Roberta Cowell, transexual inglesa e pilota

O caso de Roberta Cowell, pilota de F1 e primeira transexual da Inglaterra

Ainda no século 21, a transexualidade é um tema velado no mundo ocidental. Quando conectado ao esporte, principalmente o automobilismo, onde as mudanças de comportamento são vagarosas, o assunto quase nunca é trazido à tona – ou como na maioria dos casos, totalmente ignorado. Uma das histórias mais interessantes no esporte a motor, contudo, envolve Roberta Cowell.

“Betty”, como gostava de ser chamada, foi a primeira pessoa conhecida no Reino Unido, e uma das primeiras no mundo, a se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual, em 1951.

Em paralelo, fora um piloto independente de baixo calibre na F1, participando de três GPs não-válidos para o campeonato entre 1946 e 1951. Também se inscreveu, no período pré-guerra, de um GP menor em Antuérpia, na Bélgica.

O caso de Cowell é interessante porque, mesmo depois da cirurgia, ela continuou a acelerar, especificamente em corridas de montanha na Inglaterra (veja no vídeo abaixo). Por causa de sua sexualidade, entretanto, o mainstream do esporte – F1, endurance e afins – acabou fechando portas.

Nascida em 8 de abril de 1918, em Croydon, sul de Londres, Roberta foi batizada como Robert Marshall Cowell. Ela era filha de Sir Ernest Cowell, um bem-sucedido cirurgião londrino, e Dorothy Elizabeth Miller. Acima do peso quando criança, sua educação foi típica do período entreguerras: rígida, religiosa e implacável.

Contudo, como todo jovem nos anos 20 e 30, Robert se tornou obcecado por carros. Ainda na adolescência, virou “rato de autódromo”, participando de corridas amadoras no clássico (e finado) circuito de Brooklands, em Weybridge. Com o dinheiro arrecadado nas provas, já no fim dos anos 1930, reuniu veículos suficientes para participar de um GP de menor expressão, em Antuérpia, ao lado de futuros ases da F1 como Giuseppe Farina e Raymond Sommer.

Durante a 2ª Guerra Mundial, foi alistado como piloto de testes da RAF (em português, Força Aérea Real), guiando caças noturnos para os Aliados. Simultaneamente, entrou na University College London, onde estudou engenharia mecânica, e casou-se com Diana Carpenter, com quem teve duas filhas, Anne e Diana.

Após o matrimônio, entretanto, a vida de Robert mudou completamente. Em sua autobiografia (The Roberta Cowell Story, publicada em 1954), ela conta como as obrigações masculinas transformaram sua vida em algo “inútil e vazio”. Meses de psicanálise e testes então confirmaram que a mente inconsciente do piloto era “predominantemente do sexo feminino”.

Como ela conta, observações médicas também constataram que seu corpo possuía características femininas: “quadril largo, ombros estreitos, ausência do pomo de Adão e tendência dos membros inferiores a convergir para os joelhos”. Se a origem destas distinções se deu por motivos biológicos ou psicológicos, é impossível saber.

Na realidade, as únicas informações extra-Cowell desta época são de histórias laterais. A mais conhecida é uma divulgada pelo jornal inglês “The Independent”, que indica que seus traumas de guerra foram graves. Segundo o periódico, em novembro de 1944, após sobreviver a um pouso forçado na Alemanha, o piloto foi capturado pelos nazistas e aprisionado em Stalag Luft I. Em um ponto, a alimentação era tão desumana que os prisioneiros se viram obrigados a comer os gatos do acampamento alemão.

De qualquer forma, Cowell voltou ao automobilismo com o fim da guerra. Em agosto de 1946, o inglês, já próximo dos 30 anos, fechou o Troféu Ulster na quinta colocação, dividindo um modelo B da ERA com Gordon Watson. Na mesma época, ele também participou de desafios de velocidade em Brighton e do GP de Rouen.

Sua vida pessoal, porém, estava em frangalhos e, em 1948, separou-se de Diana para realizar uma operação de retirada de testículos. Três anos depois, no dia 15 de maio de 1951, submeteu-se a uma vaginoplastia, conduzida por Sir Harold Gillies e assistida pelo dr. Michael Dillon, amigo pessoal de Cowell e primeiro homem transexual da Inglaterra. Um mês antes, ainda como Bob, se inscrevera em dois GPs da recém-criada F1, ambos em Goodwood.

Roberta Cowell nos anos 50

Cowell nunca mais voltou a conduzir um monoposto. Por causa da mudança de sexo, perdeu vários amigos no automobilismo. Em 1954, foi obrigada a vender sua equipe de competições, a Leacroft of Egham, e declarar falência.

Para recuperar as finanças, consentiu em receber 8 mil libras da revista “Picture Post” para divulgar sua história. Em 1957, ainda voltou às pistas com certo sucesso, vencendo a subida de Shelshey Walsh. À época, questionada se preferia automóveis ou aviões, chegou a declarar:

Guiar é o que eu faço melhor. Aviões não têm a personalidade de um carro de corrida.

Nos anos 70, novamente em apuros financeiros, tentou escrever outro livro para gerar fundos. Em sua última entrevista, em 1972, condenou os transexuais e criticou a “sociedade permissiva”, alertando outros a não seguirem seus passos. O livro, porém, nunca foi editado e ela se retirou da vida pública.

Sem contato com a família e as duas filhas, Roberta Cowell morreu em 11 de outubro de 2011, aos 93 anos. A pedido dela, seu funeral, atendido por apenas seis pessoas, não foi divulgado.

O amor pelo automobilismo, contudo, nunca acabou. Até o fim da vida, guardou, nos fundos de sua casa em Hampton, uma enorme placa em letras vermelhas, “Roberta Cowell Racing”.

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