Autódromo de São José do Rio Preto
(Reprodução/Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto)

14 anos antes de Interlagos, Rio Preto teve o 1º autódromo do Brasil

No recém-lançado livro “Rallye 125 anos”, no capítulo sobre o rali brasileiro, existe uma menção de que o primeiro autódromo brasileiro com um circuito exclusivo para competições de esporte a motor teria sido construído em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, em 1926, 14 anos antes da inauguração de Interlagos.

Na conversa no podcast do Projeto Motor sobre rali e o livro, publicada em janeiro de 2022, o próprio autor do capítulo, o jornalista Luiz Alberto Pandini, confessou que ficou surpreso quando descobriu a existência dessa pista.

“Isso derruba aquela informação que todos nós conhecemos que Interlagos foi o primeiro autódromo do Brasil”, disse Pandini. “Eu fiquei espantadíssimo”, completou.

Utilizando o relato como gancho, o Projeto Motor resolveu buscar mais informações sobre o autódromo de Rio Preto. A história da pista, pouco conhecida nacionalmente e até mesmo nos meios do automobilismo, tem registros importantes na cidade de Rio Preto, tanto em jornais da época quanto em livros sobre a cidade.

Pesquisamos em publicações, conversamos com historiadores e fomos até São José do Rio Preto para conhecermos mais sobre o autódromo, que muito provavelmente foi não só o primeiro do Brasil como de toda da América Latina. E importante destacar: já existia automobilismo no país, porém, estamos falando de uma pista construída especificamente para o esporte, e não um circuito de rua ou estrada.

Como nasceu a ideia da construção de um autódromo em Rio Preto

O projeto de construir uma praça para automobilismo em Rio Preto foi de Romoaldo Negrelli, um empresário descendente de italianos. Natural de Ribeirão Preto, outra cidade forte do interior paulista, Negrelli foi morar ainda criança na Itália com a família. Na Europa, completou seus estudos, se formou em Ciências Econômicas e ainda lutou na I Guerra, chegando a ter a patente de tenente.

No começo dos anos 20, Negrelli retornou ao Brasil e se instalou em Rio Preto, onde se associou a um tio, Evaristo Negrelli, em negócios de comércio de grãos e café. Em 1922, ele se tornou presidente da Associação Comercial e Industrial de Rio Preto (ACIRP).

Entre as várias ideias e influências que ele sofreu e trouxe da Itália, se destaca seu envolvimento com o fascismo. Ao se envolver na vida política local, ele fundou em 1924 o Partido Fascista de Rio Preto, que tinha ligação direta com o Partido Fascista Nacional italiano. Um ano depois, ele foi novamente até o país europeu para receber do próprio Benito Mussolini o título de “Cavalieri della Corona”.  

Em sua bagagem, porém, também vieram outros costumes da Europa. Enquanto esteve fora do país, ele teve contato com automobilismo e, de volta ao interior de São Paulo, acreditou que o esporte a motor poderia ter impulso na região. E assim, em 1925, ele decidiu liderar a empreitada de construir o primeiro autódromo com propósito exclusivo para corridas de carros do Brasil.

Negrelli conseguiu uma área de 42.500 m² na fazenda do amigo Cel. Vitor Brito Bastos. O circuito ficaria localizado onde hoje fica a Rua Bernardino de Campos, região central da cidade de Rio Preto.

Segundo a edição de 19 de agosto de 1926 do jornal “O Município”, naquela semana, Negrelli entrou com um pedido de concessão na Câmara de Rio Preto. Porém, a construção já teria começado muito antes, com notícia da edição de 1º de novembro de 1925 da mesma publicação anunciando que as obras do equipamento já estavam caminhando.

O terreno foi limpo utilizando cavalos e arados para retirar a vegetação, fechado com um cercado e teve instalada infra-estrutura para receber público e até mesmo realizar eventos fechados como festas sociais. O responsável pela obra foi José Bignardi, engenheiro-chefe do Serviço de Topographia e Calçamentos de Rio Preto.

A pista tinha mil metros de extensão com largura aproximada de 15 metros e foi aplainada de forma a seguir especificações técnicas internacionais. O Projeto Motor não conseguiu uma confirmação exata do desenho do circuito, mas por desenhos informais e alguns relatos de provas publicados nos jornais da época, além do fato do traçado ser bastante curto, é muito provável que se tratava de um circuito oval. Até porque é possível verificar na programação que a pista também era utilizada para provas de turfe.

Anúncio das obras do autódromo de Rio Preto
Anúncio das obras do autódromo de Rio Preto (Reprodução/Jornal O Município

Em um segundo momento, já com o autódromo em funcionamento, chegou-se, inclusive, a se estudar uma parceria entre o autódromo e a Sociedade Hyppica de Rio Preto, que negociava participar da administração do equipamento, como foi relatado na edição de 19 de abril de 1927 do jornal “A Notícia”.

A informação sobre o autódromo chegou aos grandes centros do país, ganhando manchetes principalmente na capital paulista. O jornal Estado de S. Paulo publicou em 21 de agosto de 1926 que “segundo notícias de Rio Preto, deu entrada na Câmara Municipal daquela cidade um requerimento pedindo a concessão para ali ser construída uma pista para corrida de automóveis. Os trabalhos de construção desse autódromo, localisado (sic) em um dos mais bellos pontos da cidade próximo ao campo do Rio Preto E. C. foram já iniciados.”

Inauguração e movimentação da sociedade no autódromo

O Autódromo de Rio Preto foi inaugurado no dia 20 de dezembro de 1926 com uma grande festa e ampla programação de corridas e exposição de carros. As primeiras voltas na pista foram realizadas pelo piloto local de origem italiana Arthur Abrigato, amigo e parceiro comercial de Negrelli em uma empresa de transporte de combustível.

Entre os convidados estavam Conde Matarazzo, que levou uma Bugatti de sua coleção, o industrial Carlos Jafet e o Almirante Antônio Luís von Hoonholtz, mais conhecido como Barão de Tefé, avô de Manuel Antônio de Teffé, um dos principais pilotos brasileiros da primeira metade do século XX.

Pela pesquisa nos jornais da época, é possível perceber que a programação semanal de corridas passou a ser bastante movimentada, se tornando uma espécie de evento permanente das classes mais altas da cidade. Em um de seus relatos sobre os eventos, “O Município” descreve os domingos no autódromo desta forma:

“Tarde explendida. Tudo que Rio Preto tem de chic e na presença de distinctas pessoas da sociedade rio-pretense, ali presentes realisaram-se (sic) provas admiráveis de automobilismo, corridas de cavallos, corridas de charettes sempre debaixo do maior enthusiasmo do nosso público.”

No carro à direita, uma Bugatti, Romoaldo Negrelli e Arthur Abrigato posam no circuito de Rio Preto
No carro à direita, uma Bugatti, Romoaldo Negrelli e Arthur Abrigato posam no circuito de Rio Preto (Reprodução/Livro “São José de Rio Preto de A a Z”)

As provas normalmente levavam os nomes das marcas dos carros como “Fiat” ou “Ford”, sendo que em algumas delas eram realizados desafios entre os modelos de montadoras diferentes como “Fiat vs Oldsmobile”. Os vencedores ganhavam medalhas de ouro, normalmente concedidas pelo próprio Romoaldo Negrelli.

Mulheres tinham alguma frequência na participação. Em uma das que ganhou mais destaque foi o duelo entre Mariinha Jorge e Rosalinda Negrelli, que aconteceu em 27 de fevereiro de 1927. Com o triunfo, Jorge acabou conquistando o título de “rainha do volante de Rio Preto”.

Na semana seguinte, a campeã recebeu um novo desafio, de Amelia Scaf, que utilizaria um Oldsmobile de seis cilindros contra o Ford da adversária. Segundo o jornal “O Município”, a vencedora ganharia até mesmo um prêmio em dinheiro da fabricante do carro vencedor.

Outro duelo que mexeu com a cidade foi entre o Bugatti de Negrelli e o Dodge do Dr Masbarfer, que tomou as manchetes dos jornais em agosto. Os dois carros foram conduzidos por 100 voltas no pequeno circuito de Rio Preto, com o Bugatti vencendo a prova com uma vantagem de seis voltas. Estes tipos de duelos diretos entre dois competidores aconteciam com alguma frequência no circuito e eram chamados pelos jornais de corridas “à americana”.

Não existe muita dúvida que o autódromo se tornou um sucesso, sendo descrito pelo “A Notícia”, em março, apenas três meses após a inauguração, como “o principal ponto de diversão em nossa cidade”. O furor foi tão grande que Negrelli e Abrigato chegaram a fundar a Associação dos Chauffers de Rio Preto, incentivando mais pessoas da região, incluindo cidades como Taquaritinga e Jaboticabal, a participarem com seus modelos das provas.

Em 20 de julho de 1927, o autódromo foi rebatizado com o nome de Carlos Campos, que foi governador do estado de São Paulo de 1º de maio de 1924 até o dia de sua morte, em 27 de abril de 1927.

Iluminação para recorde de resistência

Um evento que chama a atenção na história do autódromo de Rio Preto é da tentativa de recordes de resistência realizadas pelo piloto descrito como Dr Masbarfer. É possível conferir diversas citações ao episódio em todos os jornais da época durante as semanas que antecederam o acontecimento.

O Dr Masbarfer utilizou um modelo Dodge para tentar percorrer 1.500 milhas de forma ininterrupta. Durante o percurso, seriam medidas suas médias para os recordes nas marcas dos 500 Km, 500 milhas, 1.000 Km. 1.000 milhas, 1.500 Km e 1.500 milhas.

Largando às 11 horas da sexta-feira, 29 de julho de 1927, para conseguir completar toda essa quilometragem, o Dr Masbarfer precisaria atravessar a noite. Por isso, foi providenciada iluminação artificial em toda a trajetória da pista para ele enxergar o trajeto.

No sábado de manhã, os jornais “O Município” e “A Notícia” publicaram as parciais do ritmo do piloto até o fechamento de suas edições na tarde de sexta. No começo da semana, foram publicados os resultados, com o novo recorde brasileiro e sul-americano para os 1.000 Km.

Registro no jornal "A Notícia" do suposto recorde do Dr Masbarfer
Registro no jornal “A Notícia” do suposto recorde do Dr Masbarfer (Reprodução/A Notícia)

Fim abrupto do autódromo de Rio Preto

Apesar do enorme sucesso, o autódromo de Rio Preto durou pouco mais de um ano. Em 1928, Negrelli adoeceu e voltou a Itália em busca de tratamento médico. Ele acabou morrendo pouco tempos depois, em 23 de novembro de 28, no Sanatorio Europa, em Trento.

Proprietário da área onde se encontrava o autódromo, o Cel. Brito Bastos não teve interesse em dar continuidade à administração do circuito e o circuito teve suas atividades prontamente paralisadas para sempre.

O automobilismo brasileiro e no interior de São Paulo continuou crescendo até receber um novo empurrão decisivo em 1940. Após diversos projetos e tentativas frustradas, a capital do estado finalmente inauguraria o autódromo de Interlagos, que na data de hoje é um dos mais antigos do mundo que mantém suas atividades.

Comunicar erro

Comentários

Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial