

Para Streiff, todo o período que mudou a sua vida se transformou em um borrão. Sua primeira lembrança é de acordar no hospital e pedir para receber alta, pois ele queria ir para Jacarepaguá e competir no GP do Brasil de 89. Mas a F1 já estava em Imola para a segunda corrida do ano, e o cockpit da AGS já era ocupado por Gabriele Tarquini. Diante da nova realidade, Streiff organizou um famoso evento de kart, passou a se dedicar à conscientização sobre a segurança no trânsito, e ajudou a desenvolver um sistema que permite que pessoas com deficiência física possam dirigir.

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