Câmbio CVT: o sistema que quase matou a troca de marchas na F1
Em 1989, a Ferrari revolucionou o universo da F1 ao acoplar o motor da famosa 640 a uma transmissão automatizada de dupla embreagem, capaz de fazer trocas ultrarrápidas gerenciadas eletronicamente, através de aletas, sem que o piloto precisasse tirar as mãos do volante. Aperfeiçoado pela Williams em 91, o sistema, comumente conhecido como “semiautomático”, é usado até hoje na categoria, com leves avanços técnicos.
Para muita gente, o advento dessa tecnologia acabou com parte da magia da pilotagem: a troca manual na alavanca em H, os diferentes estilos de uso do freio-motor, o punta taco… Um pouco de tudo isso se perdeu. a essência, contudo, perdurou: apesar de toda a interferência eletrônica no processo, a caixa atual mantém arquitetura similar à de um câmbio manual (daí o nome “automatizado”, não “automático”), o que significa que a troca convencional de marchas foi preservada.
Se você é um desses que reclamam de como as coisas são hoje, acredite: se dependesse da pragmática mente de Patrick Head, ex-diretor técnico da Williams, a situação poderia estar muito, muito pior. Em 1993, auge do domínio da esquadra britânica na categoria, o cerne de tamanha hegemonia estava na aplicação de diversas assistências computadorizadas, tais quais suspensão ativa, controles de tração e de largada, acelerador drive-by-wire etc. A transmissão semiautomática estava entre os itens.
Não satisfeito, Head acatou sugestão do colega Emery Hendriks, da empresa especializada Van Doorne Transmissions, e resolveu colocar para testar o FW15C munido de uma transmissão conhecida como CVT (sigla em inglês para “continuamente variável”). Antes de falar do teste e das consequências que a tecnologia poderia trazer à F1, vamos conhecer um pouco do sistema.
O que é o sistema CVT
O CVT substitui marchas, embreagens e engrenagens de um câmbio convencional por duas árvores munidas de polias giratórias – uma ligada ao propulsor, outra responsável por transferir potência e torque ao eixo traseiro, no caso de um F1 -, que são interligadas por uma correia disposta em ‘V”. A transmissão da força ocorre pelo atrito entre correia e polias, de maneira que a relação entre a velocidade de giro de cada árvore varia de acordo com a largura da base de cada polia.
Na hora de arrancar, a polia da árvore motora se encontra em sua espessura mais fina no miolo, enquanto a árvore transmissora se encontra em patamar contrário. Conforme a aceleração aumenta, a primeira “alarga” e a segunda “espicha”, criando uma relação de giros que muda gradual e constantemente (diferente do câmbio convencional, cujas relações são fixas para cada marcha selecionada). Daí o nome “continuamente variável”: ele indica que as relações entre as velocidades são múltiplas e praticamente infinitas. Confira no vídeo abaixo (em inglês) uma explicação bem detalhada sobre o modus operandi do CVT:
Antes de chegarmos ao ponto mais interessante deste artigo, vale ressaltar que o CVT é um câmbio muito mais antigo e comum do que as pessoas imaginam. O conceito nasceu em 1490, com Leonardo da Vinci, que já naquela época pensava em métodos alternativos de transmissão para suas invenções de engenharia e mobilidade. Obviamente, o motor a combustão não existia, mas já era possível pensar em veículos que, movidos pela força humana, poderiam facilitar o deslocamento.
É como imaginar uma bicicleta com marchas, tão comum nos dias de hoje: você é a unidade motriz, mas a presença de um sistema mais aprimorado para transmitir a energia aplicada por seu corpo aos pedais permite que o ciclista se desgaste menos ao pedalar. Veja, no rápido vídeo abaixo, como funcionava o CVT criado pelo gênio italiano:
Em teoria, esse tipo de transmissão possui inúmeras vantagens, pois permite que a usina trabalhe sempre no regime ideal de rotações, seja para veículos de rua voltados ao consumo de combustível ou para carros de corrida que precisam entregar o máximo de rendimento. É aí que entra a F1. Por isso, desde o fim do século XIX engenheiros tentam aplicar a tecnologia a automóveis e motocicletas de produção. Hoje, ela se encontra presente em diversos carros, em especial os japoneses, como Toyota Corolla, Honda Fit, City e HR-V, e Nissan Sentra. Mais do que isso, é comum vê-la equipando snowmobiles e… karts.
Quem andou em qualquer desses veículos já deve ter estranhado o fato de que não há troca de marchas, nem automática. O propulsor apresenta mudanças constantes de giro e, consequentemente, de ruído, gritando quase como em uníssono. A estranheza é tanta que algumas fabricantes camuflam o funcionamento do CVT com a chamada “simulação de marchas”, emulando pequenos “trancos” em determinadas mudanças de giro.
A adaptação para o carro de F1
Imagine agora esse mesmo processo ocorrendo em um Renault V10 da F1. Ficou bizarramente estranho. David Coulthard, então piloto de testes em Grove, foi responsável por testar a novidade no circuito de Pembrey, País de Gales, em julho de 93. O vídeo abaixo (também em inglês) conta um pouco do que foi o treino. Veja e, principalmente, ouça o ruído (e você reclamando dos atuais V6 turbo):
Parece que o carro está travado em um marcha e não atinge tanta velocidade, não? Isso à parte, o fato é que Coulthard elogiou muito o comportamento do monoposto após a sessão, especialmente porque, sem os trancos provocados pela troca de marchas (sentidos de forma ainda mais abrupta em pista molhada, condição sob a qual o escocês treinou), as tomadas de curva ficaram muito mais “suaves”. Seria o prenúncio de um domínio ainda maior da Williams, usando um conjunto que, além de todos os refinamentos, conseguiria entregar toda a força do motor de maneira plena e constante?
A FIA não quis pagar para ver. Após tomar conhecimento dos testes (um segundo foi conduzido pelo francês Alain Menu, dois meses depois, em Silverstone), a entidade se mobilizou e acrescentou no regulamento técnico para 94, já muito mais restritivo, que o sistema de transmissão precisava ser formado por relação mínima de duas e máxima de sete velocidades, com trocas efetuadas manualmente pelos competidores. Estava morta, portanto, a ideia de implantar o CVT.
A grande dúvida é: daria certo? Embora muitos teorizem que a Williams ampliaria sua vantagem frente às rivais, é preciso lembrar que a transmissão continuamente variável também possui muitos problemas; por ter relações quase infinitas, o câmbio às vezes se perde e demora em chegar ao regime certo; andar sempre próximo ao limite de potência significaria aumentar exponencialmente o índice de desgaste, comprometendo a confiabilidade; a durabilidade do próprio câmbio costuma ser menor, especialmente quando falamos de um motor de mais de 700 cv (não é à toa que, hoje, o CVT é usado basicamente em veículos de baixa cilindrada e potência); o peso do sistema também era muito maior, o que poderia comprometer o equilíbrio do chassi.
Como se vê, o sucesso do CVT na F1 não era algo garantido, embora possível e até plausível. Saber o que poderia ser conquistado com ele virou exercício de imaginação, e é melhor que seja assim: ao ouvir como soariam os carros com essa tecnologia, dá até um certo alívio constatar que, apesar dos pesares, o barulho de um F1 atual continua “normal” aos nossos ouvidos. Tudo graças à tão criticada transmissão automatizada.
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