Como a F1 pretende contra-atacar os elétricos na próxima década
O carro está mudando. Tanto em sua tecnologia como na imagem que tem na sociedade. E isso, claro, tem um efeito direto também no automobilismo, incluindo sua principal categoria, a F1.
Efeito Estufa, poluição nas grandes cidades e o formato da mobilidade em geral estão na pauta de governos, entidades internacionais e obviamente das montadoras, angustiadas com o futuro do mercado automotivo.
E como o esporte fica nisso tudo? A F1 por diversas vezes em sua história mostrou preocupação em se manter relevante para o mercado automotivo e no desenvolvimento de tecnologias que contribuam com o meio ambiente. Na última década, isso se acentuou. Em 2009, o Kers, sistema de recuperação de energia, foi experimentado pela primeira vez, sem muito sucesso dentro da competição, mas já passando o recado sobre para onde todos estavam caminhando.
FIA e F1 não desistiram de sua revolução e em 2014 vieram com um regulamento bastante ousado, com o retorno do Kers, agora chamado de MGU-K, que recupera a energia cinética dissipada nas freadas, e a chegada de um segundo sistema, o MGU-H, que recupera energia utilizando a saída de gases do escapamento para girar a turbina. O pacote ainda incluiu um motor bem menor do que o utilizado antes, de seis cilindros com 1,6 litro, e a volta do turbo.
O mais impressionante é que a F1 provou que poderia manter e até mesmo aumentar a potência dos seus carros em relação à geração anterior de propulsores, V8, e diminuir drasticamente o consumo de combustível, em torno de 40% em relação a 2013.
Só que muito desta tecnologia, talvez a mais avançada empregada em qualquer competição no mundo, ficou sobre um eclipse de uma série de fatores que colocaram os motores 100% elétricos no centro das atenções sobre a próxima geração do carro, dentro e fora das pistas.
No mesmo 2014, surgiu, com grande apoio da FIA, a Fórmula E, categoria de monopostos elétricos. Nos anos seguintes, vieram o dieselgate (escândalo de fraude do nível de poluentes emitidos por modelos no mercado que abalou principalmente a Volkswagen, mas que já chegou a outras empresas) e uma série de regulamentações, principalmente na Europa, que visam proibir veículos movidos a gasolina, diesel ou até mesmo a combustão no geral. O último a anunciar este tipo de medida foi o Reino Unido, casa das principais equipes de F1, que pretende banir carros a gasolina ou diesel até 2035.
Economicamente, as medidas europeias também fazem muito sentido. O continente hoje importa aproximadamente 85% do petróleo que consome. Ou seja, se livrar desta dependência seria um ótimo negócio.
Como resposta à sociedade e ao mercado, as principais montadoras do mundo saíram correndo para desenvolver modelos de rua 100% elétricos. E o marketing delas acompanhou. A Fórmula E, mesmo tendo oito vezes menos alcance de público do que a F1, se tornou o alvo, ainda mais por seu custo bem mais baixo em relação. Hoje, são oito marcas participantes.
E no meio de tudo isso, ficou a F1, com sua “obra de arte da engenharia” empurrando os carros pelo mundo, só que sem qualquer apelo ambiental e com custos extremamente elevados.
Muito se falou em adoção de motores elétricos, porém, a Fórmula E possui um contrato de exclusividade para categorias de monopostos com rodas abertas que vai até 2039. Como fica a F1 nessa mudança toda de conceitos, então?
O que está sendo estudado para a F1
Os novos donos dos direitos comerciais do Mundial, o Grupo Liberty, que também tem participação grande nas ações da Fórmula E, acreditam que podem virar o jogo para a F1. Tudo requer o desenvolvimento de uma tecnologia que faça sentido dentro deste novo mundo, que produza um bom show para os espectadores que gostam do esporte e seja acompanhada da comunicação marketing certos para divulgá-la.
A ideia original era que dentro da grande revolução das regras técnicas e financeiras pela qual a F1 passará em 2021, o motor recebesse uma simplificação para baratear o custo e atrair novas montadoras. A princípio a categoria iria eliminar o MGU-H, pouco utilizado na indústria automotiva. Só que nenhuma marca nova se interessou e o projeto foi cancelado, com os atuais propulsores sendo mantidos por mais algum tempo.
Só que se o passo inicial era um ajuste apenas para baixar o custo. O olhar agora está em um processo que começa com pequenas mudanças para chegar a uma grande transformação em cinco anos. Em 2025, teremos certamente um novo formato de motor na F1. Um grupo de engenheiros formado pelo Liberty, que já foi responsável pelo novo regulamento de 21, está estudando as diversas possibilidades. E recentemente, um velho conhecido dos fãs do automobilismo e principalmente do motociclismo apareceu como um bom candidato.
“Estou muito inclinado a adotar o [motor]dois tempos”, declarou Pat Symonds, engenheiro com passagem por diversas equipes e que hoje é chefe do grupo técnico da F1. “É muito mais eficiente, tem um ótimo barulho do escapamento e muitos dos problemas dos antigos dois tempos não são mais relevantes”, continuou, em uma conferência na Associação da Indústria do Automobilismo, na Inglaterra, em janeiro.
Mas como um motor dois tempos, formato antigo e rejeitado nas últimas décadas, pode ser a solução para deixar a F1 ainda mais verde? A resposta não é simples e requer na verdade a montagem de um grande pacote ao seu entorno.
Para começar, é preciso entender que estamos falando aqui de um projeto muito grande de zerar a pegada de carbono da F1 até 2030. E isso inclui tudo: não só a emissão dos carros, mas produção de resíduos e emissão de poluentes nos eventos, nas fábricas das equipes, no transporte para cada GP e por aí vai. Desta forma, quando falamos também do motor, temos que considerar todo o processo, desde sua fabricação, passando por sua utilização, até seu descarte.
O motor elétrico utilizado na Fórmula E realmente emite muito, mas muito menos dióxido de carbono do que um propulsor a combustão. Na pista, é zero. Só que estudos mostram que a sua fabricação causa grande impacto ambiental (cerca de oito vezes mais do que veículos convencionais a combustão), principalmente por conta de matérias relativamente raras utilizadas nas baterias, como o lítio, que passam por processo de mineração e industrialização.
Até por isso, um dos maiores investimentos de empresas ligadas aos carros elétricos, como a Tesla, está no desenvolvimento de baterias com maior vida útil (já se fala em 25 anos). Assim, com a maior utilização, ela compensa esse procedimento inicial. É preciso destacar que mesmo com o problema, hoje os carros elétricos, incluindo fabricação e utilização, já emitem menos da metade do CO2 de um veículo a combustão se considerados todos os anos de vida útil de ambos.
Em um segundo momento, temos a produção de energia para as baterias. Em países com matriz limpa, como vários europeus que já utilizam produção eólica, solar e outras renováveis, e até mesmo o Brasil, que tem boa parte da energia vindo de hidroelétricas, isso nem é tanto um problema. Porém, em diversos casos, existem lugares, como o sul dos Estados Unidos, que boa parte da produção vem de termoelétricas que queimam combustíveis fósseis como diesel e carvão. Desta forma, acontece um deslocamento da poluição (com significativa diminuição) do carro para uma planta industrial.
E a Fórmula E é um bom exemplo deste problema. A bateria dos carros nos ePrix é alimentada por geradores baseados nos que queimam diesel (que podem ser vistos em muitos prédios para emergências), mas adaptados para consumir glicerina. O composto emite consideravelmente menos CO2, porém, tanto o processo para se chegar do produto glicerina (que nada mais é do que um biocombustível) como sua queima nas etapas possui produção do poluente.
A F1 quer neutralizar todo o processo e se tornar ainda mais “limpa” do que a Fórmula E, mesmo utilizando até o começo da década de 30 um motor a combustão de hidrocarbonetos (o que deve ser o último, antes de uma nova mudança).
O motor dois tempos é uma peça simples, eficiente na utilização da energia e mais potente. Ao contrário do seu irmão mais utilizado, o quatro tempos, foi deixado de lado pela indústria por ser considerado mais poluente e também mais difícil para conduzir.
De forma resumida, a diferença básica é que ele precisa de apenas duas rotações do pistão para o ciclo admissão, explosão e exaustão (por isso o nome) enquanto o concorrente necessita de quatro. Isso acontece porque o combustível já entra na câmara de combustão do cilindro quando o pistão desce e os gases saem pelo escape. No quatro tempos, as válvulas só liberam a entrada no ponto morto do pistão, quando ele sobe após os gases saírem. Isso já faz com que a eficiência na produção de energia do 2T seja 50% maior.
Só que em seu formato tradicional, existem muitos problemas, principalmente para quem tem objetivos ecológicos. O óleo lubrificante já precisava ser misturado ao combustível, o que aumenta a emissão de gases poluentes. Também existe muito desperdício, pois a entrada da gasolina ou etanol é controlada pelo sobe desce do pistão e não por válvulas, o que faz com que muito do líquido vá embora pelo escape.
Como utilizar uma pela dessas? Novas tecnologias diminuíram consideravelmente esses problemas como utilização de pistões opostos, sistemas de injeção direta, válvulas eletrônicas nas janelas de transferência, modelos de ignição mais eficientes e isolamento do cárter (o que dispensa a necessidade da mistura com lubrificantes, que passa ser controlada pela ECU). Passamos a ter um dois tempos que mantém seu alto aproveitamento de energia na conversão em potência só que com nível de consumo muito melhor e desperdício mais próximo dos quatro tempos.
“Eu acho que motores com combustão interna têm um longo futuro e acho que um futuro mais duradouro do que vários políticos acreditam, pois os políticos estão apostando tudo nos veículos elétricos. Não tem nada de errado com veículos elétricos, mas existem razões para eles não serem a solução para todos”, explicou o empolgado Symonds sobre a alternativa em estudo.
Mesmo com essas novas técnicas, é preciso pontuar que a volta dos motores dois tempos não é algo simples. Outras tentativas foram realizadas desde os anos 90 sem sucesso, principalmente pelo ainda déficit em relação aos elétricos. Nas motos existe algum movimento no sentido, com um lançamento sucesso da KTM em 2017 que está sendo seguido por algumas concorrentes. Mesmo assim, é preciso entender se as montadoras que participam do Mundial compram a ideia.
O que faz do projeto da F1 promissor é colocar nesta receita a maior utilização do turbo e sistemas de recuperação de energia ainda mais eficientes. Desta forma, praticamente não será necessário utilizar queima para fazer o carro andar nas mesmas velocidades das de hoje – só que com um barulho mais atraente.
Combustível terá papel importante
Não é só a arquitetura do motor, mas o que vai nele. Para fazer com que a nova geração de propulsores seja tão ou até mais eficiente que carros elétricos, a F1 está de olho em uma trajetória que começa com adição de biocombustíveis em proporção cada vez maior já a partir de 2021 até a adoção dos sintéticos em 2025.
Empresas como Audi e Bosch estão bastante envolvidas no desenvolvimento deste tipo de produto, que pode ajudar nas próximas décadas na transição do modelo dos carros a combustão para os elétricos. Isso por considerar que muitos dos veículos que estarão nas ruas ainda utilizarão a tecnologia atual e reaproveitar o sistema de distribuição que temos hoje (o bom e velho posto de gasolina).
Os combustíveis sintéticos, chamados também de e-gasolina ou efuel (no inglês), são queimados no motor como hoje e emitem dióxido de carbono como qualquer equipamento atual. Onde está a vantagem? Na produção. Eles são produzidos utilizando CO2 da própria atmosfera, o que fecha um ciclo de emissões e neutraliza a fórmula.
O processo utiliza hidrogênio retirado da água em um processo de eletrólise. Em uma segunda reação, ele é misturado com o CO2 da atmosfera para se produzir primeiro um gás sintético, que em um segundo momento se torna um líquido, chamado de Blue Crude, com aparência próxima à gasolina. Este vai para o tanque do carro. Para todo o procedimento, a energia utilizada em cada um dos estágios deve ser renovável, como eólica ou solar, para manter equação neutra.
A ideia não é nova e já está em pesquisa há algumas décadas, porém, nunca foi vista como economicamente viável pela complexibilidade de seus processos. Só que a evolução das tecnologias com novos equipamentos e técnicas aliada com a necessidade de redução da emissão de CO2 de forma mais imediata está abrindo possibilidades mais promissoras.
Sendo assim, com um motor de baixíssimo consumo e emissão e utilizando um combustível neutro, em um pacote que proporciona uma boa experiência aos fãs com potência e barulho, a F1 estuda um caminho para bater de frente com concorrentes elétricos para pelo menos os próximos 15 anos. Aí sim, na segunda metade da década de 30, avançar em algo ainda mais revolucionário como a utilização de veículos movidos a hidrogênio ou novas tecnologias que podem surgir neste meio tempo para substituição definitiva da queima de hidrocarbonetos.
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