Como e por que os bicos dos carros de F1 ficaram altos
Quem é mais novo e acompanha F1 “apenas” nos últimos 30 já se acostumou com os narizes dos carros altos. Isso foi uma grande novidade iniciada na década de 90 que depois se tornou um padrão. E não só na F1 como em diversas outras categorias de carros de fórmula.
Esse é o tipo de desenvolvimento é latente na F1 pela sua característica de desenvolvimento mais aberto do que em outras competições do automobilismo, sempre estimulando projetistas a buscarem novas formas de encontrarem mais desempenho. Isso acontece porque a solução é bastante inventiva e tem foco total no aumento da pressão aerodinâmica, algo que nunca seria perseguido sem o campo aberto para os engenheiros dessa área.
O primeiro modelo a aparecer em um GP de F1 com o bico alto foi o Tyrrell 019, em 1990. O carro foi desenhado por Harvey Postlethwaite, experiente projetista que já tinha alguns feitos na carreira, como vitórias pela Hesketh e Wolff, passagem pela equipe Fittipaldi em 80 e Ferrari entre 1981 e 87, até a chegada à Tyrrell.
O modelo 018, de 1989, já tinha mostrado uma ótima evolução do que a equipe vinha fazendo em anos anteriores e a Tyrrell terminou em quinto no campeonato de construtores. Na abertura da temporada de 90, ainda com o carro antigo, Jean Alesi teve uma das mais inspiradas provas de sua carreira, que ainda estava em seus primeiros capítulos, em um embate direto pela vitória com Ayrton Senna, na poderosa McLaren. O brasileiro triunfou e o francês terminou em segundo, já dando mostras que a Tyrrell poderia aprontar. E não demorou.
Duas etapas depois, a Tyrrell estreou seu novo carro com a novidade na frente do carro.
O conceito do bico alto
Desde o começo da década de 80, a FIA estava trabalhando no regulamento para banir ao máximo a utilização do efeito solo na F1. Desta forma, saias estavam banidas e o assoalho dos carros deveria ser plano.
Mesmo assim, era praticamente impossível descartar totalmente alguma forma de aproveitamento do ar que passa por baixo dos modelos. E diversas equipes estavam começando a investir no desenho dos difusores traseiros, tentando aumentar a pressão aerodinâmica com a peça. E os times mais estruturados até já colhiam os primeiros resultados desta evolução.
Postlethwaite e o projetista chefe da Tyrrell, Jean-Claude Migeot, olharam, no entanto, para o outro lado do carro: a frente. Eles perceberam que o bico baixo desviava o ar que passava naquela região, o que diminuía a chance da criação de uma zona de baixa pressão embaixo do monoposto. Para conseguir mais pressão aerodinâmica, os engenheiros tentam aumentar a quantidade e a velocidade do ar que passa por esta zona, o que faz com que a pressão gerada pelo ar em cima do carro fique maior do que na parte de baixo, causando o efeito de “pregar” o carro no chão.
Com isso em mente, Postlethwaite e sua equipe desenharam o bico do 019 mais alto, com um “V” ao contrário no centro do carro, deixando uma abertura na parte frontal para o ar não só se dirigir para o assoalho, mas para ainda ganhar velocidade ao ser “canalizado”. Com este projeto, além de direcionar o ar em alta velocidade para debaixo do carro, a asa dianteira também era mantida próxima ao chão, o que aumentava sua funcionalidade.
Este equilíbrio é algo pelo qual projetistas se debruçavam há anos. E se hoje parece algo óbvio, não era. Tanto que a ideia implementada por Postlethwaite e Migeot se tornou padrão em poucos anos e continua sendo utilizada por todos até hoje.
E a questão principal é que o projeto não era apenas um bico alto, mas tinha influência em toda área de baixo do modelo, já que o ar precisava ser direcionado corretamente para o assoalho. Este também passava a exigir uma nova estrutura montada por baixo do bico e que é utilizada até hoje, já que ele não chegaria mais até a asa dianteira, como nos desenhos convencionais da época.
O problema naquele momento era que o carro tinha outras deficiências como o motor Cosworth V8 DFR, que não era páreo para os Honda e Renault, e a própria operação da Tyrrell em si, de uma equipe média. Mesmo assim, na estreia no 019, Alesi conseguiu um bom sexto lugar em San Marino e depois ficou novamente em segundo em Mônaco.
Os bons resultados parariam por aí, mas a ideia claramente era boa. No ano seguinte, o modelo 020 seguiria evoluindo o desenho e ainda teria motores de segunda mão da Honda, conseguindo mais um pódio com Stefano Modena.
A evolução da ideia de Postlethwaite
Mesmo sem resultados incríveis, a ideia de Postlethwaite era claramente promissora. Estava claro que que a solução tinha benefícios, mas precisava ser refinada e colocada em um conjunto melhor. Tanto que a McLaren, ainda em 1990, chegou a testar em Monza, com Senna, uma alternativa meio esquisita de bico alto, porém, elevando também toda a asa dianteira, algo que diminuía um pouco os ganhos.
A ideia era usar endplates (aquelas partes que ficam nas extremidades das asas dianteiras na vertical) que fosse até o chão, canalizando todo o ar frontal para o assoalho. Um experimento que a história nos mostrou não ser a melhor opção. Mesmo assim, engenheiros de praticamente todas as equipes seguiram olhando para aquela Tyrrell esquisita e pensando o que poderiam fazer para aproveitar melhor o conceito.
No ano seguinte ao modelo Tyrrell 019 ir para a pista, John Barnard, diretor técnico da Benetton, resolveu não só aproveitar a ideia de Postlethwaite como aprimorá-la. O B191 também apareceu na F1 com um bico elevado, ainda mais alto do que o da Tyrrell, porém um conceito um pouco diferente na asa.
Ao contrário do carro de Postlethwaite, em que a peça era dividida entre as porções direita e esquerda com um V no meio, Barnard resolveu fazer um bico elevado com uma asa inteira passando por baixo. Desta forma, o carro da Benetton conseguiu os mesmos benefícios do direcionamento do ar para o assoalho, mas também manteve uma superfície completa de asa na frente para que esse fluxo gerasse pressão na região. Este novo desenho foi o adotado de forma definitiva depois pelas outras equipes.
O carro ainda contava com a última versão do motor Ford Cosworth HB V8 e tinha a dupla brasileira Nelson Piquet e Roberto Pupo Moreno, bastante conhecida pela habilidade de desenvolver novas ideias. O segundo, foi substituído ainda nas provas finais da temporada de 91 por um promissor alemão chamado Michael Schumacher.
O Benetton 191 estreou no GP de San Marino de 1991. Os dois pilotos abandonaram a prova. Na segunda participação, Moreno terminou em quarto em Mônaco e na terceira, Piquet venceu o GP do Canadá. O carro não só era bom, como ele foi rápido logo de cara. Suas limitações estavam mais ligadas à potência do motor e ao tamanho da operação da Benetton, que ainda era um time ascendente que estava apenas começando a mostrar sua vocação para ser grande.
Mais até do que a Tyrrell, a Benetton acabou se tornando a grande cara deste tipo de projeto de bico alto porque seu novo conceito caminhou junto com a evolução da equipe nos anos seguintes, culminando nos títulos de 1994 e 95 com Schumacher. A partir daquele momento, quase todas as equipes da F1 já estavam utilizando a ideia, com ajustes diferentes.
Bicos altos estão com os dias contatos na F1(?)
As equipes da F1 seguiram com o tempo elevando cada vez mais a altura de seus bicos. Nos anos 2010, eles chegaram praticamente à altura do cockpit, o que somado às proteções laterais de cabeça (que não existiam no começo da década de 90) deixou os pilotos em uma situação em que é praticamente impossível enxergar a asa dianteira.
Só que a FIA começou a ficar preocupada com isso, principalmente com o caso de batidas em que os bicos altos poderiam atingir o piloto de um outro carro, tamanha a altura. A entidade começou a impor peças mais baixas na parte frontal do carro, porém, a resposta das equipes foi com monstruosidades do ponto de vista estético.
Em 2012, veio aquele horrendo degrau na parte frontal do carro, em que as equipes assim mantinham a região o mais alta possível até chegar ao bico. A FIA respondeu com novas regulamentações em 2014 e alguns times criaram o chamado “bico de tamanduá” que resolvia a questão burocrática da altura máxima da porção do carro, mantendo de alguma forma a abertura de ar na frente alta.
Com o tempo, a FIA foi trabalhando com as equipes para conseguir baixar os bicos e diminuir o uso desses artifícios que deixaram os fãs da F1 raivosos com o visual dos carros. Hoje, o cone da frente está relativamente baixo em relação ao que vimos nos últimos anos. Porém, essa abertura frontal deve acabar de vez.
O novo regulamento que será introduzido em 2022 e que deve mudar radicalmente a cara dos carros de F1 tem um capítulo específico sobre o cone do nariz dos carros. A regra é bem restritiva e através da utilização eixos imaginários paralelos ao chão e medidas da curvatura entre o cone frontal e a parte anterior ao cockpit, tenta acabar de vez com os bicos altos.
A questão é que a história da F1 nos mostra que projetistas sempre encontram alguma forma de driblar as frias letras do regulamento. Muitas vezes, inclusive, sem tecnicamente burlá-lo. Então, fica a expectativa de vermos que tipo de bico vamos ver no grid de 2022.
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