Randy Lanier andou na IMSA
(Foto: IMS)

Da Indy para a prisão: Randy Lanier, o traficante que virou piloto

A trajetória de Randy Lanier tinha tudo para ser a típica história estadunidense do underdog. Vocês sabem ao que estou me referindo: o sujeito que vem de um local periférico, em geral a roça mais inóspita no Meio-Oeste americano, que de repente ascende aos holofotes com uma atuação de desafiar o status quo.

Guardadas as proporções, foi mais ou menos o que Lanier viveu nas 500 Milhas de Indianápolis de 1986. Pilotando um March 86 da Arciero, ele saiu do Brickyard com um décimo lugar e a melhor média de volta registrada por um estreante na história da prova: 209,964 mph, batendo recorde firmado por Michael Andretti, dois anos antes.

Como disse no inciso de abertura, a princípio, esta narrativa parecia purgativa. Apenas pareceu. Porque ninguém imaginava à época que, para quitar sua vaga na CART, Lanier contrabandeava vultosas quantidades de maconha para o território americano.

Assim, dois anos após seu portensoso debute em Indianápolis, ele era um fugitivo no Caribe, escondendo-se do FBI (Federal Bureau of Investigation) e de sua responsabilidade numa operação de contrabando que lucrou cerca de US$ 300 milhões. Não demorou muito para que fosse detido e, em poucas semanas, condenado à prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.

Você pode estar se perguntando: mas como assim? Preso pela vida inteira só por maconha? Afinal, por mais que você se muna de todos os argumentos possíveis contra o uso da substância, sabe-se que ela definitivamente não é a mais perigosa das “drogas” ilegais – e já há estudos recentes que a categorizam num menor fator de risco que o álcool.

Como se repete a esmo no jargão jornalístico, é preciso entender o contexto dos fatos. Os Estados Unidos viviam o auge da War on Drugs bancada pelo governo Reagan. Logo uma quantidade de 600 mil libras (272 t) de maconha – o volume atribuído a Lanier – não seria uma coisa para passar impune.

E, assim, o Rookie of the Year de 1986 em Indianápolis passou o restante dos próximos 26 anos na cadeia até ser libertado por motivos sigilosos no final de 2014. Mas antes vamos entender como nosso quase-herói se pôs nessa enrascada.

O início no endurance

Criado no sul da Flórida, Lanier começou de maneira humilde no automobilismo. Em 1978, já aos 24 anos, ele se matriculou num curso de piloto da Sports Car Club of America (SCCA) com o objetivo de obter uma licença de competição. Não demorou muito para participar de suas primeiras corridas, a bordo de uma Porsche 356 Speedster.

Em 80, venceu o Regional Sudeste da SCCA e, no ano seguinte, passou a disputar o Imsa GT (ou Americano de GT, escolha à vontade). Sua estreia se deu no Daytona Finale, como companheiro de Dale Whittington. Ele terminou a disputa em 30º.

Já em 82, Lanier foi convidado pelo Nart (North American Racing Team) a substituir a enferma Janet Guthrie nas 24 Horas de Daytona. Ao lado de Bob Wollek e Edgar Doren, ele ocupou a terceira posição por 18 horas até escapar com o carro para fora da pista e danificar a suspensão.

Na temporada seguinte, voltou a ser convidado pela mesma equipe a disputar as 24 Horas de Le Mans, mas se retirou da disputa, desta vez com problemas mecânicos. “Antes de ir à pista, eu já fiquei maravilhado com a grandeza da prova”, relembrou Lanier sobre a experiência em Sarthe, em recente entrevista ao site americano “Jalopnik”.

De qualquer forma, ele insistiu no projeto de piloto e pouco a pouco os resultados vieram. Em sua quinta participação nas 6 Horas de Mosport, Lanier obteve um terceiro lugar com um March 82G e depois outro bronze nas 6 Horas de Mid-Ohio.

Quando alcançou um segundo posto nas 24 Horas de Daytona em 1984, entendeu que era hora de começar seu próprio empreendimento. Foi assim que nasceu o Blue Thunder, um time concebido ao lado do amigo Bill Whittington, vencedor de Le Mans em 79, e seu crew chief Keith Leyton.

E logo a empreitada deu liga. Juntos, os três venceram oito das 17 provas no calendário do Imsa GT e, mesmo sem suporte da March, conquistaram o título do campeonato de endurance mais importante nos EUA.

Ainda assim, alguns pilotos já passaram a se questionar: quem financia esse time? Como um startup desses seria capaz de arcar o custo anual de US$ 750 mil num campeonato tão competitivo como o Imsa GT? E de forma totalmente independente?

A carreira meteórica de Lanier nos monopostos

Em 1985, Lanier se transferiu para a CART, campeonato de monopostos que na época era a competição automobilística mais importante nos Estados Unidos. A Arciero, porém, não era uma equipe muito competitiva e o ano de estreia se encerrou com um miserável 41º lugar na classificação final, sem pontos marcados.

O panorama mudaria para 1986. Cal Wells trocou a Lola pela March e, logo na etapa de abertura, em Phoenix, Lanier conseguiu seu primeiro ponto na competição. Veio então o sucesso em Indianápolis, o qual já descrevemos acima, quando o piloto da Flórida desbancou recorde de Andretti, e um surpreendente sexto lugar em Meadowlands.

Antes de ser preso, a última corrida disputada por Lanier foi as 500 Milhas de Michigan. Na prova, ele espatifou o March num muro de proteção a 342 km/h e lesionou o fêmur direito.

Randy Lanier, com o March 86C da equipe Arciero na Indy 500 de 1986
Randy Lanier, com o March 86C da equipe Arciero na Indy 500 de 1986 (Foto: IMS)

O envolvimento de Lanier com as drogas

Na mesma semana em que Lanier brilhou em Indianápolis, um dos seus antigos sócios, Bill Whittington, foi indiciado em tribunal federal por importação de maconha, fraude e evasão fiscal.

De acordo com relato do “Sun Sentinel”, Bill e seu irmão Don foram acusados de executar uma operação que contrabandeava quantidades exorbitantes de maconha para a América do Norte – na ordem de US$ 73 milhões anuais. Segundo os promotores da época, era desta forma que Bill financiava suas atividades no automobilismo, incluindo a compra da Porsche 935 Turbo com a qual venceu as 24 Horas de Le Mans em 1979.

Não demorou muito para a maré bater na cabeça de Lanier. Mas antes de entrarmos na narrativa da prisão e condenação, vale observar os antecedentes criminais do ex-piloto.

Randy experimentou cannabis aos 14. Aos 15, ele começou a traficar e, aos 20, apinhara dinheiro suficiente para adquirir uma lancha Magnum do tipo Go Fast. Por meio da pequena embarcação, Lanier contrabandeava uma tonelada de maconha nas Bahamas, cuja parte do lucro era revertida para sua empresa pessoal de locação de motos d’água.

Mais tarde, ele se associou ao também piloto de competição Ben Kramer. Juntos, os dois cresceram de um arrastão de madeira com 20 metros de comprimento para uma frota de rebocadores com barcaças cheias de maconha.

Neste ínterim, Lanier passou a frequentemente bater as equipes de fábrica no Imsa GT – à época a Holbert e a Group 44, ambas patrocinadas por Porsche e Jaguar – e despertar a desconfiança do FBI. Logo então se descobriu um esquema multimilionário que envolvia ele e Kramer.

O tribunal federal de Miami descobrira que, entre setembro de 1983 e julho de 1985, o grupo atravessara cerca de 45 t de maconha para a Flórida. A operação se dividia em três partes: Kramer, líder da quadrilha, comprava a maconha na Colômbia; outro grupo a trazia para os EUA com as barcaças; e Lanier era o responsável pela rede de distribuição.

O piloto se entregou às autoridades quando o indiciamento foi impetrado, pagou fiança e foi liberado. Mas seus problemas estavam apenas começando. Em janeiro de 1987, o FBI trouxe novas acusações contra Lanier, sob as quais ele era delatado por integrar uma organização responsável por contrabandear 150 t de maconha para vários Estados norte-americanos num período de três anos.

À época, os feds anunciaram que haviam rendido uma das maiores organizações criminais na América do Norte e um piloto de corridas era um dos pontos-chave no esquema.

A condenação

O esquema no qual Lanier se meteu envolvia mais de 150 pessoas. De acordo com investigadores do FBI, o grupo tinha acesso a rebocadores e barcaças, que eram então carregados da Colômbia com maconha e expedidos aos Estados Unidos. Os principais portos de recolhimento eram Nova York, Nova Orleans e San Francisco.

Destes embarcadouros, os fardos de maconha eram depositados em caminhões que os distribuíam para armazéns de todo o país. As vendas eram realizadas em diversos estados, entre eles Kentucky, Pensilvânia, Flórida e Califórnia. O total do contrabando chegou à marca de 300 toneladas.

De qualquer forma, Randy, ciente da iminente prisão, fugiu para a França, onde tentou se esconder em Monte Carlo durante algum tempo. Mudou de ideia dias depois e correu para Antígua, uma pequena ilha nas Índias Ocidentais onde mantinha uma propriedade rural. A paz durou pouco: no dia 26 de outubro de 1987, a polícia local o capturou enquanto pescava.

A história da prisão de Lanier, aliás, é um drama à parte. Ele tentou fugir para a costa num barco menor e, ao pisar em terra, não foi detido antes de sofrer uma perseguição cinematográfica por vários jipes numa estrada de lama. Do Caribe, o piloto foi transferido para Porto Rico, onde o Estado americano lhe deu voz de prisão.

O julgamento de Randy começou em julho de 1988, junto com Ben Kramer e outros cúmplices no caso. A defesa do piloto tentou sustentar que ele “sucumbiu à irresistível sedução da maconha” por crescer no sul da Flórida, onde há toda uma cultura de apologia a cannabis. A argumentação foi pouco convincente: dias antes do Natal, Randy recebeu a punição que temia – prisão perpétua sem liberdade condicional.

Decadência e liberdade

A condenação de Lanier foi dura para a família. Enquanto o piloto definhava na Federal Correction Complex em Coleman, sua namorada, Maria de la Luz Maggi, foi condenada em 1993 a nove anos de prisão por lavagem de dinheiro. Dois anos antes, agentes federais confiscaram a casa de seu irmão e a leiloaram, dizendo que ele praticava atividades ilegais, embora nenhuma das acusações tenha sido confirmada.

Lanier, por sua vez, tentou vários apelos ainda no cárcere, alegando que uma das testemunhas mentira sob juramento. Do lado de fora, o FBI lucrava sobre seu patrimônio: celulares, Corvettes, lanchas e joias foram para os cofres públicos. O valor total do confisco chegou, de acordo com o jornal “St. Louis Post-Dispatch”, a US$ 150 milhões.

Na penitenciária, Randy adotou uma política de boa vizinhança. Monitorava jovens prisioneiros, jogava xadrez e praticava ioga, tai chi chuan e meditação. Também nunca deixou suas revistas automotivas de lado e se manteve próximo dos dois filhos. “Não tenho um pingo de amargura em mim”, disse ao “Jalopnik”. “Sei quem eu sou. Compreendo o meu eu interior.”

Lanier foi libertado pela Justiça em 15 de outubro de 2014. O motivo da soltura ainda é sigiloso, já que ele se encontra sob regime de liberdade controlada até 2018. Mas hoje, aos 64 anos, ele parece disposto a recomeçar a vida: tem sua própria página no Facebook e voltou recentemente a pilotar um automóvel neste emocionante vídeo produzido pelo “Jalopnik” abaixo. Uma prova de que nunca é tarde para reviver uma paixão destruída por um grave erro.

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