Hurley Haywood venceu três vezes em Le Mans e tem o recorde de triunfos em Daytona com cinco
(Foto: Porsche AG)

Haywood: o astro de Le Mans e Daytona que guardou um segredo por décadas

Imagine ser um dos nomes de maior sucesso de sua profissão no mundo, mas ter medo que em algum momento, um detalhe de sua vida pessoal possa tirar a atenção de tudo que você conquistou e até mesmo fazer apoiadores irem embora. Basicamente, esse era o temor de Hurley Haywood.

O americano é sem dúvida nenhuma um dos maiores pilotos de corrida na história do endurance mundial. No Brasil, em que a cultura automobilística está mais ligada à F1, Haywood não é muito conhecido. Mas seu currículo no endurance fala por si: três vezes vencedor das 24 Horas de Le Mans, dois triunfos nas 12 Horas de Sebring e cinco vitórias nas 24 Horas de Daytona, o que, ao lado das também cinco de Scott Pruett, é o recorde da prova.

Haywood, no entanto, só agora, após completar 70 anos, conseguiu falar abertamente e de forma pública sobre algo que o incomodava e lhe causava medo que o mundo descobrisse: ele é gay.

A revelação pública veio em 2018, quando ele publicou sua autobiografia “Hurley: From the Begining” (“Hurley: Desde o Começo”, em uma tradução livre). O livro se tornou um documentário produzido pelo ator e piloto (também com experiência em Le Mans) Patrick Dempsey, lançado no ano seguinte.

O fato de Haywood ser gay era na verdade um “segredo aberto”, como podemos dizer. As pessoas mais próximas e que estavam dentro do esporte sabiam, mas ele não admitia publicamente e existia até um certo esforço para rechaçar a informação. O piloto estava sempre acompanhado nos paddocks por belas mulheres e chegou a ser patrocinado pela revista masculina Penthouse.

E como prova dos problemas que um piloto gay pode enfrentar em um esporte tão machista como o automobilismo, o simples rumor que circulava nas pistas sobre sua orientação sexual chegou a fomentar notícias de que ele tinha uma relação com seu companheiro de carro, Peter Gregg, também um dos grandes pilotos de endurance dos anos 70. Haywood desmente que eles tenham mantido em qualquer momento um caso e diz que nunca sequer conversou sobre o assunto com o parceiro de equipe.

“Ele era tão inteligente e de alto nível escolar que era natural para ele dizer ‘ok, Hurley é meu amigo. Ele é meu companheiro de equipe. Ele é gay, mas e daí? Isso não faz diferença nenhuma para mim”, declarou Haywood à revista LGBTQ “Advocate”, em 2019.

Assim como Gregg, amigos mais próximos dele sabiam que ele era gay. Porém, ele sempre pedia para não se dar publicidade ao assunto. Tinha medo de perder patrocinadores, oportunidades no esporte e como os fãs poderiam reagir. Não podemos esquecer que se hoje ainda é difícil para uma celebridade LGBTQ ser aceita, imagine dentro do mundo do automobilismo em pleno anos 70 e 80, quando sexo e machismo ainda eram vendidos como commodities pelas marcas que se envolviam com o esporte.

Haywood, com um Porsche 917 Spyder em 1973, no circuito de Road Atlanta (Foto: Porsche AG)

“Eu tinha medo. Eu não queria que isso vazasse”, lembrou Haywood, em entrevista ao jornal inglês The Guardian. “Eu não tinha nenhum modelo masculino gay para seguir. Eu tinha que lidar com isso por mim mesmo, lidar com todos os problemas que isso poderia causar se de repente fosse revelado que eu era gay. O que poderia acontecer? Eu perderia todos meus fãs? Perderia todos meus patrocinadores?”, seguiu.

O tempo passou e, mesmo sem ainda existirem grandes nomes do automobilismo (principalmente homens) que assumem sua orientação, Haywood resolveu começar a pavimentar o caminho para outros aos 70 anos. A decisão veio quando ele sentiu na pele o quão importante era seu exemplo. Há poucos anos, ele concedia entrevista para um jovem estudante sobre sua carreira e vida de piloto. Durante a conversa, o garoto resolveu se abrir.

“Eu me lembro vividamente que ele parou, olhou diretamente para mim e disse: ‘Fui vítima de bullying por toda a minha vida. Todas as manhãs, acordo e me sinto absolutamente inútil. Eu sou gay e simplesmente não sei para onde ir e o que fazer. Eu me sinto totalmente inútil’”, lembrou Haywood ao The Guardian.  “Eu disse a ele: ‘não é o que você é, é quem você é. É de quem as pessoas se lembram. Se você permitir que essa barreira o impeça de seguir em frente, você nunca vai conseguir nada.’”

O ex-piloto conta que alguns anos depois, do nada, a mãe do garoto lhe telefonou e disse: “Queria apenas que você soubesse que o que você disse para meu filho salvou a vida dele”. A decisão de revelar ao mundo seu segredo foi tomada no mesmo instante.

Haywood, o piloto

Hurley Haywood surgiu para o automobilismo americano ainda adolescente, quando se destacou em campeonatos de autocross na Flórida na segunda metade dos anos 60. Em uma prova da modalidade, ele venceu Peter Gregg, que já fazia parte da elite do endurance nos Estados Unidos e ficou impressionado com o seu talento.

Gregg o chamou para participar de sua equipe e pouco depois Haywood conquistou sua primeira vitória importante, nas 6 horas de Glen de 1969, no famoso circuito de Watkins Glen. Só que apenas um mês depois do triunfo, ele foi obrigado a pausar sua carreira ao ser convocado pelo exército americano para lutar na Guerra do Vietnã.

Ele passou um ano no embate no sudeste asiático e quando retornou, não pensou duas vezes no que queria fazer da vida. Retomou a parceria com Gregg e em 1970 já estava competindo nas principais provas do endurance norte-americano. Haywood e Gregg formariam uma dupla que ficaria bastante famosa e se tornaria quase que um sinônimo da Porsche. Foi com carros da marca alemã que eles venceram as 24 Horas de Daytona e as 12 Horas de Sebring de 1973. A partir daí, a carreira deles decolou de vez e os vários triunfos se sucederam.

Hurley Haywood, Jurgen Barth e Jacky Ickx celebram vitória nas 24 Horas de Le Mans de 1977
Hurley Haywood, Jurgen Barth e Jacky Ickx celebram vitória nas 24 Horas de Le Mans de 1977 (Foto: Porsche AG)

A Porsche investiu em Haywood e o levou para Le Mans pela primeira vez em 1977 para competir com um modelo 936 ao lado de Jurgen Barth e Jacky Ickx. O trio venceu a prova com 11 voltas de vantagem sobre o Mirage-Renault que ficou na segunda posição. Gregg competiu em um Porsche 935 da equipe JMS ao lado de Claude Ballot-Léna, e terminou em terceiro.

Haywood ainda tentou a sorte na Indy, mas sem tanto sucesso. Nas duas primeiras oportunidades, não se classificou para as 500 Milhas de Indianápolis de 1979 e abandonou a prova com um problema no turbo em 80, após largar em 25º. Ainda participou de outras cinco corridas até 1982, com o melhor resultado sendo um 12º em Watkins Glen, em 81. O negócio dele eram os esportivos e esporte-protótipos mesmo, com os quais seguiu sua carreira de forma ininterrupta até 2012, quando se aposentou aos 64 anos após um 13º lugar nas 24 Horas de Daytona.

Sua última vitória foi em 2009 na etapa de Homestead da Grand-Am (que mais tarde se tornaria a atual IMSA em uma fusão com a ALMS) ao lado do português João Barbosa, em um protótipo Riley-Porsche.

O documentário “Hurley”, que conta os detalhes de sua carreira, foi lançado em 2019, mas infelizmente ainda não está disponível no Brasil.

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