Michèle Mouton

Michèle Mouton: a francesa que venceu gigantes dentro e fora dos carros

O automobilismo é cheio de história de grandes heróis e pioneiros. Entre as mulheres, isso não é diferente. Michele Mouton não passa nem perto de ser uma das primeiras representantes do sexo feminino no esporte a motor, porém, é uma das maiores provas de que elas podem sim competir de igual par igual com os homens até mesmo nas categorias do mais alto nível mundial.

A francesa não só correu em grande forma no Mundial de Rali, como ainda conquistou quatro vitórias, um vice-campeonato mundial e ainda domou os monstros do Grupo B, era de alguns dos carros mais potentes e incríveis da história. Além disso, como infelizmente era de se esperar, teve que superar sexicismo e suspeitas em torno de seu desempenho.

E tudo começou, mais do que tudo, pelo prazer de dirigir. Aos 14 anos, Mouton pegava o Citroën 2CV de seu pai para dar umas voltas pela região de sua cidade natal, Grasse, na Riviera Francesa, próxima tanto das montanhas quanto do litoral, onde muitos dos ralis do país até hoje são realizados. “Era apenas pelo prazer de dirigir, para viver com o carro. Eu nunca, nunca, nunca pensei em competir”, confessou a piloto em uma entrevista à revista Motorsport, em 1983.

O primeiro contato com de Mouton com o rali aconteceria apenas alguns anos depois, quando ela já tinha 22 e um namorado, o monegasco Jean Taibi, a convidou para ser sua navegadora em ralis a bordo de seu Renault Gordini. Em menos de um ano, os dois já estavam competindo juntos no famoso Rali de Monte Carlo, etapa do Mundial.

O pai de Mouton, no entanto, não gostava muito da situação. Na verdade, ele adorava o envolvimento da filha com carros de corrida, já que era um entusiasta de modelos esportivos. Só que a relação com Taibi e principalmente a condições do carro em que eles competiam, quase sempre com pneus gastos e sem uma equipe para fazer manutenção, que o deixava incomodado.

Ele então fez a proposta para que ela se tornasse piloto. Para isso, ele compraria um novo Alpine A110, uma das escolhas mais populares entre os pilotos de rali da época, e a bancaria por uma temporada. Se ela se desse bem, poderia continuar, se não, a brincadeira teria que terminar e ela focaria no emprego na agência de seguros do pai.

Ela logo começou a se destacar em provas locais e em 1974 já conseguiu um 12º lugar na etapa Tour de Corse do WRC. Na temporada seguinte, ela conquistou diversas vitórias no Grupo 3 do campeonato francês e ainda venceu na sua divisão na etapa do Mundial na Córsega.

O sucesso fez muita gente suspeitar de seu equipamento. Afinal, “como uma mulher poderia bater os homens em uma modalidade tão dependente da habilidade como o rali de velocidade?”. O resultado na Córsega, no entanto, acabou com vários desses rumores já que por regulamento seu carro teria que ser quase que completamente desmontado pelos comissários para verificar se tudo estava em ordem. “Eles disseram que estava certo. Então, desta vez eu disse que eles não tinham mais nada a falar contra mim”, apontou a piloto.

Neste meio tempo, ela ainda participou das 24 Horas de Le Mans de 75 no protótipo Moynet LM 75, equipado com motor Simca, que dividiu com outras duas francesas: Marianne Hoepfner e Christine Dacremont. O trio feminino saiu com a vitória na classe S2.0 e a 21ª posição na geral.

Michele Mouton, de Fiat 131

Em 1976, apenas três anos depois de ganhar o Alpine de seu pai, Mouton já era praticamente uma profissional, com um contrato com a Fiat França, além de ser convidada para correr em algumas provas internacionais com um Porsche 911 dos famosos irmãos Almeras. Vieram então as primeiras vitórias internacionais importantes como o Rali de Espanha de 1977 e Volta a França de 1978.

E assim, sua carreira continuou em evolução durante o final dos anos 70 até que um dia a equipe de fábrica da Audi no WRC a convidou para ser piloto oficial na temporada de 1981 do Mundial com o famoso Quattro.

A chegada não foi bem vista por muitos pilotos. Alguns, com muito sexismo se negavam a aceitar ficar atrás dela, jogando qualquer culpa no equipamento. E em meio a esta dura recepção, ela não se fez de rogada e fez história na 10ª etapa ao vencer o Rali de Sanremo, na Itália.

Em sua segunda temporada no WRC, para mostrar que as mulheres têm capacidade de domar até mesmo as mais fortes feras do automobilismo, ela enfrentou com bastante sucesso a introdução do Grupo B, nova classe principal do rali da FIA que transformou os carros em monstros com potências absurdas. Se você quiser saber mais sobre essa incrível era da competição, clique neste link para ler o que o Projeto Motor já contou sobre o regulamento e os carros.

Mouton levou seu Audi a mais três vitórias, em Portugal, Grécia e Brasil, em prova realizada entre o estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Ela chegou à penúltima etapa do campeonato na vice-liderança do campeonato, brigando de frente com Walter Rohrl, que já tinha levado o título dois anos antes. A francesa ainda teve que ouvir do alemão que ele aceitaria o segundo lugar para Hannu Mikkola, companheiro de Audi de Mouton, mas não para ela, “não por que eu duvide da capacidade dela como piloto, mas porque ela é uma mulher”.

Poucas horas antes da largada para a etapa de Costa do Marfim, ela foi informada da morte de seu pai e incentivador, em sua casa em Nice, na França, por conta de um câncer. Seu último pedido teria sido de que Mouton largasse para a prova. E ela não só partiu para a briga, mas liderou a maior parte da competição.

Michele Mouton em seu Audi Quattro

Caso vencesse, ela levaria a decisão do título para a etapa final, precisando de apenas mais um terceiro lugar para sagrar-se campeã, graças ao regulamento com descartes. Após enfrentar vários problemas mecânicos ela segurava uma vantagem de 18 minutos para o segundo coloca, justamente Rohrl, quando acabou cometendo um erro e capotando seu Quattro. A francesa abandonou a prova e o alemão ficou com o título.

Apesar da dura derrota, a campanha mostrou que ela era uma grande piloto e que poderia encarar qualquer um. Dois anos depois, ela deu mais uma prova de sua habilidade ao conquistar o título da subida de montanha de Pikes Peak, principal prova do gênero no mundo, batendo o recorde de Al Unser em 13 segundos com seu Sport Quattro.

Bobby Unser, considerado um dos reis da montanha do Colorado, mostrou mais uma vez a face obscura do machismo encrustado no automobilismo ao criticar a piloto. A francesa não pestanejou ao responde-lo ainda no local da prova: “Se você tiver bolas, você pode tentar correr contra mim na descida também”.

Mouton seguiu competindo até o final de 86, quando já estava correndo pela Peugeot no WRC, entre outros ralis. No final daquela temporada, a FIA, pressionada pela quantidade de acidentes, resolveu acabar com o Grupo B, e ela declarou que para ela não faria então mais sentido continuar, optando pela aposentadoria.

A piloto, no entanto, seguiu ligada ao automobilismo. Hoje, ela é presidente da Comissão da FIA para Mulheres no Automobilismo, além de Delegada da entidade para Segurança do WRC. O que só mostra o respeito e grandiosidade que essa forte mulher teve que impor não só ao volante em uma das modalidades mais difíceis, desafiadoras e perigosas do automobilismo, mas também no seu direito de vencer acima de qualquer suspeita independente de ser homem ou mulher.

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