Schumacher na Benetton de 1994

Ex-engenheiro da Benetton explica segredo do polêmico carro de 1994

Um dos exercícios mais hercúleos para quem gosta de pesquisar sobre a F1 do passado é encontrar informações precisas sobre, afinal, o que se passou com o Benetton B194. O modelo que levou Michael Schumacher a seu primeiro título na F1 é até hoje alvo das mais polêmicas e acaloradas discussões. Afinal, estava ou não fora do regulamento? Se estava, qual item era ilegal?

O grande problema é que as análises, por vezes, acabam eivadas pelas paixões e preferências pessoais. Custa (especialmente tempo) encontrar versões mais próximas à realidade, mas elas existem e o Projeto Motor parece ter encontrado uma delas. Em artigo publicado em seu perfil pessoal no LinkedIn, o engenheiro holandês Willem Toet aparentemente revelou o grande segredo do modelo alviverdeceleste.

Caso o douto leitor desconheça, Toet é pessoa de longa carreira no automobilismo. Trabalhou com preparação de carros de turismo, F-Ford, F2 e protótipos de resistência entre fim dos anos 70 e início da década seguinte. Ingressou na F1 em 85 pela Toleman, que depois se tornaria Benetton. Permaneceu lá até 95, mudando-se para a Ferrari junto com o corpo técnico levado por Schumacher à esquadra italiana. Em 2000, tornou-se aerodinamicista da BAR. Seis anos mais tarde, migrou para a BMW Sauber e atuou como chefe de aerodinâmica na operação suíça (mesmo após a saída da montadora alemã) até 2015.

Foi Toet, por exemplo, quem revelou a agora famosa história de que Schumacher pediu um sistema com três mostradores digitais no quadro de instrumentos de seu carro, caso já contado pelos parceiros do FlatOut!. Fazia, portanto, parte do núcleo que criou o B194, e conhece seus mais inacessíveis recônditos. No artigo How rotational inertia led to traction control (Como o momento de inércia levou ao controle de tração, na tradução do inglês), o engenheiro contou que sim, o carro de 94 da Benetton dispunha de um controle de tração, porém obtido através de controle mecânico sobre as taxas de aceleração do motor (ou subida dos giros), e não por meio do convencional uso de um sensores nas rodas.

Segundo o artigo, o sistema desenvolvido pela Benetton consistia justamente em contornar a recente proibição do controle de tração operado eletronicamente. Para isso, os engenheiros fizeram a junção de alguns conceitos pouco conhecidos do fã comum. O primeiro é o chamado momento de inércia (também conhecido como inércia rotacional), que consiste no quanto a ação das peças móveis (e giratórias) de um automóvel interfere em seu deslocamento.

Rodas, discos de freio, eixo de transmissão e diferencial são exemplos. Por se moverem de maneira giratória, elas demandam um esforço maior do veículo para que ele possa entrar em movimento ao mesmo tempo em que mantenha esses componentes girando sobre seus eixos. Como consequência, o “peso” do bólido no momento da aceleração acaba sendo maior do que seu peso estático (no caso de um F1, a diferença passa de 10%), o que significa que, em condições reais, a aceleração do bólido será sempre inferior àquela apontada por cálculos teóricos.

Nesse aspecto o trem-de-força gera ainda mais dificuldades, porque o grau de influência de suas partes móveis varia de acordo com a marcha engatada. Em primeira marcha, por exemplo, o esforço de giro dos componentes é muito maior, o que aumenta seu momento de inércia. Numa marcha mais alta a influência não é tão grande.

O que os engenheiros descobriram é que, usando sensores de alta precisão (que já existiam nos propulsores mais avançados da época) para medir a pressão atmosférica e os níveis de rotação por minuto, poderiam controlar as taxas de aceleração do motor a fim de deixá-las o mais próximo possível do ideal, já levando em conta os efeitos do momento de inércia. Com isso, haviam criado um controle de tração a partir do próprio motor.

“Nós não podíamos usar nenhum tipo de sensor que dissesse à central eletrônica [do carro]em qual marcha o câmbio estava. No entanto, após alguns testes em pista, conseguimos usar os sensores que mediam as variações de pressão atmosférica para determinar que, se a pressão estava em X e os níveis de RPM, em Y, então o carro estava nessa ou naquela marcha”, explica Toet.

Para que o sistema operasse, primeiro os pilotos precisavam ir à pista com os dados em “neutro”, e coletar dados como níveis de aderência do asfalto, estado dos pneus e densidade do ar. A partir disso os engenheiros criavam um controle das taxas de aceleração por estágios (que também usavam a relação de marchas como fator de variação).

Schumacher conduzindo a Benetton no GP de Mônaco de 1994

Como o controle era feito? Através de breves cortes de giro da ignição. “Basicamente a equipe inseriu um interruptor que mediava a energia transferida às bobinas. Ele cortava a baixa voltagem transferida às bobinas por alguns milésimos de segundo, impedindo a formação da alta voltagem que geraria a ignição”, explica o ex-funcionário. O padrão era promover um corte de giro da ignição a cada 15 ciclos, mas os diferentes estágios podiam acelerar o processo para um corte a cada oito, cinco ou até três ciclos.

É claro que também havia consequências negativas. Primeiro, se a equipe impusesse um controle muito alto para determinada condição, os giros ficariam muito baixos (numa espécie de underspin) e comprometeriam desempenho e durabilidade da usina. “Quem não ficava muito feliz com esses riscos era nosso fornecedor [a Ford]”, conta Toet. Segundo, era preciso usar a solução com parcimônia: “Evitávamos cortar os giros da ignição de um mesmo cilindro muito frequentemente, sob risco de criar uma falha generalizada de ignição para aquele cilindro”, acrescenta.

Além disso, o controle não era eficaz em todas as situações. “Durante uma corrida as condições mudavam constantemente, tornando o sistema mais ou menos útil. Se os pneus estivessem muito desgastados ou se chovesse, por exemplo, o controle de tração não iria funcionar”.

E os ases (Schumacher, Jos Verstappen e JJ Lehto, no caso), como atuavam nesta engendrada operação? “Um bom piloto sabia como aplicar o acelerador de forma adequada. Cravar o pé de uma vez até seria possível, mas comprometeria o consumo de combustível e tornaria os cortes de giro mais detectáveis pelo ruído do motor”, aponta.

Foi justamente o som “cortado” do Ford Cosworth Zetec V8 que levantou a suspeita de Ayrton Senna no GP do Brasil de 94 (pelo jeito a percepção do tricampeão era certeira, embora ele não tivesse como conhecer o cerne do sistema). A Williams protestou junto à FIA e levou a entidade a realizar um pente fino nas centralinas das grandes equipes do grid a partir do GP do Pacífico (tanto que a Ferrari foi pega com a “boca na botija” testando um controle de tração nos treinos em Aida). Curiosamente a federação não encontrou nenhuma evidência de que existia um programa do tipo no B194 (ela encontrou outro item suspeito, o qual mencionaremos mais abaixo).

Agora, se o controle de tração do B194 era gerado por outra via e, portanto, não feria diretamente o regulamento (até porque sequer era previsto por ele), por que então a Benetton simplesmente não contou à FIA o que fazia? Willem Toet responde a essa dúvida no artigo: “Embora estivessémos tranquilos do ponto de vista legal, não queríamos que outras equipes soubessem do nosso segredo e o aplicassem, nem que a solução acabasse sendo banida. A F1 sempre funcionou assim e hoje não é diferente. Portanto, é óbvio que nossos rivais eventualmente acabaram descobrindo o segredo e passaram a usar a solução [Nota do editor: há registros de que a Williams passou a aplicar o mesmo conceito a partir de 1995]. Esse joguinho só acabou quando a FIA determinou que o ECU deveria ser padronizado”.

Vale lembrar ainda que a central eletrônica padrão passou a vigir na F1 no fim da década passada. Atualmente o item é fornecido a todas as escuderias pela McLaren.

Demais polêmicas envolvendo a Benetton

Infelizmente a questão do controle de tração não foi a única controvérsia em que a Benetton se meteu em 1994. Houve outras acusações contra a esquadra ao longo daquela complicada estação. O Projeto Motor as esclarece abaixo.

Controle de largada

Quando conseguiu acesso à centralina do B194 e a seus respectivos códigos de operação, a FIA encontrou um software que serviria como controle de largada. Ele ficava escondido na ECU sob um comando de ativação denominado “Option 13″. Entretanto, o órgão reconheceu que, de acordo com os dados da telemetria, o dispositivo não havia sido utilizado nas três primeiras etapas do ano (Interlagos, Aida e Ìmola), período em que os dados foram usados para análise. Faz sentido, visto que Schumacher perdeu posições para as Ferrari de Jean Alesi e Gerhard Berger nas partidas dos GPs do Brasil e San Marino, respectivamente.

A maior suspeita em relação a um possível usufruto do controle de largada remonta ao GP da França, em que o volante germânico arrancou de terceiro para primeiro com enorme facilidade (veja abaixo). A Benetton, porém, defendeu que o sistema só fora usado em testes e era mantido camuflado justamente para não constar no cardápio de comandos disponíveis ao piloto nas corridas. Sua ativação só seria possível por meio de um computador conectado à central do carro. A FIA acatou o argumento e inocentou o time – conforme comunicado divulgado antes do GP da Alemanha -, mas determinou a retirada do software já a partir da rodada de Hockenheim.

Bomba de combustível

Como toda regra recém-imposta, a volta do reabastecimento à F1 era um elemento que ainda precisava ser refinado em 94. Uma das falhas daquele regulamento foi permitir que cada time escolhesse a fornecedora que quisesse para obter equipamentos de armazenagem e bombeamento. A Benetton optou pela francesa Intertechnique. Segundo este outro artigo de Willem Toet, a escuderia ítalo-britânica descobriu que a Ligier obtivera da Intertechnique uma carta que a autorizava a retirar um filtro da bomba, sob alegação de que, como seu combustível passava por tratamento prévio de impurezas, a peça era dispensável. Sem ela, a vazão do combustível era aprimorada.

Como a escuderia ítalo-britânica soube disso? A resposta está em Flavio Briatore, que virara sócio da Ligier em maio daquele ano. Aqui vale um parêntesis: se a sociedade foi ratificada em maio e só a partir dali Briatore tomou conhecimento do esquema do filtro, então a tese de que a bomba de combustível da Benetton estaria irregular no GP do Brasil, ocorrido dois meses antes, cai por terra. Aliás, de acordo com o anuário de 94/95 escrito por Francisco Santos, foi a Williams que, vejam só, tomou uma recriminação da FIA por tentar, nos treinos de sábado em Interlagos, “alterar a válvula pop-off que controla a pressão de débito da gasolina, com a finalidade de aumentá-la para 4 atmosferas e reabastecer a uma velocidade maior que o dobro dos 12 litros por segundo regulamentados”. Irônico, não?

Na carona da Ligier, a Benetton obteve uma cópia da tal carta da Intertechnique e, com ela, ganhou aprovação verbal do diretor de provas da FIA, Charlie Whiting, para também retirar o filtro. Não está claro quando isso aconteceu, mas a contar do momento em que Briatore virou dono da Ligier, 14 de maio, deduz-se que a ação ocorreu já na fase europeia do calendário. O resultado foi o desastroso acidente com Jos Verstappen durante um pitstop do GP da Alemanha, que suscitou imensas suspeitas.

Benetton de 1994 foi uma das grandes polêmicas da F1
Benetton de Verstappen pega fogo durante o reabastecimento no GP da Alemanha de 1994 (Reprodução)

No texto supracitado, Toet afirma que FIA e Benetton fizeram um acordo para livrar a equipe de punição em troca de recolocar o filtro e manter detalhes do caso sob sigilo, visto que, como Whiting havia dado um aval verbal para a marotagem, a federação também estaria comprometida. Além disso, uma repercussão muito extensa e negativa do assunto poderia fazer a opinião pública questionar de maneira veemente a volta do reabastecimento. A federação já vinha sendo duramente contestada por outras mudanças técnicas que, mesmo indiretamente, contribuíram para a série de acidentes graves vividos naquela estação. Não queria um novo desgaste, pois. No fim, a solução foi estabelecer um fornecedor único de bombas padronizadas a partir de 95.

Desclassificação na Inglaterra e suspensão de Schumacher

Esta é uma das histórias mais malucas daquela temporada. Em resumo, Schumacher foi desclassificado do GP da Inglaterra por ter ultrapassado Damon Hill durante a volta de apresentação (o inglês estava na pole e o germânico, em segundo na grelha). Aqui é preciso lembrar que a prática não era incomum até então, e o próprio Schumacher praticara o mesmíssimo em relação a Senna no giro de apresentação da etapa do Brasil, sem qualquer vislumbre de penalidade. Todavia, tratava-se de um procedimento proibido pelo regulamento desportivo e, em Silverstone, os comissários resolveram fazer cumprir a lei.

Acabaram criando um enorme imbróglio. Tudo porque a direção de provas tardou em determinar um stop and go de cinco segundos ao alemão, e este acabou sendo anunciado já na 13ª volta, com 27 minutos de evento. A Benetton protestou, alegando que o tempo limite para punir qualquer infração era de 15 minutos. Enquanto isso, orientou que Schumacher permanecesse na pista sem cumprir o stop and go até que seu protesto fosse julgado pelos comissários.

Por não ter cumprido a pena num prazo de três voltas, e enquanto representantes da equipe argumentavam com os diretores, Schumacher tomou uma bandeira preta. Só que a Benetton protestou de novo, pois ainda tentava reverter a primeira punição quando o DSQ foi aplicado. Conseguiu, assim, fazer com que a direção voltasse atrás e revertesse a sanção no stop and go original. Schumacher enfim pagou a penalidade no giro 27, seguiu em frente e terminou o GP em segundo.

Poucos dias depois, a FIA suspendeu o volante por duas corridas, considerando-o imprudente ao permanecer na pista sob aviso de desclassificação. Tal suspensão foi cumprida nos GPs de Itália e Portugal.

Desclassificação no GP da Bélgica

Outra decisão polêmica da FIA em relação a Schumacher ocorreu na rodada de Spa-Francorchamps. O teutônico venceu o páreo, mas acabou retirado do resultado oficial porque uma das partes de seu assoalho de madeira compensada se encontrava 1,2 mm aquém da espessura mínima de 10 mm exigida pelo regulamento (sendo um desgaste tolerável de 10%,  o que significa que, na prática, estamos falando de um desvio de 0,2 mm).

A Benetton justificou que tal falha ocorreu porque uma rodada no meio da corrida, no esse anterior à Stavelot (assista ao vídeo), fez com que o bólido batesse numa zebra e arrancasse uma lasca do assoalho. Não adiantou. Vale aqui mencionar que algumas semanas antes, em Hockenheim, Christian Fittipaldi foi absolvido pela FIA num caso bastante semelhante.

O que o autor pensa de tudo isso

A Benetton foi ao limite da legalidade e das brechas de regulamento para se tornar uma operação campeã. Isso parece ter ficado mais do que claro. O grande ponto aqui é: qual equipe não pratica o mesmo na F1 moderna? Se alguém tivesse desenvolvido tal tecnologia para a Williams, o douto leitor acha que ela deixaria de usá-la? Sabendo da resposta, chegamos a outro questionamento: por que só o Benetton B194 é tão lembrado em relação a “maracutaias”? Aqui, acredito, é onde está o imo de toda a discussão.

Primeiro, 1994 foi uma temporada muito emocional, porque envolveu a morte trágica de um grande e carismático campeão. Segundo, a Benetton era uma escuderia média-grande que estava rompendo o status quo dos velhos figurões da categoria (Williams, McLaren e Ferrari, a saber), portanto suas ações naturalmente geravam mais atenções (e contestações).

Por último, mas não menos importante: a atuação da FIA. A impressão que se passa é que os diretores da entidade tinham certeza de que a trupe de Flavio Briatore estava aprontando algo tão às escâncaras que, ao não conseguir descobrir de verdade o que era (conforme fica claro neste artigo), sentiram-se “feitos de bobo”. Decidiram, então, usar outros subterfúgios para criar dificuldades ao time ao longo do certame, a ponto de colocar em real risco um título que Schumacher poderia (e deveria) ter consumado com muito mais facilidade.

Então estou defendendo que tudo que a Benetton fez estava certo? Não, claro que não. Faltou transparência ali. Mas a Benetton não praticou nada que outras esquadras não faziam ou fariam. Se suas ações não devem virar objeto de culto, também não faz sentido detratá-las como se fossem os maiores atos de sacanagem já vistos na categoria. Era só mais um time tentando usar a interpretação livre da regra a seu favor. Isso, no fim das contas, é a base da F1 moderna.

Colaborou Fábio Ribeiro Brandão.

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