Ferrari: filme foca em crise para contar como pensava o homem
O fã do automobilismo tem mais uma obra hollywoodiana nos cinemas para assistir. O filme Ferrari ficou em produção por mais de 20 anos, enquanto o seu diretor, Michael Mann, realizou estudos sobre a vida de Enzo, fundador da empresa, para escolher a melhor de forma contar sua história.
A escolha de forcar em um momento bastante específico é interessante. Assim, o filme se concentra em uma história com menos sobressaltos temporais do que correr mais do que os carros da Ferrari por uma vida cheia de “causos” que durou 90 anos.
A produção coloca o ex-corredor, chefe de equipe e empresário, que ganhou tudo que poderia na vida, em uma posição defensiva. Assim, ele tentou mostrar como Ferrari reagiu para salvar sua empresa e equipe que leva seu sobrenome, enquanto ainda atravessava mares bastante turbulentos. E no final das contas, se existia algo que Enzo gostava era de um bom embate.
Antes de entrarmos agora nos detalhes do filme, como sempre fazemos quando falamos de cinema aqui no Projeto Motor, gostamos de lembrar que a ideia deste conteúdo não é fazer uma crítica tradicional da produção do ponto de vista artístico, já que, apesar de adorarmos cinema e séries, existem outros veículos que já realizam essa análise.
Nosso papel aqui é da posição de quem gosta de corridas, aproveitando mais esse lançamento que coloca o automobilismo em destaque para contarmos mais uma bela história do esporte a motor.
Outro ALERTA IMPORTANTE é para a possibilidade SPOILERS, já que vamos comentar aqui a história real e algumas escolhas de roteiro, o que, para quem quer assistir ao filme sem conhecer os fatos, pode estragar um pouco a experiência. Por isso, se você se encaixa nesse perfil, pare de ler o texto aqui, favorite ou guarde o link, e volte depois de sua sessão no cinema.
O homem Ferrari e suas dificuldades
O filme se passa durante o ano de 1957, um momento muito difícil para Enzo Ferrari. A decisão é uma tentativa de mostrar como o personagem principal lidava com seus problemas e, assim, revelar um pouco mais sobre o ser humano e sua personalidade que existia por trás do famoso e icônico chefe da marca italiana.
Podemos pontuar com alguma tranquilidade que o Enzo interpretado por Adam Driver é bem mais refinado do que o documentado na vida real. Existem várias obras e testemunhos que apontam o comendador como uma pessoa difícil, por vezes estúpida com os outros (especialmente seus pilotos) e que não tinha vergonha de berrar ou se portar mal na mesa com convidados através de palavreado e gestos obscenos.
O filme ainda pontua que ele tinha casos extraconjugais, mas mostra uma pessoa apaixonada por sua amante, Lina Lardi, diante de um esfacelado casamento com Laura Ferrari. Bem, não temos como julgarmos os sentimentos íntimos de Ferrari, porém, ele nunca escondeu que tinha diversas namoradas fora do casamento e, seguindo muito a cultura machista italiana da época, chegava a ter três ou mais casos ao mesmo tempo.
No próprio livro no qual o filme se baseia, “Enzo Ferrari: O homem e a máquina”, de 1991, o autor Brock Yates afirma que o empresário chegou a dizer ao chefe de corridas de sua equipe, Romolo Tavoni, que todo homem deveria ter duas esposas. Importante pontuar também que a relação com Lardi seguiu até sua morte, em 1988, mesmo não impedindo que ele tivesse vários outros casos durante todo esse período.
Já o casamento com Laura, como no filme, era realmente complicado. Existem diversos jornalistas que afirmam que Enzo só se casou com ela porque acreditava que a imagem de ter uma vida particular estável com uma esposa ajudaria em sua carreira.
Como a vida particular deles foi muito pouco documentada, boa parte das cenas foram idealizadas pelo diretor Mann como uma forma de resumir como era a relação atribulada que eles mantinham. Por exemplo, não existem relatos confiáveis de que alguma vez Laura realmente apontou uma arma contra Enzo.
Por outro lado, a esposa de Ferrari realmente participou ativamente da administração da empresa. Principalmente após a morte do filho deles, Dino, um ano antes dos acontecimentos do filme.
O primogênito de Ferrari perdeu a vida aos 24 anos, vítima de uma doença degenerativa que lhe causou distrofia muscular. O luto do casal é muito bem retratado na produção, pois é sabido o grande impacto que a perda de Dino teve para ambos. No caso de Enzo, pela maneira como via o mundo, o filho tinha um lugar muito especial em sua vida.
Ferrari chegou a escrever em 1961 que “quando um homem diz para uma mulher que a ama, ele apenas quer dizer que a deseja. E que o único amor perfeito deste mundo é o de um pai por seu filho.” John Nikas, escritor e historiador do Hall da Fama do Automobilismo Britânico, afirmou em uma publicação que os únicos amores reais de Enzo em sua vida eram as corridas e Dino”.
Mais uma vez, a escolha de situar a história no ano de 1957, meses depois da morte do filho de Enzo, ganha força. E isso ainda dentro de um outro contexto que – teoricamente – afligia o comendador.
A atuação de Driver, é preciso ser dito, apesar de não representar de forma tão fidedigna o comportamento de Enzo, é focada em uma postura de olhar e trejeitos que mostram o empresário sempre com o olhar para frente, focado em resolver seus problemas no momento certo, e de olho no que ainda estava por vir.
Se olharmos tudo o que já foi publicado sobre o comendador, essa leitura mostra de fato como ele pensava. O que para a romantização da história, acaba se encaixando melhor na ideia de mostrar como Enzo lidou com uma fase específica de dificuldades em vez de querer resumir todo o seu universo em duas horas de tela.
A situação da empresa
A situação financeira frágil pela qual a Ferrari passava é uma das histórias paralelas contada no filme. Enzo Ferrari tinha uma paixão por corridas, mas nunca teve o interesse em criar uma montadora. Isso aconteceu como um negócio para gerar receita a ser gasta da equipe de competição.
Essa visão fica clara no próprio filme, quando o empresário grita que é diferente dos rivais que correm para vender carros, pois ele vendia carros para poder correr. Esse sentimento sempre foi real.
E Laura volta a ser uma personagem central nesta busca para equilibrar as contas. Na vida real, para construir o primeiro carro da marca, sem falar com o esposo, ela penhorou um presente de casamento que tinha recebido dele e investiu o dinheiro na empresa. Isso é a prova de como o casal sempre formou também uma sociedade na empresa.
A questão dos U$ 500 mil que é mostrada no filme, até onde se tem documentação histórica, nunca aconteceu, mas mais uma vez é um provável recurso narrativo de Mann para mostrar como Laura ajudava e se envolvia no que podia, seja na administração ou para convencer o marido a tomar decisões importantes.
A Ferrari se arrastou por muitos anos em dificuldades financeiras. Porém, até onde se sabe, ainda não existiam negociações para uma venda naquele momento, em 1957, como o filme chega a mostrar em um telefonema entre Gianni Agnelli, dono da Fiat, e Enzo.
Esse processo começaria apenas a partir de 1963, quando a Ferrari esteve próxima de ser vendida para a Ford, mas Enzo recuou na última hora. Esse fato, inclusive, motivou os americanos a criarem um projeto de competição para derrotar a Ferrari em Le Mans, história contada no filme “Ford vs Ferrari” e que também já abordamos aqui no Projeto Motor.
Após a negociação fracassada com a Ford (que não abria mão de uma palavra final das escolhas de onde a equipe Ferrari poderia competir), 50% da pequena montadora de Maranello seria vendida para Fiat, em 69, o que acabaria para sempre com os problemas financeiros da empresa.
As mortes dos pilotos
Entre os vários problemas que Enzo Ferrari enfrentou no final da década de 50 retratados no filme, as seguidas mortes de seus pilotos é um dos mais reais. E olha que a produção até deixa passar mais alguns casos que aconteceram na época.
Apenas dois anos antes da história contada, em 1955, o bicampeão mundial Alberto Ascari morreu em um teste com um carro esporte da Ferrari em Monza. Depois, Eugenio Castellotti realmente perdeu a vida durante uma sessão no circuito de Modena, como foi encenado.
Durante a história, ainda passam em cena os pilotos Peter Collins e Luigi Musso. O filme não conta, porém, ambos morreriam apenas um ano depois, durante a temporada de 1958 da F1, competindo pela Ferrari.
Mike Hawthorn, que é apresentado por Enzo à imprensa em outra sequência como futuro campeão mundial, ficou com o título de 58. Mas ele também morreu, meses depois, em janeiro de 59, mas dessa vez em um carro de passeio na Inglaterra, sem ligação com a Ferrari. Já contamos os detalhes desta trágica história aqui no Projeto Motor.
Na mesa de pilotos que almoçam com Enzo, ainda está na cena Wolfgang von Trips, que morreu no GP da Itália de 1961 também competindo pela Ferrari.
Chegamos então a Alfonso de Portago, que se torna um dos personagens secundários com mais tempo de tela. Ao contrário do que acontece no filme, ele já vinha pilotando pela Ferrari desde 56. O piloto era um aristocrata e bon-vivant, neto do Marquês de Portago e afilhado do rei da Espanha, Alfonso XIII.
Além de piloto, ele também era jóquei amador, e foi um dos integrantes da primeira equipe de bobsled da Espanha, competindo inclusive dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1956 em Cortina d’Ampezzo. Existem relatos da preocupação de Enzo de perder o piloto machucado por conta deste evento.
Apesar de rápido e talentoso, Portago também era conhecido por forçar muitos seus carros, o que terminava em diversas quebras mecânicas. Ele participou de seis corridas da F1 entre 1956 e 57.
No filme, é mostrado ele dando lugar a Collins durante uma prova, o que era permitido no regulamento da época. Esse evento aconteceu, no entanto, no GP da Grã-Bretanha de 1956, fora do período mostrado na produção. Em 57, no entanto, ele entrou no lugar do argentino Jose Froilan Gonzalez durante o GP da Argentina.
A importância da Mille Miglia para a Ferrari e seus pilotos era real. A prova era realizada em estradas entre as cidades de Brescia e Roma. Ao lado da Targa Florio, também na Itália, e da Carrera Panamericana, no México, era considerada uma das corridas de estrada mais desafiadoras na época.
Inclusive, naquela temporada de 57, ainda fazia parte do Mundial de Esporte-Protótipos (precursor do Mundial de Endurance – WEC), junto, por exemplo, das 24 de Le Mans e das 12 Horas de Sebring.
O acidente fatal de Portago aconteceu em situação bastante semelhante com a do filme, quando o espanhol seguia para fechar uma quadra da Ferrari nas quatro primeiras colocações. A batida aconteceu a menos de 50 Km da linha de chegada e seus companheiros o aguardavam para a celebração em equipe.
Além do piloto espanhol e seu navegador, Edmund Gunner Nelson, nove espectadores que estavam à beira da pista morreram, incluindo cinco crianças. O corpo de Portago foi encontrado dividido ao meio.
Três dias depois da prova, o governo italiano proibiu qualquer corrida em estradas no país, o que significou o fim da Mille Miglia, que acontecia desde 1927. A prova voltou em 77, porém, apenas com carros históricos e em formato de corrida de regularidade, com velocidades controladas.
Enzo enfrentou uma série de questionamentos públicos sobre a morte e processos judiciais. Em 1961, após uma investigação comprovar que um estouro do pneu causado por uma variante externa (pedra, buraco ou algum outro artefato na estrada) ter sido a causa do acidente, ele foi absolvido das acusações na justiça.
Ferrari nunca aceitou, porém, como a impresa italiana o tratou e cobria esses problemas. Inclusive, ele ajudou financeiramente na criação em 1961 da revista Autosprint, que ainda hoje é uma das mais renomadas da Itália, para incentivar um veículo específico sobre automobilismo, como já existiam na Inglaterra. O filme dá a entender que essa ação estava por vim através de uma sugestão de Laura para comprar jornalistas.
De qualquer maneira, a relação de Enzo com seus pilotos foi de altos e baixos. Ele sempre colocou as vitórias de sua equipe acima de qualquer triunfo individual de seus ases. É de conhecimento público que ele tinha o costume de jogar seus pilotos uns contra os outros para tirar algo a mais deles.
O limite era quando uma vitória da Ferrari poderia entrar em perigo, o que várias vezes o fez intervir e decidir quem teria preferência e vantagens dentro do time.
Piero Ferrari
O arco de Piero é um dos mais interessantes dentro do filme, mesmo que parecendo por boa parte ter ficado em segundo ou até terceiro plano. Toda a situação de Piero e sua mãe, morando escondidos em uma casa em Castelvetro di Modena, é real.
Até o lançamento do filme, sabia-se que Enzo manteve a existência do filho fora do casamento em segredo por muito anos. Na biografia escrita por Yates, o autor afirma que Laura descobriu tudo “algum momento do final dos anos 50”. Isso já seria suficiente para uma licença poética do roteiro do filme posicionar a situação naquele ano de 57 para amarrar as várias histórias paralelas que aconteciam no entorno de Ferrari.
Só que um novo depoimento ao canal do YouTube da Ferrari do próprio Piero, herdeiro de 10% das ações da empresa que tinham ficado com a família e hoje vice-presidente da marca, ele afirma que Laura realmente ficou sabendo de sua existência em 1957, exatamente como é contado na produção.
“Naquele ano, foi descoberto que meu pai tinha duas famílias. Uma era com sua esposa Laura e o filho, Dino, que morreu um ano antes, e a segunda que era eu e minha mãe, Lina”, contou o herdeiro.
O filme deixa entender que Enzo não deu seu sobrenome a Piero porque Laura pediu que ele não o fizesse. Só que a questão não era bem essa. Na época, divórcio não era permitido na Itália. Por isso, o comendador legalmente não poderia admitir que tinha filhos fora do casamento.
Tanto que Piero Lardi passa a ter oficialmente o sobrenome Ferrari a partir de 1978, após a morte de Laura, quando Enzo fica livre das amarras jurídicas. Em 1990, dois anos após a morte de Enzo, Piero mudou novamente seu nome legal para apenas “Piero Ferrari”.
Em 1969, aos 24 anos, ele começou a trabalhar na Ferrari, a princípio como um tradutor de inglês do pai. Os encontros com Laura dentro da empresa eram inevitáveis, e, segundo relatos, ela sempre gritava “Bastardo!” para ele.
Durante os anos 70, ele passou pela equipe de F1 como assistente do chefe do time, Luca di Montezemolo, e depois, na década de 80, se tornou coordenador dos projetos especiais de carros de rua, contribuindo nos modelos Ferrari F40, Ferrari F50 e LaFerrari, focados em exclusividade e pouca produção.
No GP da China de 2013, ele foi convencido pelo então chefe da equipe de F1 da época, Stefano Domenicali, a receber o troféu de time vencedor, algo que nem mesmo o pai fez.
Assim, ele é até hoje o único representante da família Ferrari a ter subido num pódio do Mundial de F1 na história.
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