Do game para o real e, agora, no cinema: a história de Gran Turismo

Até mesmo fora dos círculos de gamers, o jogo Gran Turismo é minimamente conhecido por ser um dos bons simuladores de corrida para quem gosta de jogar em consoles, no caso, o Playstation.

Tudo bem. Há que goste mais de Forza, do concorrente X Box, ou os simuladores mais voltados para automobilismo virtual que buscam ainda mais realidade e possuem mais oportunidades para criação de campeonatos on line de alto nível, como o Assetto Corsa, rFactor, entre tantos outros. (Sem polêmicas, pessoal, cada um pode gostar mais do que quiser).

De qualquer maneira, essa introdução toda é para pontuar que sim, Gran Turismo é um dos jogos mais famosos e utilizados do mundo. E está agora também no cinema para quem quiser ver uma história em torno dele.

Antes de mais nada, esqueça qualquer coisa ao estilo de Need for Speed, em que o estúdio de cinema pegou o nome do famoso, alguns carros, cenários e músicas do jogo para apelar aos corações dos jogadores e produziu uma história sem ligação nenhuma com o game (e bastante questionável até do ponto de vista cinematográfico).

O filme de Gran Turismo, independentemente de ser bom ou não (deixamos para vocês e os críticos de cinema decidirem), apostou em mostrar como o jogo já influenciou a vida de muita gente. E que em algumas destas histórias, transformou até mesmo a vida de alguns jogadores que se tornaram pilotos no mundo real graças à franquia.

E para isso, eles se centrarem em duas histórias reais centrais (claro que bastante romantizadas): a do programa GT Academy e a de Jann Mardenborough, o maior sucesso desta transição do mundo virtual para o real através de Gran Turismo.

Gran Turismo e a GT Academy da vida real

Série da desenvolvedora japonesa Polyphony Digital, de propriedade da Sony, Gran Turismo foi criado em 1997 para a primeira versão do PlayStation e já está na oitava edição do título principal, Gran Turismo 7 (2022), além de ter gerado oito spin-offs. Neste tempo, o jogo já vendeu mais de 90 milhões de unidades para todas as versões do console.

Em 2006, a Sony (proprietária da PlayStation) e a Nissan realizaram um evento de marketing em conjunto em que jogadores tiveram a oportunidade de competir por um novo Nissan 350Z. Para vencerem, eles realizaram voltas no jogo Gran Turismo e depois com um carro GT em uma pista real.

O executivo da Nissan no Reino Unido, Darren Cox, observou que alguns dos competidores mostraram talento no mundo real. E assim, ele começou a idealizar um projeto para levar alguns desses pilotos virtuais para as pistas de verdade.

“Depois do evento, um dos instrutores me disse que alguns dos caras eram realmente bons. Comparando os tempos de voltas da vida real e do jogo, tiveram uma correlação muito boa entre os dois, e começamos a trabalhar na ideia de tentar pegar um bom gamer e transformá-lo em um piloto de corrida”, explicou o executivo em uma entrevista ao site britânico Ars Technica.

Assim, ele costurou uma joint venture entre Sony e Nissan para a criação da GT Academy, competição formatada como um programa de televisão que teve sua primeira edição em 2008 e que elegia como vencedores os jogadores que conseguissem mostrar mais talento na transição do game para a pilotagem no mundo real.

Orlando Bloom, que interpreta Danny Moore, personagem inspirado em Darren Cox, e David Harbour estão no elenco do filme Gran Turismo
Orlando Bloom, que interpreta Danny Moore, personagem inspirado em Darren Cox, e David Harbour estão no elenco do filme Gran Turismo

Para conseguirem uma vaga na competição, os jogadores, que precisavam ter no mínimo 18 anos, carteira de motorista e não podiam ter licença de piloto, tinham que superar classificatórias on line do Gran Turismo 6 no Playstation 3. A Sony ainda providenciou alguns pontos físicos espalhados pelo Reino Unido para que pessoas que não possuíssem o console pudessem participar.

Após essa primeira seleção, os competidores classificados para a fase “Nacional” se enfrentavam em eventos in loco no game e eram testados em carros reais da Nissan, além de passarem por testes de personalidade, forma física, visão e saúde geral.

Então, finalmente eram escolhidos os finalistas que participariam do treinamento intensivo de uma semana no circuito de Stowe, localizado na parte interna de Silverstone, realizado pela equipe e com a estrutura do programa esportivo da Nissan.

Aos poucos, um juiz ia eliminando os participantes por fases até a grande final, em que dois aspirantes a piloto se enfrentavam em uma corrida. O desempenho em cada atividade e fase da competição era avaliado para a escolha do vencedor no final.

Fase em que os participantes jogavam Gran Turismo in loco em busca de uma vaga nas finais da GT Academy
Imagem real de disputa entre os participantes da GT Academy competindo no Gran Turismo (Foto: Divulgação)

O vencedor de cada edição do GT Academy ganhava uma oportunidade de se tornar um membro temporário do Programa de Desenvolvimento da Nissan. Após o treinamento para a aquisição da licença nacional para competições da FIA, esses novos pilotos eram normalmente convidados para participarem de provas de endurance pela equipe de fábrica da Nissan, o que na maioria das vezes aconteceu nas 24 Horas de Dubai.

A história real de Jann Mardenborough

A GT Academy foi realizada entre 2008 e 16, e ganhou versões na Europa, Ásia e uma Internacional (com diversos países das Américas e África). O primeiro campeão (de 2008), o espanhol Lucas Ordoñez, conquistou no ano seguinte o vice-campeonato europeu de GT4. Em 2011, ele participou do trio patrocinado pela Nissan que terminou na segunda posição da classe LMP2 das 24 horas de Le Mans.

O filme Gran Turismo, no entanto, foca no personagem Jann Mardenborough. Claro que de forma muito, muito – bastante mesmo – romanceada. Mas a ideia geral foi mostrar que o britânico conseguiu se transformar na vida real um piloto de corridas que hoje, 12 anos após seu triunfo no programa de TV, já tem um currículo consistente com participações em diversas categorias.

Mardenborough era de uma família de classe média da Inglaterra que gostava de corridas de carro desde criança. Seu pai era um jogador de futebol de nível médio, que atuou em diversas equipes pequenas da Inglaterra e de Gales. Os pais, porém, nunca tiveram condições de financiar uma carreira nos karts. Por isso, ainda na adolescência, ele já tinha desistido do sonho.

Ele acabou se tornando um grande fã de jogos de videogame, em especial, o Gran Turismo do PlayStation. No começo, ele jogava na casa de um amigo, mas depois de um tempo, acabou ganhando o console, o jogo e alguns anos depois o pacote de volante e pedais.

Em 2010, ele entrou no curso de Engenharia de Automobilismo da Universidade de Swansea, mas desistiu após três semanas porque “tinha matemática demais”. De volta a casa dos pais e sem saber o que faria da vida, ele então resolveu focar em tentar competir no programa GT Academy, que já estava indo para sua terceira temporada.

Ele não só conseguiu entrar na competição como foi aos poucos passando de fase e assim se tornou o grande campeão alguns meses depois, deixando um total de 90 mil participantes para trás. Ele era o vencedor mais novo até então da GT Academy, aos 19 anos.

Jann Mardenborough (à esquerda) ao lado do ator Archie Madekwe (sentado no carro) que o interpreta no filme Gran Turismo

Mardenborough entrou no programa da Nissan e logo se destacou. Ainda em 2011, ele chegou a participar de uma rodada da GT4 Europeia em Zandvoort. Em 2012, mostrou consistência nas participações pelo time da GT Academy nas 24 Horas de Spa, de Dubai e depois com boas provas no Campeonato Britânico de GT, torneio em duplas, em que ele conseguiu uma vitória e três pódios ao lado do piloto oficial da Nissan, Alex Buncombe.

Vendo o potencial, a Nissan resolveu apostar mais em seu novo piloto. Assim, Mardenborough se tornou o primeiro piloto vindo da GT Academy que ganhou chance em corridas de monopostos. Ele ficou na sexta posição no campeonato da F3 Britânica em temporada vencida por Jordan King e ainda contou com Antonio Giovinazzi e Nicholas Latifi. Ele também terminou em 13º no F3 Masters e marcou pontos em quatro das 10 rodadas que participou da F3 Europeia.

Pela Nissan, ele ainda teve a oportunidade de participar pela primeira vez das 24 Horas de Le Mans, terminando na terceira colocação na classe LMP2 pela equipe Greaves, competindo ao lado do espanhol Lucas Ordóñez, primeiro vencedor da GT Academy, e do experiente piloto alemão Michael Krumm.

A marca japonesa continuou propiciando um programa cheio de competições em monopostos, GTs e provas de endurance para o britânico nos anos seguintes. Em 2014 e 15, ele chegou a competir na GP3 (que ocupava o lugar da atual FIA F3), conquistando no período uma vitória e quatro pódios. Ele ainda correu na rodada de Monza da GP2 (atual F2) pela equipe Carlin, mas, sem um grande resultado, acabou não tendo mais chances na escada da F1.

Ele também foi escalado para o time de pilotos que participaram da empreitada da Nissan na LMP1, que na época era a classe principal das 24 Horas de Le Mans, dividindo o protótipo da marca com Olivier Pla e Max Chilton. Mas a equipe abandonou a prova com problemas mecânicos.

De qualquer maneira, neste momento, Mardenborough já tinha deixado de ser apenas um personagem curioso que vinha dos videogames para ser um piloto com carreira estabelecida. Claro que a origem de sua trajetória no automobilismo real lhe propiciou um apoio financeiro da Sony e da Nissan que lhe abriram várias portas. Mas ele sempre deu boas respostas.

Com patrocínios de duas grandes empresas japonesas, ele se estabeleceu desde 2016 no automobilismo do país asiático, onde competiu regularmente na Super GT e até chegou a ser vice-campeão da F3 local. Em 2019 e 20, a Nissan ainda lhe propiciou alguns testes na equipe oficial da marca da Fórmula E. Nas duas temporadas seguintes, ele trabalhou para o time no desenvolvimento dos carros no simulador.

Após ficar 2021 e 22 sem vagas em categorias de médio e grande porte, em 2023, ele voltou a correr em uma competição importante, as 24 Horas de Fuji. Seu time, a HELM Motorsport, fez a pole e liderou boa parte da prova com um modelo Nissan GT-R Nismo GT3, mas acabou ficando em quarto após enfrentar problemas mecânicos.

Aos 31 anos, Mardenborough segue abrindo portas em competições de GTs e de endurance e, 12 anos depois do sonho do videogame se tornar realidade, teve a chance de se envolver no projeto que contou a história da GT Academy nos cinemas (vale ressaltar mais uma vez, de forma bastante romanceada). Ele participou da produção e até fez algumas cenas como dublê em tomadas de corridas no lugar do ator que o interpretou, Archie Madekwe.

O filme Gran Turismo, do diretor Neill Blomkamp e produzido em parceria pela PlayStation (Sony) e pela Columbia Pictures (subsidiária de cinema da Sony) estreou nos cinemas brasileiros em 24 de agosto de 2023.

Polêmica com uso de morte real no filme (spoilers abaixo!)

Em 2015, Jann Mardenborough sofreu um grave acidente durante uma prova de endurance em Nurburgring em que seu carro decolou por cima do guard-rail da lateral da pista e passou pelo alambrado de proteção. Um espectador que estava assistindo à prova acabou morrendo ao ser acertado por destroços, além de várias outras pessoas terem ficado feridas. Você pode conferir as imagens da batida real aqui.

O acidente foi retratado no filme. Só que a produção está sendo bastante criticada pelo fato de ter utilizado a história trágica fora de seu momento correto da vida real como um artifício de roteiro para a virada do personagem principal.

No filme, o acidente acontece antes da participação de Mardenborough nas 24 Horas de Le Mans de 2013 (dois anos antes da realidade), em que ele termina em terceiro. O personagem então dá uma volta por cima emocional para seu grande momento.

Apesar de mudar a linha temporal de fatos reais ser algo bastante comum em filmes baseados em histórias reais, as críticas ao filme estão acontecendo principalmente pela forma como uma morte real estar sendo utilizada para isso.

Em entrevista ao jornal britânico Sunday Times, Mardenborough, que participou da construção do roteiro, defendeu a decisão de incluir o acidente desta forma, já que ele foi importante em sua trajetória como piloto. Ele explicou que se não fosse feito dessa forma, o episódio ficaria fora do recorte do filme caso a alteração na linha temporal não fosse feita.

“É minha vida, é parte da minha história”, disse o piloto. “Então, acho que teria sido um desserviço ao público se não estive lá. Deixei claro para todos que estavam na produção – os produtores, Jason [Hall, o roteirista do filme] – como foi aquilo. Pois era necessário ser correto, pois alguém perdeu a vida neste acidente. E o filme fez um ótimo trabalho com isso”, concluiu.

Comunicar erro

Comentários

Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial