Lewis Hamilton optou por continuar com seu número 44 após seus títulos
(Foto: Steve Etherington/Mercedes)

Como o domínio de Hamilton na Mercedes subverteu uma lei matemática

Grandes pilotos batem marcas, recordes e muitas vezes até vão contra as probabilidades ao vencerem corridas em que não eram favoritos. Nos últimos anos, porém, Lewis Hamilton resolveu ir de encontro a uma lei da matemática desenvolvida há 140 anos. Seu feito tem mais a ver com uma escolha pessoal de não utilizar o número 1 após seus títulos do que ao resultados, mas claro que sem os triunfos e campeonatos, ele não estaria derrubando essa constante.

O ano era 1881. Em meio às efervescentes transformações sociais do fim do século XIX – abolições do escravagismo ao redor do mundo, dissoluções de antigos impérios e reinados, fortalecimento de repúblicas e formação de novos países –, o astrônomo canadense Simon Newcomb consultava de maneira plácida um livro de logaritmos, muito comum na época.

Em tempos nada digitais, os livros de logaritmos serviam de calculadora. Eles vinham recheados de tabelas e mais tabelas com cálculos matemáticos, geralmente multiplicações, que pareciam não ter fim. Eu, ao manusear um, provavelmente sentiria sono, mas Newcomb estava alerta o suficiente para se atentar a um padrão que, depois, perceberia em todos os outros livros de logaritmo que observou.

As primeiras páginas, formadas por cálculos iniciados pelos dígitos 1 e 2, estavam sempre mais desgastadas do que as últimas, que continham multiplicações envolvendo numerações iniciadas por 8 ou 9. Após meses de observações e pesquisas, ele escreveu um livro intitulado “Anotações das frequências de diferentes dígitos em números naturais”.

Naquela obra, o astrônomo sugere que as coleções de números naturais usados espontaneamente pela humanidade tendem a seguir sempre uma regra nas quais o 1 será o primeiro dígito com mais frequência do que o 2 e este, do que o 3, e assim sucessivamente até chegarmos ao 9. Pelos cálculos do cientista, a proporção aproximada seria a seguinte:

A proporção de dígitos iniciais dos números naturais, segundo Simon Newcomb
1 – 30%
2 – 18%
3 – 12%
4 – 10%
5 – 8%
6 – 7%
7 – 6%
8 – 5%
9 – 4%

Tal pesquisa não foi levada muito a sério e caiu no ostracismo até 1938, quando, no sopé da II Guerra Mundial, o físico americano Frank Benford identificou a mesma tendência em outro estudo, nominado “A Lei dos Números Anômalos”.

Benford foi ainda mais abrangente e constatou que a regra valia para absolutamente tudo: o conjunto de numerações de imóveis de uma rua; populações de cidades ou país; folhas de pagamento de uma empresa; dados de extensão de todos os rios do planeta; estatísticas políticas, econômicas ou esportivas etc. Absolutamente em todos os conjuntos de números naturais a proporcionalidade se aplicaria.

Mais famoso e bem-sucedido que Newcomb (e talvez por conta da nacionalidade), o físico levou todos os créditos pela descoberta, incluindo a honra de ter o seu sobrenome usado para batizá-la: lei de Benford, que também pode ser chamada de lei do primeiro dígito, lei dos números anômalos ou, mais recentemente e com o mínimo de justiça, lei de Newcomb-Benford.

Hoje muito difundida entre matemáticos, a lei pode ser demonstrada através de um gráfico de características famosas entre os profissionais da área, como ilustra a imagem abaixo. Ela vem sendo muito usada em tempos recentes para ajudar a descobrir fraudes fiscais ou até eleitorais, por exemplo.

E o que Hamilton e a F1 tem a ver com isso?

Se a lei é universal, também vale no automobilismo e sua principal categoria. Não acredita? Do GP da Grã-Bretanha de 1950 até o do Bahrein de 2021, momento depois do qual este artigo foi produzido, os números usados pelos pilotos em todas as inscrições de eventos oficiais da F1 possuem a seguinte frequência de dígitos iniciais:

Números começados por 1 – 8.582 inscrições ou 32,46%
Números começados por 2 – 7.128 inscrições ou 26,96%
Números começados por 3 – 3.458 inscrições ou 13,08%
Números começados por 4 – 1.585 inscrições ou 6%
Números começados por 5 – 1.243 inscrições ou 4,7%
Números começados por 6 – 1.098 inscrições ou 4,15%
Números começados por 7 – 1.140 inscrições ou 4,31%
Números começados por 8 – 1.113 inscrições ou 4,21%
Números começados por 9 – 1.057 inscrições ou 4%
Números começados por 0 – 34 inscrições ou 0,13%

Não bate totalmente com as médias indicadas pela lei de Benford-Newcomb, mas se aproxima de maneira assustadora, não é mesmo? Ainda mais quando jogamos esses mesmos dados em um gráfico e ele surge assim, tão “benford-newcombiano” quanto possível:

Espera-se, então, que a mesma lógica apareça nas estatísticas de vitórias, pole positions e pódios por número, certo? Desta vez, a resposta é “Errado”. E dois dos principais culpados disso são Lewis Hamilton e a Mercedes.

Desde 2014, quando entrou em vigor uma nova regra estabelecendo o uso de uma numeração fixa para cada piloto ao longo de toda a carreira na categoria, o Hamilton passou a usar o #44 e não abriu mais mão dele, mesmo tendo o direito, como campeão de seis das sete temporadas disputadas desde então, de usar o #1 se quisesse.

Nas estatísticas de vitória, por exemplo, os impressionantes 74 triunfos obtidos por Hamilton na era híbrida da F1 com o #44 fizeram o dígito 4 superar o 3 nos percentuais de vitórias por dígito inicial da numeração do piloto vencedor. Confira na tabela e no gráfico:

Vitórias na F1 – por dígito inicial do número
1 – 330 (31,95%)
2 – 172 (16,65%)
3 – 82 (7,94%)
4 – 111 (10,75%)
5 – 147 (14,23%)
6 – 75 (7,26%)
7 – 38 (3,68%)
8 – 47 (4,55%)
9 – 22 (2,13%)
0 – 9 (0,87%)

O curioso é que o dígito 5 possui estatística ainda mais distorcida que o 4, seguindo os preceitos da lei de Newcomb-Benford. Este é reflexo de uma circunstância parecida: entre 1973 e 95, havia também um regulamento de numeração fixa na categoria, com a diferença de que, em vez de ser por piloto, ocorria por equipe.

Na época, calhou de o #5 ser costumeiramente usado por times que brigavam por vitórias e títulos, como a Lotus em 1977 e 78, a Brabham em 1980, 81 e 83, a Benetton de 93 a 95 e, principalmente, a Williams em 1982, de 84 a 92 e em 95 e 96. Desde a implantação da atual regra, tal número vem sendo usado por Sebastian Vettel, que obteve algum punhado de vitórias no período com a Ferrari.

Sebastian Vettel foi o último piloto a utilizar o número #1 na F1 em 2014 (Foto: Getty Images / Red Bull Content)

Pelo mesmo motivo, o dígito 6 aparece com certa força nos gráficos de títulos, vitórias, poles e pódios, quase sempre superando ou igualando o dígito 3. Este durante muitos anos pertenceu à Tyrrell, que raramente brigava no pelotão de cima. É o que o deixa atrás dos números 4, 5 e 6 em quase todas as estatísticas acima mencionadas. Por isso suas estatísticas de vitórias, títulos, poles e pódios não são tão fortes. Veja as tabelas:

Títulos na F1 por dígito inicial do número
1 – 26 (39,39%)
2 – 13 (19,7%)
3 – 3 (4,55%)
4 – 7 (10,61%)
5 – 10 (15,15%)
6 – 6 (9,09%)
7 – 1 (1,52%)
8 – 0
9 – 0
0 – 0

Poles na F1 por dígito inicial do número
1 – 352 (34,96%)
2 – 188 (18,67%)
3 – 64 (6,36%)
4 – 106 (10,53%)
5 – 137 (13,60%)
6 – 60 (5,96%)
7 – 45 (4,47%)
8 – 31 (3,08%)
9 – 20 (1,99%)
0 – 4 (0,40%)

Pódios na F1 por dígito inicial do número

1 – 883
2 – 641
3 – 265
4 – 287
5 – 329
6 – 266
7 – 200
8 – 138
9 – 79
0 – 21

Como dito, para que Hamilton e Mercedes tivessem subvertido a lei de Benford-Newcomb, foi preciso a brecha de permitir que o piloto campeão escolha se quer correr no ano seguinte com o #1 ou se deseja permanecer com o seu número pessoal, algo que Lewis tem feito em todos os anos de seus títulos pela escuderia germânica.

Caso Hamilton tivesse sido forçado a adotar o #1 nos anos de 2015, 16, 18, 19, 20 e 21, 54 de seus triunfos pela Mercedes teriam trocado de dígito inicial, reforçando a liderança do 1 nas estatísticas e fazendo o 4 ficar para trás dos dígitos 3 e 6 nos percentuais. O mesmo aconteceria caso subtraíssemos quatro títulos, 49 poles e 83 pódios no período, diante do mesmo cenário hipotético.

Da mesma forma, a Williams ajudou a desvirtuar os gráficos em favor do dígito 5 nos anos 80, mas por outra singularidade: ela raramente mantinha os pilotos campeões no ano seguinte. Ao permitir a saída de Nelson Piquet em 88, Nigel Mansell em 93, Alain Prost em 94 e Damon Hill em 97, abdicou também do uso do #1, que foi parar em outros times ou simplesmente sumiu do grid, como em 93 e 94.

Simon Newcomb e Frank Benford podem até ter revolucionado o universo matemático e da contabilidade, mas na F1 a descoberta de ambos foi subvertida pela genialidade de Lewis Hamilton e pela quase irritante eficiência da Mercedes, além das peculiaridades do regulamento de numeração fixa, que parece não ser lá muito amiga dos números anômalos.

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