Como o Brasil sobreviveu aos primeiros grandes jejuns de vitória na F1

4 de outubro de 1970. Quando Emerson Fittipaldi ergueu os punhos diante da boina flutuante de Colin Chapman e da bandeira quadriculada do GP dos Estados Unidos, o Brasil passou a cultivar um hábito: assistir a vitórias de seus conterrâneos na principal categoria do esporte a motor. Desde então foram 101 triunfos na F1: os 14 do “Rato”; um de José Carlos Pace; 23 de Nelson Piquet; 41 de Ayrton Senna; e 11 de cada distribuídas entre Rubens Barrichello e Felipe Massa.

Em 27 dos últimos 52 anos o Brasil registrou presença no degrau mais alto do pódio. Curiosamente, das 19 temporadas em que isso não ocorreu, 17 estão aglutinadas nos três maiores jejuns da história do automobilismo nacional.

[ATUALIZADO em 31/07/2023] O mais recente deles adquiriu, após o GP de Mônaco de 2016, um atestado inalienável: até a próxima etapa, a do Canadá (12 de junho), completaremos seis anos, oito meses e 29 dias sem vencer na F1. O atual, já perdura por 14 anos, desde a vitória de Rubens Barrichello no GP da Itália de 2009. Um recorde absoluto e aparentemente perene.

Até então o maior intervalo continuava a ser aquele registrado entre as etapas da Austrália de 1993, disputada num 7 de novembro, e da Alemanha de 2000, ocorrida em 30 de julho. Da última láurea da carreira de Ayrton Senna até a primeira de Rubens Barrichello transcorreram seis anos, oito meses e 23 dias.

Voltando um pouco mais no tempo chegamos ao hiato, entre 19 de julho de 1975, quando do GP da Inglaterra (glória derradeira de Fittipaldi), e 30 de março de 80, com a rodada do Oeste dos Estados Unidos (debute de Piquet no panteão dos vencedores). Ali os ases do país amargaram quatro anos, oito meses e 11 dias na “geladeira”.

Nessas três eras de vacas magras houve alguns pontos em comum, porém com diferenças fundamentais que podem ajudar a esclarecer o que esperar da relação entre Brasil e F1 para um futuro de curto e médio prazo. Ainda assim, as histórias que narraremos a seguir deixam a lição de que, quando menos se espera, o imponderável também pode entrar em ação e mudar a sorte.

Transição em meio ao caos

Diferentemente do que houve entre Piquet e Senna – o segundo começou a “invadir” o espaço do primeiro enquanto este ainda se encontrava no auge, o que contribuiu para o clima de extrema animosidade entre ambos -, de Fittipaldi para o fluminense radicado em Brasília a transição foi de forma mais natural. Não sem uma contribuição enorme do destino, entrementes.

O douto leitor já conhece as histórias dos dois consagrados campeões: enquanto Emmo preconizou o fim de sua presença nas batalhas por vitórias e campeonatos ao trocar a McLaren pela Copersucar, no fim de 75, Nelson ganhou a simpatia de Bernie Ecclestone e assinou com a Brabham na segunda metade de 78, tornando-se piloto preferencial da esquadra assim que Niki Lauda mandou o pequeno bretão às favas, isso antes mesmo do fim da estação de 79.

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n Piquet se tornou o protagonista do Brasil na F1 com a Brabham no começo dos anos 80
Nelson Piquet se tornou o protagonista do Brasil na F1 com a Brabham no começo dos anos 80

É óbvio que Ecclestone não se interessou por Piquet casualmente, especialmente por tudo aquilo que o jovem fizera na F3 Britânica. Mas não há como negar que se tratou de mais um dos enigmáticos episódios da série “hora certa, lugar certo”.

Não houvesse o futuro chefe máximo da F1 gostado de Piquet, o Brasil dificilmente teria condições de formar outro ás de sucesso naquele momento histórico. Por quê? Porque o país patinava em meio a projetos que floresciam muito mais em vontades e anseios do que em organização.

Entre as décadas de 60 e 70 existiram pelo menos 10 tentativas de se consolidar uma categoria de base com monopostos por aqui, quase todas desastrosas: F-Vê (onde Fittipaldi se formou), F-Super Vê (a mais famosa, justamente por alçar Piquet), F-Ford (a mais sólida de todas, responsável por onde passaram Pace e Alex Dias Ribeiro), F-Junior, F2 Brasileiro, F-Renault, F-VW (série suplementar à Super Vê)…

Tirando a F-Ford, nenhuma durou 10 anos para contar história. Nomes como Luiz Antônio Greco penavam para concretizar o sonho de emplacar iniciativas um tanto amadoras e mais providas de paixão que de estrutura, mesmo com o sucesso de Fittipaldi lá fora. Organização institucional absolutamente inexistia, tampouco um plano para fomentar o esporte em longo prazo.

Piquet deu sorte de encarar a fase áurea da Super Vê, num grid competitivo e com interessante apoio da Volkswagen à categoria, mas logo a coisa degringolou. Nomes como Francisco Lameirão e Alfredo Guaraná Menezes, dois dos mais respeitados competidores no cenário da base àquela época, sequer conseguiram avançar na carreira.

As séries desapareciam com a mesma facilidade com que surgiam, e quem conseguia sobreviver a esse ambiente turbulento, caso de Wilson Fittipaldi, Alex Ribeiro, Ingo Hoffmann e Chico Serra, acabava afogado nos mares tempetuosos da Copersucar.

Em resumo, tivemos apenas um piloto sendo formado da maneira adequada nesse período, muito por mérito próprio (Piquet adquiriu sozinho os conhecimentos mecânicos que tanto o ajudaram na transição para a Europa) e, claro, a felicidade de ingressar na F1 pelas portas corretas. Assim, o já experiente e pressionado Fittipaldi pôde entregar a ele o status de melhor piloto do país sem nenhum titubeio (e provavelmente até com certo alívio).

O vazio abrupto e a pressão sob os pilotos do Brasil

Nos anos 90 a situação parecia um pouco mais organizada, embora ainda longe dos padrões vistos em países como Reino Unido ou Alemanha. Os sucessos de Piquet e, pouco mais tarde, de Senna, levaram a uma verdadeira invasão nas escolinhas de kart, o que permitiu a expansão de séries como F-Ford (depois transformada em Fórmula 1.6), F-Chevrolet e F3 Sul-Americana. Ayrton não dava pinta de que deixaria de disputar no pelotão de frente da F1 até a segunda metade dos anos 90, quando alcançaria a idade costumeira da aposentadoria, entre 37 e 39 anos.

Senna manteve a grande fase do Brasil na F1 entre os anos 80 e começo dos 90
Senna manteve a grande fase do Brasil na F1 entre os anos 80 e começo dos 90

Quando o paulistano parasse, uma nova leva formada por Barrichello, Christian Fittipaldi, Gil de Ferran, Ricardo Rosset e afins estaria pronta para definir quem seria o próximo da fila. Só que aí veio o GP de San Marino de 1994 e, junto à morte de Senna, surgiu uma pressão enorme para acelerar o processo. Além disso, o fato é que nenhum desses jovens, nem os que vieram depois, provaram ter o mesmo quilate dos três campeões.

A memória viva de Senna ainda levou o Brasil a ter uma última grande safra formada entre o fim dos anos 90 e começo da década seguinte: Ricardo Zonta, Enrique Bernoldi, Max Wilson, Ricardo Maurício, irmãos Sperafico, Antonio Pizzonia, Cristiano da Matta, Bruno Junqueira, Felipe Massa… Dessa extensa relação, somente Massa conseguiu se consolidar, muito pelo apoio que recebeu da Ferrari (além da capacidade de brigar entre os grandes quando recebeu um carro de ponta nas mãos, claro).

Precisamos ser honestos: estrutura de país de ponta no automobilismo o Brasil nunca teve. Assim, quando Barrichello encerrou sua longa espera pessoal na épica corrida de Hockenheim, amenizou um pouco da enorme carga de um país que exigia novos campões sem necessariamente ter condições de formá-los.

E quando passou o novo momento de vitórias de Barrichello e Massa, o Brasil voltou a enfrentar dificuldades, inclusive com um hiato de representantes na categoria, algo que não acontecia de forma regular desde os anos 60, com uma outra exceção em corridas específicas.

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