E se os carros de F1 pudessem correr com tração nas quatro rodas?
O douto leitor deve estar cônscio de que os carros de F1 são movidos por tração traseira, uma alternativa clássica utilizada por veículos de alto rendimento no asfalto. Os 4×4 geralmente ficam reservados para os ralis, enquanto os tracionados via eixo dianteiro costumam constar só nas ruas das cidades (exceção a ousadias como o Nissan GT-R LM Nismo, usado com retumbante fracasso nas 24 Horas de Le Mans do ano passado).
Tal divisão nos leva a um raciocínio lógico: a F1 segue a cartilha da tração traseira porque é o mais recomendável para seu tipo de competição. Não deixa de ser uma verdade, mas há uma certa ironia fina ao se aplicar matemática e física, tão exatas na teoria, na prática de um evento tão complexo.
Na atual conjuntura tecnológica e regulamentar da categoria, poderíamos sentenciar que adotar um sistema de tração integral (que é diferente do 4×4, conforme nossos parceiros do FlatOut já explicaram) não seria tão mau negócio. A ver:
Implicações do sistema na F1
Correr com tração nas quatro rodas requer adaptações na construção do bólido. Para que ambos os eixos sejam alimentados pela energia da combustão, é preciso adotar um sistema de dois diferenciais, o que aumenta o preço e o peso da brincadeira. Quando estamos falando de um monoposto de menos de uma tonelada, em que qualquer quilo extra faz diferença, a alternativa passa a ser vista com desconfiança.
Além disso, trabalhar com entrega de torque para as rodas dianteiras, responsáveis pelo esterço, gera reações diferentes ao volante: os pneus, que antes deveriam lidar somente com a aderência lateral, passam a sofrer também com os efeitos da aderência longitudinal (provocada pela força vinda do motor) nos contornos e saídas de curva. Se não for bem dosada, a distribuição de torque entre as rodas levará a situações de subesterço, reduzindo a velocidade em curva.
Numa F1 de 2011, por exemplo, auge da aerodinâmica gerada pelos difusores soprados e que usava um propulsor V8 aspirado com “apenas” 30 kgfm de torque, pensar num F1 com tração integral seria insanidade. Nas regras de hoje já não é para tanto: a aerodinâmica está restrita e o torque aumentou em 50%, para mais de 45 kgfm. Pense bem: se há cinco anos um competidor cravava o pé no acelerador logo em segunda marcha, hoje precisa dosar a aceleração muitas vezes até chegar à quarta ou quinta velocidade da transmissão.
Entregar tanta força às rodas traseiras aumenta as chances de patinar e sofrer sobre-esterço. Ao realizar uma distribuição moderada para o eixo da frente (numa proporção de 20:80, por exemplo), seria possível alcançar um ponto interessante de desempenho. Una a isso o downforce menor e a possibilidade de trabalhar com diferenciais inteligentes, que vetorizam o torque entre as rodas, e pronto: a ideia não parece mais tão maluca assim.
Apenas para constar, não estamos afirmando que um F1 com tração integral superaria um modelo convencional. Conforme supramencionado, há vários outros fatores ligados: o diferencial extra forçaria os engenheiros a repensar toda a dianteira do chassi. Haveria mudança na distribuição de peso (além do peso em si) e, provavelmente, o entre-eixos teria de ser alongado. Como o motor é central-traseiro, seria necessário pensar em como canalizar a transposição da energia para o eixo frontal, pois ele precisaria passar sob ou de maneira justaposta ao habitáculo. Enfim, são várias minudências que precisariam ser avaliadas (e testadas) para chegar a um veredito.
Por que ninguém tenta?
Respondendo de forma direta: porque o regulamento não permite. Mas não foi sempre assim. O Projeto Motor lista abaixo 12 modelos da F1 que tentaram, de alguma forma, fazer uso de tração nas quatro rodas. Confira e entenda, ao final, o motivo de a solução ter sido banida do campeonato. Será um bom exercício para compreender, ainda, as dificuldades que o conceito impõe.
AJB SPECIAL (1950) – o ancião
Primeiro F1 a ter tração nas quatro rodas e propulsor refrigerado a ar na categoria, foi usado pela escuderia do arrojado piloto-construtor Archie Butterworth na edição de 1950 do BRDC International Trophy, prova extra-campeonato realizada em Silverstone. O irlandês até conseguiu se classificar para a primeira bateria, mas abandonou logo na primeira passagem por um problema no virabrequim.
FERGUSON P99 (1961) – o vencedor
Se Butterworth experimentou um AWD antes, foi de Harry Ferguson a honra de estrear a tecnologia num Grand Prix oficial e, mais do que isso, ganhar uma corrida. O GP foi o da Inglaterra de 61: Jack Fairman levou o P99-Climax, inscrito pelo time do perseverante Rob Walker, ao 20º posto no grid, e o entregou a Sir Stirling Moss na metade do páreo, porque o tetra vice-campeão sofrera uma quebra no Lotus 18 também da Walker Racing. Só que Moss recebeu ajuda externa para regressar à pista após apresentar outra falha mecânica, na volta 56, e ambos acabaram desclassificados.
Dois meses depois, o mesmo Moss recebeu a quadriculada para faturar a International Gold Cup, em Oulton Park, sendo o único triunfo de um modelo tracionado integralmente na história da F1. O curioso sobre o P99 é que, quando ele foi projetado por Claude Hill, em 1960, ainda contava com trem-de-força dianteiro e possuía tanto a distribuição de peso quanto a entrega de torque entre os eixos divididas em 50:50. Só que, com a tragédia envolvendo Alan Stacey e Chris Bristow no GP da Bélgica daquele ano, os organizadores resolveram reduzir drasticamente a capacidade cúbica dos motores, para 1,5 litro, o que afetou profundamente o projeto. Os detalhes dessa história ficam para um próximo artigo.
BRM P67 (1964) – o regressante
O anunciado retorno dos motores de 3 litros para dali a dois anos motivou a BRM a experimentar a tecnologia da Fergusson (que trocara o status de construtora para o de fornecedora). Nasceu então o P67, que usava chassi do P261, suspensões do P57, motor 1.5 do P56 e transmissão da Fergusson. Só que, após tentativa frustrada de classificação para o GP da Inglaterra de 64, com Richard Attwood a bordo, o time abortou o projeto. Ao criar o complexo propulsor H16, a esquadra britânica até reservou um espaço no bólido para recolocar o diferencial dianteiro, mas não levou a ideia adiante.
Leva de 1969 a 1971 na F1 – o auge
Cosworth F1
Com a volta das usinas 3.0 e, em especial, a chegada dos Cosworth DFV, oferecendo muito mais potência, a sanha por construir um F1 de tração integral vencedor aumentou. Lotus 63 , Matra MS84, McLaren M9A, Lotus 56B e até um ultravanguardista projeto de chassi da Cosworth entraram na onda.
Desequilíbrio, excesso de peso e aumento da pressão aerodinâmica – advinda dos recém-descobertos aerofólios – acabaram minando todas as expectativas. Bruce McLaren chegou a afirmar que se sentia como se estivesse “tentando escrever em um papel com alguém constantemente balançando seu cotovelo”. A exceção era o ambiente de pista molhada, único momento discrepantemente vantajoso para os modelos AWD.
MARCH 2-4-0 – o primeiro “6×4″
Não estamos falando de um bólido com tração integral, mas sim de um projeto experimental de seis rodas cujo torque era entregue aos quatro arcos traseiros. Diferentemente do Tyrrell P34, Robin Herd arquitetou sua criação para encaixar seis pneus idênticos em três eixos, sendo dois na parte de trás.
Herd também queria usar um sistema revolucionário (e que se mostrou bastante problemático) de câmbio ao desenvolver o carro, ao longo de 1977, mas problemas financeiros obrigaram Max Mosley, então chefão da March, a abortar a missão no meio da época.
WILLIAMS FW07D – o causador da discórdia
Assim como o 2-4-0, o Williams FW07D também era munido de seis rodas iguais, sendo dois eixos traseiros com tração para os quatro arcos. A ideia, copiada da March e tocada por Patrick Head em 1982, prometia abalar os rumos da F1 ao aliar toda a pressão aerodinâmica do efeito-solo a uma aderência mecânica jamais antes alcançada.
Não houve tempo para que o sonho de Frank Williams virasse realidade, contudo: temerosa sobre até onde a imaginação dos projetistas poderia levar, a FISA decidiu restringir, a partir daquele ano, a disputa da F1 a modelos com quatro rodas e torque direcionado a apenas duas delas. Tal proibição segue até hoje.
BENETTON B199 – o recondutor do flerte
Na temporada de 99, a Benetton fez uso de um dispositivo denominado FFT (sigla em inglês para “Transferência Dianteira de Torque”), que consistia em controlar as disparidades de giro entre as rodas da frente durante frenagens e contornos de curvas. Não havia entrega de torque, mas o carro fora dotado de um diferencial dianteiro umedecido.
Segundo Pat Symonds, então diretor técnico, o ganho variava de zero a três décimos, dependendo do circuito. “O diferencial era maior do que um comum [por discos] e pesava muito, o que nos obrigou a aumentar o entre-eixos além do que gostaríamos. As barras extras na suspensão também comprometiam a aerodinâmica, então no fim das contas a vantagem era quase sempre mínima”, contou o engenheiro, em 2005, à revista Racing Car Engineering.
BAR 006 – o apagador da luz
A fim de dirimir o não tão grande porém incômodo déficit de desempenho em relação à Ferrari, a BAR levou para o GP da Alemanha de 2004 um apetrecho totalmente símile ao da Benetton, porém com diferencial menor e mais leve, chamado de FCP (sigla em inglês para “Pacote de Embreagem Frontal”). A FIA chegou a ordenar a retirada do item em Hockenheim, mas fez vista grossa para seu uso em outras etapas daquela estação. A esquadra pretendia seguir com o uso em 2005, até entrar em um acordo com os times rivais para banimento definitivo da tecnologia.
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