X9: o misterioso projeto de F1 brasileiro anterior à Copersucar

O X9 é uma das maiores e menos reconhecidas ousadias da carreira de Rigoberto Soler e que, por falta de apoio e coragem por parte de empresários e até do governo brasileiro, jamais saiu do papel (pelo menos não em sua concepção original).

Se o douto leitor não sabe quem é Rigoberto Soler, aqui vai um resumo muito breve de sua vida: designer espanhol naturalizado brasileiro desde o início dos anos 1950, iniciou a carreira na Vemag, onde ajudou a desenvolver o DKW e chegou a projetar uma derivação perua que não passou da fase conceitual. Migrou para a Willys e, lá, concebeu um esportivo batizado de Capeta, que também jamais entrou em produção.

Na Brasinca (uma fabricante de ônibus e caminhões), bolou do zero um chassi monobloco feito com chapas de aço finas, moldadas a mão, e com ele criou o Uirapuru, precursor entre os GTs brasileiros. Cultuado de tão raro, artesanal e engenhoso que era, o Uirapuru usava motor 6-cilindros de 4,2 litros da Chevrolet. Estima-se que pouco mais de 70 unidades tenham sido produzidas entre 1964 e 66, nas configurações berlineta, perua e conversível.

Anos mais tarde, já como professor do Departamento de Estudos e Projetos Veiculares da FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), uma instituição sita em São Bernardo do Campo e voltada a formar profissionais capacitados a trabalhar no polo automotivo do ABC paulista, encontrou liberdade total para idealizar, junto com seus alunos, os mais variados projetos de mobilidade urbana.

De lá vieram extravagâncias como o X1, protótipo de veículo anfíbio guiado por manche, e o Talav (Trem Aerodinâmico de Alta Velocidade), uma espécie de derivação tropical dos (até hoje) inacessíveis trens-bala nipônicos. Sem dúvidas uma mente à frente de seu tempo.

No fim de 1972, intrigado com o uso evolutivo dos conceitos aerodinâmicos no automobilismo e instigado por Ricardo Divila, projetista brasileiro que, na mesma década, assinaria projetos da Copersucar, Soler resolveu tirar de sua prancheta aquele que seria o primeiro carro de F1 desenhado no Brasil.

“Ele era admirador do Colin Chapman e se impressionou com os conceitos do Lotus 72. Engenheiro mecânico costuma ser muito pragmático e funcional, e um dos segredos para Chapman ser tão inventivo era ser engenheiro aeronáutico. Soler, um arquiteto, também tinha muita criatividade, por isso admirava o projetista inglês e quis constatar por si como operavam os efeitos aerodinâmicos em um carro de alto desempenho”, explicou ao Projeto Motor Roberto Bortolussi, professor do DEPV.

Havia ainda, claro, a motivação de ver um brasileiro, Emerson Fittipaldi, como protagonista daquela competição antes tão inalcançável para nossos padrões. Soler queria provar que o Brasil podia formar pilotos e construtores campeões, utilizando tecnologia e componentes nacionais.

O conceito do X9

Soler iniciou a confecção de croquis com a ajuda de pupilos. Desde o início a ideia era construir um bólido monobloco em alumínio, então uma praxe na categoria, usando algumas soluções um tanto obsolescentes, caso dos radiadores frontais, e outras bastante inovadoras, como o sistema de freios com trocadores de calor posicionados na horizontal.

O primeiro esboço previa um modelo com asas grosseiramente grandes e habitáculo semifechado (um amplo para-brisa ficava responsável por deslocar o ar diretamente ao aerofólio traseiro). Aos poucos o professor deu seu toque de arquiteto refinado, criando arrojadas asas em forma de delta, sendo que a peça posterior ficava suspensa à carenagem da tomada de ar superior, sem qualquer outro tipo de sustentação.

Seguindo os padrões da FEI, que batizava todos os seus protótipos com o prefixo “X” mais um número cronologicamente crescente, o projeto foi denominado X9.

Ao mesmo tempo em que aprimorava os esboços, Soler entrou em profundas negociações com empresas locais para colocar o monoposto em ação contra os ases da F1.

Segundo sua estimativa, seriam necessários 700 mil cruzeiros (o equivalente a mais de R$ 2 milhões hoje) para deixar dois chassis prontos para competir. Ele se sentou à mesa com empresários de Bardahl, Cofap, Rodas Scorro e até do governo militar. Todos enxergaram a iniciativa sem muita empolgação.

O orçamento ficou ainda maior quando Soler foi à França se reunir com executivos da Matra para tentar amarrar um contrato de fornecimento de motores. A manufatureira francesa havia abandonado a ideia de ter equipe própria na F1 em 73 e vinha utilizando os famosos V12 apenas em provas de resistência. Rigoberto via naqueles propulsores uma ótima forma de iniciar a empreitada tendo em mãos um equipamento decente e confiável, e tentou persuadir os representantes da montadora a retornar para a competição de monopostos. 

Modelo X9 construído pela FEI
Modelo X9 construído pela FEI se tornou protótipo (Foto: Arquivo/FEI)

“O professor retornou muito entusiasmado da visita à Matra, onde foi muito bem recebido. Eles toparam fornecer os motores, mas fizeram exigências: acreditavam que dois carros em uma temporada de F1 demandariam um lote de pelo menos 20 usinas, o que deixaria os custos muito maiores do que o que havíamos estimado”, contou Vitorio Marghieri, engenheiro mecânico formado pela FEI e atual consultor de gestão empresarial.

Enquanto Soler viajava a fim de viabilizar o sonho, Marghieri preparava em sua casa uma surpresa junto com Fernando Bauer, colega de classe, e Brar Braren Soler, filho de Rigoberto. Os três construíram uma maquete em 1:8 do X9 em argila para mostrar ao tutor/pai. Infelizmente não encontramos nenhum registro imagético desse mocape para exibir ao ínclito leitor.

Falta de recurso mudou objetivo do projeto

Nem o otimismo dos jovens e a persistência do idealizador sensibilizaram os potenciais investidores. Sem dinheiro suficiente para seguir adiante, Soler teve que dar o braço a torcer e desistir do plano em meados de 1974.

Para que o esforço não tivesse sido em vão, ele e os estudantes adaptaram o projeto e o concretizaram como um bólido da antiga F-Super Vê, colocando no cofre do motor uma unidade 1.6 da Volkswagen. Conceitos do X9 original, tais quais os aerofólios em delta e os radiadores frontais horizontais, mantiveram-se preservados no resultado final.

Somente um exemplar em tamanho real saiu do papel. Ele acabou exposto no Salão do Automóvel de São Paulo de 1974, mas nunca foi efetivamente levado a um autódromo para testes. Desde o início dos anos 80 seu paradeiro é desconhecido: o X9 não consta mais no acervo da FEI. “Entrei como calouro em 84 e ele já não estava aqui”, constatou o professor Bortolussi. O destino mais provável foi o desmanche.

Dizem por aí que a saída um tanto turbulenta de Soler da FEI – como toda cabeça à frente do tempo, Rigoberto era tido como uma personalidade difícil de lidar – motivou a instituição a não ter quisto preservar o projeto mais importante de sua jornada como acadêmico.

Rigoberto Soler faleceu em novembro de 2004 sem concluir a meta de se colocar à prova contra os grandes construtores da F1, em especial seu ídolo Colin Chapman. Talvez não possuísse talento nem estrutura para alcançar o sucesso, mas o fato é que ele foi privado de tentar. Dói constatar que tanto o sonho do hispano-brasileiro quanto o próprio X9 viraram nada mais do que pó.

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